Como tivemos oportunidade de observar no texto anterior, o primeiro Código Civil brasileiro foi promulgado apenas em 1916, tendo por base o projeto escrito pelo jurista cearense Clóvis Beviláqua, egresso da Faculdade de Direito do Recife.
Mas, e antes da codificação de 1916, que normatização havia no Brasil em matéria de direito civil? Tal papel coube às Ordenações do Reino, especialmente às Ordenações Filipinas, editadas em 1603.
Dada a sua importância no processo de formação do direito civil brasileiro, será a Ordenação analisada ao redor da sua estrutura, bem como das razões explicativas para a sua longeva incidência no Brasil em matéria civilista, eis que apenas cessou em janeiro de 1917, ocasião em que entrou em vigor o Código Beviláqua.
A modelagem normativa nomeada de Ordenações, no Império Português, constituiu-se em torno de três documentos jurídicos que se sucederam: Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas. A adoção de tal estilo normativo teve como causa:
[…] a elevada produção de leis pelos reis até D. João I, o que resultou em diversas leis esparsas, as quais geravam confusões e dificuldades de aplicação do direito. Assim, as Cortes solicitaram uma compilação das leis para facilitar não apenas a compreensão, mas também a prática jurídica.[1]
Portanto, as Ordenações representavam apanhados das regras vigentes, com vistas a emprestar mais segurança quanto ao estágio da legislação até então vigente. Em relação, especificamente, à elaboração das Ordenações Filipinas, que foram editadas em 1603:
[…] compuseram-se da junção das Ordenações Manuelinas com as leis extravagantes em vigência. Datam de 1603, época em que Portugal estava sob o domínio da Espanha, mais especificamente no reinado de Felipe II, advindo daí a alcunha de Ordenações Filipinas.[2]
No âmbito das Ordenações Filipinas, a matéria jurídica foi estruturada em cinco livros, figurando, no Livro IV, as normas de Direito Civil e Direito Comercial,[3] sendo importante destacar que não tiveram a forma dos códigos modernos, que se popularizariam dois séculos depois a partir da Europa. Daí decorre uma das críticas dirigidas às Ordenações Filipinas:
“Não se tratava de um código, no sentido moderno, mas de uma consolidação de direto real. As Filipinas, especialmente, são criticadas pelas contradições e repetições, perfeitamente compreensíveis quando se sabe que nem pretendiam ser um código (não há partes gerais sobre atos, negócios, pessoas, etc.) nem desejava o rei castelhano impor novidades a Portugal, preferindo manter (consolidando) o que já havia. Daí o respeito à tradição e aos textos legislativos encontrados, que foram mantidos mesmo quando contraditórios, mesmo se levantada a hipótese de omissões e cochilos dos redatores…”[4]
Como se vê, as Ordenações Filipinas tiveram o seu texto marcado por contradições, omissões, repetições, o que remete à importância das fontes autorizadas por tal normativa para serem utilizadas em situações envolvendo, por exemplo, lacunas. Sobre a questão das fontes consagradas nas Ordenações Filipinas, diz José Reinaldo de Lima Lopes:
“Um dos importantes aspectos das Ordenações é o sistema de fontes que contém. No Livro III, Título 64 a regra é que os conflitos devem ser julgados segundo as leis, estilos ou costumes do reino para os casos ali previstos. Leis eram atos do príncipe; estilos eram os “costumes” da Casa de Suplicação, ou jurisprudência determinada e aceita pelo mais alto tribunal do reino. Os costumes eram muitos e variados, locais. Nos casos não previstos (casos de lacuna), aplicava-se o direito canônico se a matéria trazia pecado ou as leis imperiais, isto é, o direito romano, quando não era matéria de pecado. Na falta deste, valiam como regra as glosas de Acúrsio e finalmente as opiniões de Bártolo. Não era por acaso que os tribunais deviam ter não apenas as Ordenações mas o seu jogo de Corpus Iuris Civilis e de Bártolos. Em última instância, na falta de qualquer solução nestas fontes, o caso deveria ser remetido ao rei, que o “determinaria” e cuja decisão passava a valer como lei “para o desembargo” de outros feitos semelhantes (Ordenações, Livro III, Título 45,2).”[5]
Da forma como concebidas, as Ordenações Filipinas consagraram um sistema de fontes pelo qual, ante lacunas na lei, abria-se caminho para o uso, a depender da matéria tratada, do direito canônico, bem como do direito romano, além das glosas de Acúrsio e opiniões de Bártolo.
