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Pablo Stolze Gagliano[1] Carlos E. Elias de Oliveira[2]
1. Introdução
Já tardava para o Brasil um marco legal para a prevenção e o tratamento do superendividamento.
Consumidores que, por qualquer infortúnio da vida, se afogassem em meio a impagáveis dívidas ficavam com praticamente nenhuma saída. Com o “nome sujo”, sem crédito na praça e sem boa reputação, o indivíduo oscilava entre conformar-se com a sua exclusão social ou tentar soluções heterodoxas, como “usar o nome emprestado” para tentar iniciar negócios ou obter crédito.
Desdenhar desse consumidor é adotar uma visão absolutamente reducionista e distorcida da realidade. É ignorar que a falta de transparência e as práticas comerciais abusivas frequentam o mercado de consumo na oferta de créditos.
A Lei do Superendividamento nasce com o objetivo de suprir essa lacuna.
E aqui cabe registrar elogios a professores que desempenharam um papel fundamental da Academia: a luta pela efetiva concretização da Justiça. A Professora Cláudia Lima Marques, ao lado de outros talentosos juristas – como a juíza Clarissa Costa de Lima –, atuou com abnegação pela aprovação da proposição. A classe dos civilistas expressou seu apoio por meio de renomadas instituições, como o Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont), sob a presidência do Professor Flávio Tartuce, e o Brasilcon (Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor), sob a presidência do promotor Fernando Rodrigues Martins.
A proposição nasceu no Senado como Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 283, de 2013, fruto dos trabalhos da Comissão Temporária de Modernização do Código de Defesa do Consumidor. Seguiu para a Câmara dos Deputados como Projeto de Lei (PL) nº 3.514/2015, retornando ao Senado como Projeto de Lei (PL) nº 1.805, de 2021 (Substitutivo).
O nascimento da nova lei também deve ser creditado a várias robustas produções acadêmicas e doutrinárias sobre o assunto, a exemplo das obras da professora Clarissa Costa de Lima[3] e da professora Marília de Ávila e Silva Sampaio[4].
2. Princípio do crédito responsável e o superendividamento
Princípios, em nosso sentir, são normas. Mas não é o nosso objetivo iniciar aqui esse interminável debate.
Chama-se de princípio do crédito responsável a norma que direciona o ordenamento jurídico em favor de práticas negociais saudáveis abrangentes das mais variadas formas de crédito. Trata-se de conceito já admitido pela doutrina[5] e pela jurisprudência[6].
Esse princípio é uma norma implícita na Constituição e foi concretizado pela Lei do Superendividamento mediante alterações no CDC e no Estatuto do Idoso. Consiste em promover o “crédito responsável”, ou seja, a prática adotada por credores, por devedores e pelo Poder Público com vistas a evitar o superendividamento.
Superenvidamento, por sua vez, é a situação de um indivíduo de boa-fé que não tem condições de pagar suas dívidas sem comprometer o mínimo existencial. O art. 54-A, § 1º, do CDC[7] define esse conceito com olhos no consumidor pessoa física. O conceito, porém, deve ser estendido para não consumidores também.
Quanto ao “crédito”, este deve ser entendido como o direito ao cumprimento de uma obrigação que, em geral, é pecuniária.
O princípio do crédito responsável é norma que impõe condutas tendentes a que se alcance um estado de coisas caracterizado pelo atendimento de três principais diretrizes.
A primeira mira o Poder Público. Cabe-lhe direcionar seus atos normativos, suas políticas públicas e suas atividades de fiscalização no sentido de reprimir práticas que contrariem o crédito responsável.
A segunda dirige-se aos credores. Há um dever jurídico dos credores de não fornecer créditos irresponsáveis, assim entendidos aqueles que, por um exame prévio do caso concreto, não são factivelmente pagáveis pelo devedor. Esse dever jurídico tem conexão com o dever de boa-fé objetiva, que exige comportamento ético de todos os particulares. Um dos desdobramentos da boa-fé objetiva é o duty to mitigate the loss, segundo o qual o credor tem o dever de cooperar com o devedor e adotar um comportamento que não estimule o aumento da dívida. Em síntese, o credor não deve estimular o endividamento imprudente do devedor.
A terceira endereça-se aos próprios devedores. O devedor tem o dever jurídico de adotar um comportamento de prudência ao contrair dívidas, buscando abster-se de assumir compromissos além de sua capacidade de pagamento.
3. Boa-fé do devedor e princípio do crédito responsável
Como já dito, o princípio do crédito responsável exige do devedor um comportamento prudente e em consonância com a boa-fé objetiva ao assumir dívidas para evitar futura inadimplência
Para tal efeito, a avaliação do que seja boa-fé não é singela. O mero fato de um devedor ter contraído uma dívida além de sua capacidade de pagamento não pode ser considerado uma conduta de má-fé.