Tal cenário passou por um esforço de renovação a partir da criação da Lei da Boa Razão, em 1769, a qual, segundo Isidoro Martins Junior, teria contribuído para reforçar a jurisprudência pátria ao cercear as liberdades doutrinárias e o arbítrio jurídico, além de reduzir a influência e prestígio do Direito Romano, como elemento subsidiário da legislação, eis que sua eventual aplicação estaria submetida ao crivo da noção de boa razão, além da condenação das glosas de Acúrsio e Bártolo[6], o que teria, segundo o autor citado, significado a intervenção sobre o velho Direito português a partir do elemento crítico-filosófico na interpretação e aplicação das leis. [7]
Ainda acerca do significado jurídico renovador da Lei da boa Razão, afirma Lopes:
“A Lei teve um impacto grande, mas não se impôs completamente o abandono do direito romano. Este continuaria a ser guardado (sem recurso a Acúrsio e Bártolo, como visto) pela boa razão dele, como dizia a Ordenação de 1603. Mas a lei nova vai definir o critério de boa razão que passará a ser aceito. Esta boa razão, diz a Lei de 1769, deve ser a que “consiste nos primitivos princípios que contém verdades essenciais, intrínsecas e inalteráveis, que a ética dos mesmos romanos havia estabelecido, e que os direitos natural e divino formalizaram para servirem de regras morais e civis entre o cristianismo: ou aquela boa razão que se funda nas outras regras, que de universal consentimento estabeleceu o direito das gentes para a direção e governo de todas as nações civilizadas: ou aquela boa razão que se estabelece nas leis políticas, econômicas, mercantis e marítimas que as mesmas nações cristãs têm promulgado com manifestas utilidades para o sossego público…”. Logo, o direito romano passava agora pelo filtro da modernidade e da razão moderna, jusnaturalista ou utilitarista conforme o caso.”[8]
Ao proceder à modificação das normas a orientarem o uso das fontes subsidiárias, a Lei da Boa Razão influenciou o campo do direito privado, no âmbito do qual se revelava muito importante a integração das lacunas. Tal esforço renovador teve sequência com os novos Estatutos da Universidade de Coimbra, que apontaram critério prático para se verificar a conformidade do Direito Romano com a boa-razão, além de reformas legislativas inspiradas em ideias jusnaturalistas, mormente na época pombalina.[9]
Certo que, até então, dada a nossa condição de colônia portuguesa, tais transformações jurídicas na metrópole se projetaram também sobre o Brasil.
Contudo, segundo José Carlos Moreira Alves, esse movimento de renovação jurídica em Portugal não se esgotou com a edição da Lei da Boa Razão, tendo continuidade com a implementação do liberalismo na metrópole, mormente a partir da Revolução do Porto. Nesse sentido:
Tudo isso explica a razão por que recrudesce, a partir de 1820, tendência que já se observava em Manuel de Almeida Souza: como direito subsidiário se vão deixando de lado as doutrinas romanas dos autores do usus modemus pandecíarum, para invocarem-se, cada vez mais freqüentemente, os princípios das modernas codificações européias que, muitas vezes, se afastavam daquelas doutrinas.
Nesse momento, porém, o Brasil proclamava sua independência, desligando-se de Portugal.[10]
Esse desligamento, neste momento, deu-se menos em relação à tradição jurídica até então firmada, e mais no sentido do movimento de renovação jurídica que, a partir da Europa, ganhava corpo, inspirado no liberalismo, no movimento de codificação.
Aliás, no contexto pós independência do Brasil, de modo a evitar a ausência legislativa, foi editada a Lei de 20 de outubro de 1823, segundo a qual permaneceria vigente a legislação portuguesa promulgada até 25 de abril de 1821, medida legal que, segundo Moreira Alves, teve um sentido muito maior que o estritamente jurídico, eis que manteve o Estado brasileiro distante de incorporar os ventos renovadores do liberalismo. A propósito:
“Foi em virtude de a mencionada Lei de 20 de outubro de 1823 haver estabelecido que permanecia vigente a legislação portuguesa promulgada até 25 de abril de 1821, que não se aplicaram ao Brasil as reformas que o liberalismo, a partir do começo da década de vinte passou a introduzir em Portugal, movido, principalmente, pelos novos preceitos das legislações estrangeiras que começavam a multiplicar-se e que eram diversos da tradição romana do direto lusitano. De outra parte, a intensidade da influência das idéias que tinham seu nascedouro na Revolução Francesa era muito maior num país como Portugal, vizinho de suas fontes, do que no Brasil, apartado delas pela distância de um oceano, e absorvido pelos problemas graves da consolidação de sua independência.
A esse fator estático iria, em breve, adicionar-se um fator dinâmico: a atuação, no campo legislativo, de Teixeira de Freitas, com a elaboração, em 1857, da Consolidação das Leis Civis, e, posteriormente, com a redação, que ficou inacabada, do Esboço, que era o Projeto de Código Civil que o Governo Imperial lhe encomendara.[11]
Mantidas as Ordenações Filipinas, no período que se seguiu à independência do Brasil, ganhou cada vez mais evidência o fato de que que tal texto normativo se revelava desordenado, contraditório e sem sistematicidade.