O fato de o consumidor haver contraído dívida em situação de vulnerabilidade econômica não significa, por óbvio, de per si, haver atuado em violação à boa-fé.
Contrariamente, se o devedor efetivamente agiu (dolosamente) para praticar um golpe, o Direito não deve amparar esse tipo de comportamento.
Tudo dependerá da apurada análise do caso concreto.
4. Consumidor de produtos de luxo e o princípio do crédito responsável
Vigora no ordenamento jurídico brasileiro o princípio da proteção simplificada do luxo[8] , segundo o qual o Direito protege situações de luxo sem o mesmo prestígio de situações essenciais ou úteis. Esse conceito está atrelado ao conceito de paradigma da essencialidade, revelado pela Professora Teresa Negreiros. Segundo a jurista carioca, os direitos devem ser classificados quanto à essencialidade em direitos essenciais, direitos úteis e direitos supérfluos. Quanto menor for o grau de essencialidade do direito, menor deve ser a intervenção do Direito[9].
Esse princípio guia também a proteção dada aos casos de superendividamento. O intervencionismo estatal em favor de quem está em situação de superendividamento não deve alcançar casos oriundos de aquisição de produtos de luxo de alto valor, mesmo no caso de consumo. Quem, por exemplo, endivida-se por adquirir um veículo luxuoso de altíssimo valor não pode, posteriormente, invocar as ferramentas interventivas da Lei do Superendividamento. Sobram-lhe, apenas, as proteções gerais do Direito, sem prestígios interventivos. A própria Lei de Superendividamento é expressa nesse sentido (art. 54-A, § 3º, CDC).
5. A tutela do patrimônio mínimo e o princípio do crédito responsável
Sem dúvida, o princípio do crédito responsável tem como pedra fundamental a preocupação com a dignidade da pessoa humana.
O superendividamento contém traços de uma morte civil social. O
indivíduo com o “nome sujo” e sem margem de crédito tende ao ostracismo. Não
consegue montar novos negócios. Enfrenta estigmas ao buscar emprego. Sujeita-se
a viver “de favor”. Enfim, o superendividamento pode levar o indivíduo a um
estado de desesperança e, nas palavras de Raul Seixas, na música Ouro de Tolo, ficar sentado “no trono de um
apartamento,
com a boca escancarada cheia de dentes, esperando a morte chegar”.
O motivo é que o superendividamento fulmina o mínimo existencial do indivíduo.
A Lei do Superendividamento foca a proteção do mínimo existencial (art. 6º, XII, e 54-A, § 1º, do CDC). Não alcança, pois, situações em que esse mínimo existencial está a salvo.
Note-se que a garantia do mínimo existencial vai ao encontro do resguardo do patrimônio mínimo, na perspetiva da doutrina do eminente civilista Luiz Edson Fachin.[10]
É verdade que o conceito de patrimônio mínimo é aberto ou indeterminado. Não haveria, porém, como ser diferente, porque é preciso que o juiz, observando o caso concreto e atentando para o padrão do homo medius, avalie o que é patrimônio mínimo. Um indivíduo que está sem condições de fazer viagens internacionais e de se hospedar em hotéis cinco estrelas evidentemente não pode invocar a tutela da Lei do Superendividamento. Ele está privado de direitos supérfluos, e não de direitos essenciais, para utilizamos a classificação de direitos quanto à essencialidade da jurista Teresa Negreiros.
Feitas, portanto, essas considerações iniciais, cuidemos de analisar, objetivamente, os dispositivos do novo diploma.
6. Política Pública e o superendividamento (art. 4º, IX e X, art. 5º, VI e VII, do CDC)
“Art. 4º ……………………………….
…………………………………………..
IX – fomento de ações direcionadas à educação financeira e ambiental dos consumidores;
X – prevenção e tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão social do consumidor.”(NR)
“Art. 5º ……………………………….
…………………………………………..
VI – instituição de mecanismos de prevenção e tratamento extrajudicial e judicial do superendividamento e de proteção do consumidor pessoa natural;
VII – instituição de núcleos de conciliação e mediação de conflitos oriundos de superendividamento.
…………………………………………..”
Aspectos de Direito Administrativo e reflexos nas relações privadas
Os acréscimos nos arts. 4º e 5º do CDC inserem-se na Política Nacional de Relação de Consumo.
Em uma primeira análise, eles dizem respeito a um aspecto de Direito Administrativo, por se endereçarem ao Poder Público na sua atuação de defesa do consumidor. Servem de guia para a atividade de órgãos como os Procons, a Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça[11] (Senacon), o Conselho Nacional de Defesa do Consumidor[12] e outros órgãos federais ou estaduais que lidem com o consumidor. Essa constelação de órgãos integra o que se chama de Sistema Nacional de Defesa do Consumidor – SNDC (Decreto nº 2.181/1997).
Em uma análise mais aprofundada, porém, é preciso reconhecer que as normas que orquestram a Política Nacional de Relação de Consumo também disciplinam as relações entre particulares. Não são, pois, normas apenas de Direito Administrativo. Afinal de contas, os particulares, nas suas relações, têm de estar harmonizados com o ambiente normativo de proteção do consumidor. Portanto, temos que é plenamente viável que os arts. 4º e 5º do CDC possam ser invocados por particulares para resolver problemas contratuais, sem prejuízo da invocação dos preceitos do CDC que lhes sejam mais específicos. Note-se, aliás, que os maiores problemas de superendividamento envolvem instituições financeiras.
Crédito responsável como diretriz de Política Pública e uma sugestão aos Procons
O art. 4º do CDC lista os princípios da Política Nacional das Relações de Consumo. O art. 5º elenca os instrumentos a serem utilizados na execução dessa política pública.
Nesse diapasão, cabe ao Poder Público formular políticas públicas destinadas a promover a educação financeira do consumidor e a prevenir situações de superendividamento.
Como ferramentas, cabe ao Poder Público promover a criação de mecanismos de prevenção e de tratamento de situações de superendividamento.
Cabe aos agentes públicos exercer a criatividade para operacionalizar essa diretriz legal.
Apresentamos uma sugestão: os Procons, com sua capilaridade nacional, poderiam avançar, intermediando contatos entre os consumidores superendividados e os credores a fim de encontrar uma solução consensual viável. Poderiam oferecer serviços de mediação e conciliação, contando com a atuação de profissionais que fossem agentes públicos ou, até mesmo, em parceria com núcleos de práticas jurídicas vinculados às faculdades de direito da localidade.
Cite-se, nesse ponto, o princípio do estímulo à autocomposição extraível dos textos dos §§ 2º e 3º do art. 3º do CPC-15.
7. Superendividamento e mínimo existencial (art. 6º, XI e XII, e art. 54-A do CDC)
“Art. 6º ……………………………….
XI – a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas;
…………………………………………..
XII – a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na repactuação de dívidas e na concessão de crédito;
…………………………………………..”
“CAPÍTULO VI-A
DA PREVENÇÃO E DO TRATAMENTO DO SUPERENDIVIDAMENTO
Art. 54-A. Este Capítulo dispõe sobre a prevenção do superendividamento da pessoa natural, sobre o crédito responsável e sobre a educação financeira do consumidor.
§ 1º Entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação.
§ 2º As dívidas referidas no § 1º deste artigo englobam quaisquer compromissos financeiros assumidos decorrentes de relação de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada.
§ 3º O disposto neste Capítulo não se aplica ao consumidor cujas dívidas tenham sido contraídas mediante fraude ou má-fé, sejam oriundas de contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento ou decorram da aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor.”
Os dispositivos acima tratam da definição de superendividamento e do direito ao mínimo existencial em operações de crédito. Sobre o tema, reportamos o nosso leitor ao que expusemos nos itens 2 a 5 deste artigo.
8. Transparência e práticas abusivas na oferta de crédito (art. 6º, XIII, art. 54-B, art. 54-C, I a IV e parágrafo único, art. 54-D, art. 54-G do CDC)
“Art. 6º ……………………………….
…………………………………………..
XIII – a informação acerca dos preços dos produtos por unidade de medida, tal como por quilo, por litro, por metro ou por outra unidade, conforme o caso.
…………………………………………..”
“CAPÍTULO VI-A
DA PREVENÇÃO E DO TRATAMENTO DO SUPERENDIVIDAMENTO
…………………………………………..
Art. 54-B. No fornecimento de crédito e na venda a prazo, além das informações obrigatórias previstas no art. 52 deste Código e na legislação aplicável à matéria, o fornecedor ou o intermediário deverá informar o consumidor, prévia e adequadamente, no momento da oferta, sobre:
I – o custo efetivo total e a descrição dos elementos que o compõem;
II – a taxa efetiva mensal de juros, bem como a taxa dos juros de mora e o total de encargos, de qualquer natureza, previstos para o atraso no pagamento;
III – o montante das prestações e o prazo de validade da oferta, que deve ser, no mínimo, de 2 (dois) dias;
IV – o nome e o endereço, inclusive o eletrônico, do fornecedor;
V – o direito do consumidor à liquidação antecipada e não onerosa do débito, nos termos do § 2o do art. 52 deste Código e da regulamentação em vigor.
§ 1º As informações referidas no art. 52 deste Código e no caput deste artigo devem constar de forma clara e resumida do próprio contrato, da fatura ou de instrumento apartado, de fácil acesso ao consumidor.
§ 2º Para efeitos deste Código, o custo efetivo total da operação de crédito ao consumidor consistirá em taxa percentual anual e compreenderá todos os valores cobrados do consumidor, sem prejuízo do cálculo padronizado pela autoridade reguladora do sistema financeiro.