Foi neste contexto, e para ultrapassá-lo, que surgiu o esforço de Teixeira de Freitas por consolidar a legislação civil então vigente no país.
Pode-se dizer, assim, que a Lei da Boa Razão e a Lei de 20 de outubro de 1823, que estabeleceu a permanência da vigência da legislação portuguesa promulgada até 25 de abril de 1821 no Brasil, complementadas pela Consolidação das Leis Civis de Teixeira de Freitas, contribuíram para a longevidade das Ordenações Filipinas, em matéria de direito civil[12], no Brasil. Aliás, embora as Ordenações Filipinas tenham sido compiladas para o reino de Portugal, tiveram mais longa vigência e influência no Brasil.[13]
Aqui, segundo Orlando Gomes, deu-se a “diversificação evolutiva das instituições jurídico-privadas de Portugal e do Brasil”.[14] É que, enquanto, no Brasil, pela emergência da Consolidação das Leis Civis, de Teixeira de Freitas, reforçava-se a tradição jurídica portuguesa, em Portugal, em 1867, surgia o código civil português, inspirado no movimento de codificação europeu e em seu sentido renovador. Ao tratar desta distinção, diz Gomes:
“Até então a história jurídica dos dois povos fora comum. Daí por diante, bifurca-se. O Brasil permanece fiel à tradição, enquanto Portugal se deixa influir pelas ideias francesas, a ponto de consagrar inovações chocantes no seu Código de 1867. É que a estrutura social do Brasil, nessa época, não comportava essa influência alienígena. Sobre o vasto Império projetavam-se os tentáculos da sociedade colonial baseada no trabalho escravo. Embora se fizesse sentir a necessidade de reformar a legislação civil, mediante a elaboração de um Código que, por disposição constitucional, devera ser fundado nas sólidas bases da Justiça e da Equidade, malograram, no Império, três tentativas de codificação: a de Teixeira de Freitas (1859), a de Nabuco de Araújo (1872) e a de Felício dos Santos (1881).[15]
Observa-se, portanto, que os desdobramentos da Independência do Brasil abriram caminho para a diversidade de trajetórias jurídicas entre o direito privado brasileiro e o português, o que foi mais evidenciado com a implementação da Consolidação das Leis Civis, no Brasil, e, em Portugal, do código civil de 1867.
Na próxima publicação, analisaremos os aspectos relevantes do trabalho hercúleo de Teixeira de Freitas em sua Consolidação das Leis Civis.
[1]BAGNOLI, V.; BARBOSA, S. M.; OLIVEIRA, C. G. B. de. História do Direito. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 117.
[2] MACIEL, J. F. R.; AGUIAR, R. História do direito. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 204-205.
[3] A estrutura das Ordenações Filipinas apresentou a seguinte ordem expositiva das matérias: Livro I – Direito Administrativo e Organização Judiciária; Livro II – Direito dos Eclesiásticos, do Rei, dos Fidalgos, e dos Estrangeiros; Livro III – Processo Civil; Livro IV – Direito Civil e Direito Comercial; Livro V – Direito Penal e Processo Penal.
[4] LOPES, J. R. de L. O direito na história: lições introdutórias. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2002, pp. 268-269.
[5] Ibidem, p. 269.
[6] MARTINS JUNIOR, J. I. História do direito nacional. 3. ed. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1970, p. 80. (Coleção Memória Jurídica Nacional, v. 1. Co-edição com a Editora Universidade de Brasília.)
[7] Ibidem, p. 81.
[8] Op. cit,, p. 270.
[9] Alves, J. C. M. (1993). Panorama do direito civil brasileiro: das origens aos dias atuais. Revista Da Faculdade De Direito, Universidade De São Paulo, 88, 185-238. Recuperado de http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67220, pp. 189-190.
[10] Ibidem, p. 190.
[11] Ibidem, p. 191.
[12] “O único a ter vida mais longa foi o Livro IV, mesmo assim bastante temperado pelo uso da doutrina e das consolidações privadas de leis civis, que durante o século XIX antecedem o Código Civil, muito especialmente a Consolidação das Leis Civis de Teixeira de Freitas (1858). Mesmo assim, como lembra Ascarelli, as Ordenações e sua respectiva prática forense impuseram aos brasileiros uma enorme tradição jurídica, cuja pesada herança ainda pode ser vista debaixo da camada mais recente de cultura legal.”In: LOPES, J. R. de L. O direito na história: lições introdutórias. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 273.
[13] GOMES, O. Raízes históricas e sociológicas do código civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 9. – (Justiça e direito)
[14] Ibidem, p. 10.
[15] Ibidem, p. 11.