§ 3º Sem prejuízo do disposto no art. 37 deste Código, a oferta de crédito ao consumidor e a oferta de venda a prazo, ou a fatura mensal, conforme o caso, devem indicar, no mínimo, o custo efetivo total, o agente financiador e a soma total a pagar, com e sem financiamento.
Art. 54-C. É vedado, expressa ou implicitamente, na oferta de crédito ao consumidor, publicitária ou não:
I – fazer referência a crédito ‘sem juros’, ‘gratuito’, ‘sem acréscimo’, com ‘taxa zero’ ou a expressão de sentido ou entendimento semelhante; VETADO
II – indicar que a operação de crédito poderá ser concluída sem consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da situação financeira do consumidor;
III – ocultar ou dificultar a compreensão sobre os ônus e os riscos da contratação do crédito ou da venda a prazo;
IV – assediar ou pressionar o consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, principalmente se se tratar de consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio;
…………………………………………….
Parágrafo único. O disposto no inciso I do caput deste artigo não se aplica à oferta de produto ou serviço para pagamento por meio de cartão de crédito. VETADO
Art. 54-D. Na oferta de crédito, previamente à contratação, o fornecedor ou o intermediário deverá, entre outras condutas:
I – informar e esclarecer adequadamente o consumidor, considerada sua idade, sobre a natureza e a modalidade do crédito oferecido, sobre todos os custos incidentes, observado o disposto nos arts. 52 e 54-B deste Código, e sobre as consequências genéricas e específicas do inadimplemento;
II – avaliar, de forma responsável, as condições de crédito do consumidor, mediante análise das informações disponíveis em bancos de dados de proteção ao crédito, observado o disposto neste Código e na legislação sobre proteção de dados;
III – informar a identidade do agente financiador e entregar ao consumidor, ao garante e a outros coobrigados cópia do contrato de crédito.
Parágrafo único. O descumprimento de qualquer dos deveres previstos no caput deste artigo e nos arts. 52 e 54-C deste Código poderá acarretar judicialmente a redução dos juros, dos encargos ou de qualquer acréscimo ao principal e a dilação do prazo de pagamento previsto no contrato original, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e as possibilidades financeiras do consumidor, sem prejuízo de outras sanções e de indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ao consumidor.
…………………………………………..
Art. 54-G. Sem prejuízo do disposto no art. 39 deste Código e na legislação aplicável à matéria, é vedado ao fornecedor de produto ou serviço que envolva crédito, entre outras condutas:
I – realizar ou proceder à cobrança ou ao débito em conta de qualquer quantia que houver sido contestada pelo consumidor em compra realizada com cartão de crédito ou similar, enquanto não for adequadamente solucionada a controvérsia, desde que o consumidor haja notificado a administradora do cartão com antecedência de pelo menos 10 (dez) dias contados da data de vencimento da fatura, vedada a manutenção do valor na fatura seguinte e assegurado ao consumidor o direito de deduzir do total da fatura o valor em disputa e efetuar o pagamento da parte não contestada, podendo o emissor lançar como crédito em confiança o valor idêntico ao da transação contestada que tenha sido cobrada, enquanto não encerrada a apuração da contestação;
II – recusar ou não entregar ao consumidor, ao garante e aos outros coobrigados cópia da minuta do contrato principal de consumo ou do contrato de crédito, em papel ou outro suporte duradouro, disponível e acessível, e, após a conclusão, cópia do contrato;
III – impedir ou dificultar, em caso de utilização fraudulenta do cartão de crédito ou similar, que o consumidor peça e obtenha, quando aplicável, a anulação ou o imediato bloqueio do pagamento, ou ainda a restituição dos valores indevidamente recebidos.
§ 1º Sem prejuízo do dever de informação e esclarecimento do consumidor e de entrega da minuta do contrato, no empréstimo cuja liquidação seja feita mediante consignação em folha de pagamento, a formalização e a entrega da cópia do contrato ou do instrumento de contratação ocorrerão após o fornecedor do crédito obter da fonte pagadora a indicação sobre a existência de margem consignável.
§ 2º Nos contratos de adesão, o fornecedor deve prestar ao consumidor, previamente, as informações de que tratam o art. 52 e o caput do art. 54-B deste Código, além de outras porventura determinadas na legislação em vigor, e fica obrigado a entregar ao consumidor cópia do contrato, após a sua conclusão.
Os dispositivos focam a necessidade de transparência perante o consumidor nas operações de crédito. Exigem que o fornecedor se valha de um linguajar acessível ao indivíduo médio e com clareza acerca das condições negociais.
Também enfatizam que práticas comerciais abusivas de sedução na oferta de créditos devem ser censuradas.
Em linhas gerais, podemos observar que se trata de uma normatização que imprime concretude à cláusula geral de boa-fé, especialmente na perspectiva da lealdade e do dever de informação.
Sobre as razões do veto ao inciso I, do art. 54-C, a Presidência da República assim se pronunciou:
“A propositura legislativa estabelece que seria vedado expressa ou implicitamente, na oferta de crédito ao consumidor, publicitária ou não, fazer referência a crédito ‘sem juros’, ‘gratuito’, ‘sem acréscimo’ ou com ‘taxa zero’ ou expressão de sentido ou entendimento semelhante.
Entretanto, apesar da boa intenção do legislador, a propositura contrariaria o interesse público ao tentar solucionar problema de publicidade enganosa ou abusiva com restrição à oferta, proibindo operações que ocorrem no mercado usualmente e sem prejuízo ao consumidor, em que o fornecedor oferece crédito a consumidores, incorporando os juros em sua margem sem necessariamente os estar cobrando implicitamente, sem considerar que existem empresas capazes de ofertar de fato ‘sem juros’, para o que restringiria as formas de obtenção de produtos e serviços ao consumidor.
O mercado pode e deve oferecer crédito nas modalidades, nos prazos e com os custos que entender adequados, com adaptação natural aos diversos tipos de tomadores, o que constitui em relevante incentivo à aquisição de bens duráveis, e a Lei não deve operar para vedar a oferta do crédito em condições específicas, desde que haja regularidade em sua concessão, pois o dispositivo não afastaria a oferta das modalidades de crédito referidas, entretanto, limitaria as condições concorrenciais nos mercados”.
Vamos observar se o veto será ou não manido pelo Congresso Nacional.
9. Coligação contratual entre o financiamento e o fornecimento do produto ou do serviço (art. 54-F do CDC)
Art. 54-F. São conexos, coligados ou interdependentes, entre outros, o contrato principal de fornecimento de produto ou serviço e os contratos acessórios de crédito que lhe garantam o financiamento, quando o fornecedor de crédito:
I – recorrer aos serviços do fornecedor de produto ou serviço para a preparação ou a conclusão do contrato de crédito;
II – oferecer o crédito no local da atividade empresarial do fornecedor de produto ou serviço financiado ou onde o contrato principal for celebrado.
§ 1º O exercício do direito de arrependimento nas hipóteses previstas neste Código, no contrato principal ou no contrato de crédito, implica a resolução de pleno direito do contrato que lhe seja conexo.
§ 2º Nos casos dos incisos I e II do caput deste artigo, se houver inexecução de qualquer das obrigações e deveres do fornecedor de produto ou serviço, o consumidor poderá requerer a rescisão do contrato não cumprido contra o fornecedor do crédito.
§ 3º O direito previsto no § 2º deste artigo caberá igualmente ao consumidor:
I – contra o portador de cheque pós-datado emitido para aquisição de produto ou serviço a prazo;
II – contra o administrador ou o emitente de cartão de crédito ou similar quando o cartão de crédito ou similar e o produto ou serviço forem fornecidos pelo mesmo fornecedor ou por entidades pertencentes a um mesmo grupo econômico.
§ 4º A invalidade ou a ineficácia do contrato principal implicará, de pleno direito, a do contrato de crédito que lhe seja conexo, nos termos do caput deste artigo, ressalvado ao fornecedor do crédito o direito de obter do fornecedor do produto ou serviço a devolução dos valores entregues, inclusive relativamente a tributos.
OBJETO DO DISPOSITIVO, TERMINOLOGIA E ALCANCE
Contratos conexos são aqueles que guardam, entre si, um vínculo em razão do qual a inexistência, a invalidade ou a ineficácia de um pode influir nos demais. Há diferentes tipos de contratos conexos: (1) contrato acessório; (2) subcontrato; (3) contrato normativo ou guarda-chuva; (4) contrato relacional ou cativo de longa duração; e (5) contrato coligado.
O dispositivo trata dos contratos coligados. Nesses, a conexão contratual consiste em uma relação de dependência causal-funcional: um contrato não teria sido celebrado se não fosse o outro. É o que se dá, por exemplo, no caso de aquisição de bens com financiamento bancário: o contrato de compra e venda não seria celebrado se não fosse o contrato de mútuo, e vice-versa. Um contrato é a causa do outro. Há, pois, um caso de contrato coligado.
Sobre essa tipologia, escrevem Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona:
“… os contratos coligados guardam uma íntima vinculação de dependência entre si, como ocorre nos contratos firmados com donos de postos de gasolina, mencionado linhas acima, ou na hipótese de contratos (por exemplo, de empréstimo — mútuo ou comodato) firmados entre empregado e empregador no curso do contrato de emprego e a este vinculado. Os contratos unem-se formando uma espécie de bloco contratual capilarizado entre si. A impressão que se tem é que se trata de um contrato misto, mas tal imagem se desfaz ao procedermos com uma análise de fundo, e concluirmos pela existência de autonomia jurídica entre as diversas figuras vinculadas”[13].
Entendemos haver certa atecnia na redação do caput do art. 54-F ao rotular, como acessório, o contrato de concessão de crédito e, como principal, o contrato de aquisição de um bem ou serviço.
Não se trata, a rigor, de contrato acessório nem de contrato principal.
Contrato acessório é aquele que, ontologicamente, supõe necessariamente um principal, a exemplo de um contrato de fiança: não há razão de ser em celebrar uma fiança se não houver um contrato principal.
No caso de contratos de mútuo ou financiamento, isso não se dá. Ele pode ser celebrado isoladamente. O vínculo de conexão que ele guarda com o contrato de aquisição do produto e do serviço é uma dependência causal-funcional, e não uma relação de acessoriedade. Estamos, pois, diante de contratos coligados, e não de contratos acessórios.
A atecnia redacional, porém, não gera prejuízo.
O que importa é que o preceito acima deixa claro que, se, no caso concreto, houver vínculo entre o fornecedor do serviço ou do produto e o fornecedor do crédito, a coligação contratual é manifesta a atrair o “efeito dominó”: o naufrágio de um dos contratos por invalidade ou ineficácia afundará também o outro contrato (art. 54, §§ 1º e 4º, do CDC).
O STJ já sinalizava nesse sentido em casos similares, embora se apoiasse em outro fundamento: o da solidariedade do fornecedor do crédito com o fornecedor do produto ou serviço no caso de haver vínculo entre eles. Confira-se este julgado, por exemplo, em que o STJ afastou o efeito dominó pela falta de vínculo entre o financiador e o vendedor do veículo:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO DO CONSUMIDOR E RESPONSABILIDADE CIVIL. COMPRA E VENDA DE AUTOMÓVEL COM PACTO ADJETO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. CONTRATOS COLIGADOS, COM INTERDEPENDÊNCIA DOS NEGÓCIOS DISTINTOS FIRMADOS. SOLIDARIEDADE OBRIGACIONAL ENTRE A REVENDA E O BANCO QUE FINANCIA A COMPRA E VENDA PARA REPARAÇÃO DE EVENTUAIS DANOS. INEXISTÊNCIA. (…)
1. O contrato coligado não constitui um único negócio jurídico com diversos instrumentos, mas sim uma pluralidade de negócios jurídicos, ainda que celebrados em um só documento, pois é a substância, e não a forma, do negócio jurídico que lhe dá amparo. Em razão da força da conexão contratual e dos preceitos consumeristas incidentes na espécie – tanto na relação jurídica firmada com a revenda de veículos usados quanto no vínculo mantido com a casa bancária -, o vício determinante do desfazimento da compra e venda atinge igualmente o financiamento, por se tratar de relações jurídicas trianguladas, cada uma estipulada com o fim precípuo de garantir a relação jurídica antecedente da qual é inteiramente dependente, motivo pelo qual a possível arguição da exceção de contrato não cumprido constitui efeito não de um ou outro negócio isoladamente considerado, mas da vinculação jurídica entre a compra e venda e o mútuo/parcelamento. Precedente.
2. Por um lado, “a ineficácia superveniente de um dos negócios não tem o condão de unificar os efeitos da responsabilização civil, porquanto, ainda que interdependentes entre si, parcial ou totalmente, os ajustes coligados constituem negócios jurídicos com características próprias, a ensejar interpretação e análise singular, sem contudo, deixar à margem o vínculo unitário dos limites da coligação” (REsp 1127403/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Rel. p/ Acórdão Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 04/02/2014, DJe 15/08/2014). Com efeito, “apenas há falar em responsabilidade solidária no caso de a instituição financeira estar vinculada à concessionária do veículo – hipótese em que se trata de banco da própria montadora -, o que não se constata na espécie. Precedentes”. (AgInt no REsp 1519556/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/11/2016, DJe 25/11/2016).
(…)
(STJ, REsp 1406245/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 24/11/2020, DJe 10/02/2021)
O dispositivo reforça a jurisprudência do STJ e, de certa forma, até a amplia por flexibilizar o requisito do vínculo entre o fornecedor do crédito e o fornecedor do produto. No caso de venda de veículo mediante financiamento, não há necessidade de que o financiador seja um “banco da concessionária ou da montadora do veículo”, ao contrário do que tende a exigir o STJ.
Basta que o fornecedor do crédito haja recorrido aos serviços do fornecedor (do produto ou do serviço) para a preparação ou a conclusão do seu contrato ou, simplesmente, ofereça o crédito no local da atividade empresarial do fornecedor (do produto ou do serviço) financiado ou onde o contrato principal for celebrado.
10. Abusividade de cláusula que dificulta o acesso ao Judiciário pelo consumidor ou que imponha desistência de ação judicial como condição de oferta de crédito (art. 51, XVII, e art. 54-C, V, do CDC)
“Art. 51. ……………………………
…………………………………………….
XVII – condicionem ou limitem de qualquer forma o acesso aos órgãos do Poder Judiciário;
…………………………………………….”
“Art. 54-C. É vedado, expressa ou implicitamente, na oferta de crédito ao consumidor, publicitária ou não:
…………………………………………….
V – condicionar o atendimento de pretensões do consumidor ou o início de tratativas à renúncia ou à desistência de demandas judiciais, ao pagamento de honorários advocatícios ou a depósitos judiciais.
…………………………………………….”
Os preceitos acima visam a coibir todo e qualquer obstáculo que impeça ou limite o acesso ao Poder Judiciário, e, também, estipulações abusivas que condicionem o legítimo exercício de pretensão ou direito em face do fornecedor.
Essa vedação vale não apenas para casos de fornecimento de crédito. O art. 51, XVII, do CDC não faz essa restrição. Em qualquer relação de consumo, é abusiva cláusula que condicione ou limite o acesso ao Judiciário.
É preciso, porém, deixar claro que essas restrições não impedem transações. Os acordos judiciais ou extrajudiciais são bem-vindos dentro do ambiente atual de estímulo aos meios consensuais de solução de litígio.
O que os dispositivos acima censuram, em síntese, é a prática de certos fornecedores no sentido de negar novos produtos ou serviços ao consumidor (1) enquanto este não desistir de uma demanda judicial anterior, relativa a outros contratos, ou (2) se o consumidor não se curvar a cláusulas que dificultem a judicialização do contrato em pauta. Coerção negocial dessa natureza é abusiva.
11. Cláusulas abusivas no caso de inadimplemento pelo consumidor (art. 51, XVIII, do CDC)
“Art. 51. ……………………………….
…………………………………………….
XVIII – estabeleçam prazos de carência em caso de impontualidade das prestações mensais ou impeçam o restabelecimento integral dos direitos do consumidor e de seus meios de pagamento a partir da purgação da mora ou do acordo com os credores;
…………………………………………….”
Cláusula de suspensão de fruição de direitos após a purgação da mora
Os dispositivos supracitados censuram punições ao consumidor inadimplente após a purgação da mora. Coíbem uma espécie de “castigo” aplicado ao consumidor após este haver pago, com atraso, as parcelas vencidas. Trata-se de abuso de direito.
Indiretamente, o preceito acima deixa em aberto a discussão sobre a legalidade de cláusulas de suspensão de fruição de direitos na pendência da situação de inadimplência.
12. Aplicação do CDC diante de leis internacionais (art. 51, XIX, do CDC): Razões do Veto
“Art. 51. ……………………………….
…………………………………………….
XIX – prevejam a aplicação de lei estrangeira que limite, total ou parcialmente, a proteção assegurada por este Código ao consumidor domiciliado no Brasil. VETADO
…………………………………………….”
Razões do veto
O dispositivo supra fora vetado:
“A propositura legislativa estabelece que seriam nulas de pleno direito as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de serviços e produtos que previssem a aplicação de lei estrangeira que limitasse, total ou parcialmente, a proteção assegurada por este Código.
Entretanto, apesar da boa intenção do legislador, a propositura contrariaria interesse público tendo em vista que restringiria a competitividade, prejudicando o aumento de produtividade do País, ao restringir de forma direta o conjunto de opções dos consumidores brasileiros, especialmente quanto à prestação de serviços de empresas domiciliadas no exterior a consumidores domiciliados no Brasil, o que implicaria restrição de acesso a serviços e produtos internacionais. Em virtude de a oferta de serviços e de produtos ser realizada em escala global, principalmente, por meio da internet, é impraticável que empresas no exterior conheçam e se adequem às normas consumeristas nacionais.” (razões do veto).
De fato, a previsão normativa poderia ser prejudicial, porquanto uma interpretação literal do preceito poderia soar perigosa.
A rigor, se um consumidor domiciliado no Brasil comprasse, pela internet, uma passagem aérea da companhia Iceland Air (sediada na belíssima cidade de Reykjavik, na Islândia), esse contrato teria de ser submetido ao CDC, salvo se a lei islandesa fosse mais favorável ao consumidor.
Não pode, porém, prosperar uma interpretação dessa por três motivos.
O primeiro é que empresas estrangeiras que não tenham filiais no Brasil poderiam simplesmente fechar as portas para consumidores domiciliados em território brasileiro, o que evidentemente não foi a intenção do legislador.
O segundo é que o consumidor que vai em busca de serviços e produtos de empresas estrangeiras sem filiais no Brasil está voluntariamente se submetendo à legislação estrangeira. Sua liberdade de consumidor fora do País acarreta-lhe também a responsabilidade de atentar para a legislação estrangeira.
O terceiro é que a Lei de Superendividamento só deve alcançar empresas estrangeiras que se voltem especificamente ao mercado de consumo brasileiro, o que se dá quando existem filiais no Brasil.
13. Procedimento judicial de conciliação no superendividamento (arts. 104-A a 104-C do CDC)
CAPÍTULO V
DA CONCILIAÇÃO NO SUPERENDIVIDAMENTO
‘Art. 104-A. A requerimento do consumidor superendividado pessoa natural, o juiz poderá instaurar processo de repactuação de dívidas, com vistas à realização de audiência conciliatória, presidida por ele ou por conciliador credenciado no juízo, com a presença de todos os credores de dívidas previstas no art. 54-A deste Código, na qual o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de 5 (cinco) anos, preservados o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, e as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas.
§ 1o Excluem-se do processo de repactuação as dívidas, ainda que decorrentes de relações de consumo, oriundas de contratos celebrados dolosamente sem o propósito de realizar pagamento, bem como as dívidas provenientes de contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural.
§ 2o O não comparecimento injustificado de qualquer credor, ou de seu procurador com poderes especiais e plenos para transigir, à audiência de conciliação de que trata o caput deste artigo acarretará a suspensão da exigibilidade do débito e a interrupção dos encargos da mora, bem como a sujeição compulsória ao plano de pagamento da dívida se o montante devido ao credor ausente for certo e conhecido pelo consumidor, devendo o pagamento a esse credor ser estipulado para ocorrer apenas após o pagamento aos credores presentes à audiência conciliatória.
§ 3o No caso de conciliação, com qualquer credor, a sentença judicial que homologar o acordo descreverá o plano de pagamento da dívida e terá eficácia de título executivo e força de coisa julgada.
§ 4o Constarão do plano de pagamento referido no § 3o deste artigo:
I – medidas de dilação dos prazos de pagamento e de redução dos encargos da dívida ou da remuneração do fornecedor, entre outras destinadas a facilitar o pagamento da dívida;
II – referência à suspensão ou à extinção das ações judiciais em curso;
III – data a partir da qual será providenciada a exclusão do consumidor de bancos de dados e de cadastros de inadimplentes;
IV – condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento.
§ 5o O pedido do consumidor a que se refere o caput deste artigo não importará em declaração de insolvência civil e poderá ser repetido somente após decorrido o prazo de 2 (dois) anos, contado da liquidação das obrigações previstas no plano de pagamento homologado, sem prejuízo de eventual repactuação.
Art. 104-B. Se não houver êxito na conciliação em relação a quaisquer credores, o juiz, a pedido do consumidor, instaurará processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório e procederá à citação de todos os credores cujos créditos não tenham integrado o acordo porventura celebrado.
§ 1o Serão considerados no processo por superendividamento, se for o caso, os documentos e as informações prestadas em audiência.
§ 2o No prazo de 15 (quinze) dias, os credores citados juntarão documentos e as razões da negativa de aceder ao plano voluntário ou de renegociar.
§ 3o O juiz poderá nomear administrador, desde que isso não onere as partes, o qual, no prazo de até 30 (trinta) dias, após cumpridas as diligências eventualmente necessárias, apresentará plano de pagamento que contemple medidas de temporização ou de atenuação dos encargos.
§ 4o O plano judicial compulsório assegurará aos credores, no mínimo, o valor do principal devido, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço, e preverá a liquidação total da dívida, após a quitação do plano de pagamento consensual previsto no art. 104-A deste Código, em, no máximo, 5 (cinco) anos, sendo que a primeira parcela será devida no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, contado de sua homologação judicial, e o restante do saldo será devido em parcelas mensais iguais e sucessivas.
Art. 104-C. Compete concorrente e facultativamente aos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor a fase conciliatória e preventiva do processo de repactuação de dívidas, nos moldes do art. 104-A deste Código, no que couber, com possibilidade de o processo ser regulado por convênios específicos celebrados entre os referidos órgãos e as instituições credoras ou suas associações.
§ 1o Em caso de conciliação administrativa para prevenir o superendividamento do consumidor pessoa natural, os órgãos públicos poderão promover, nas reclamações individuais, audiência global de conciliação com todos os credores e, em todos os casos, facilitar a elaboração de plano de pagamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, sob a supervisão desses órgãos, sem prejuízo das demais atividades de reeducação financeira cabíveis.
§ 2o O acordo firmado perante os órgãos públicos de defesa do consumidor, em caso de superendividamento do consumidor pessoa natural, incluirá a data a partir da qual será providenciada a exclusão do consumidor de bancos de dados e de cadastros de inadimplentes, bem como o condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento, especialmente a de contrair novas dívidas.”
Inspirado no modelo francês[14], que prestigia o direito do superendividado a obter um novo recomeço, os preceitos acima estabelecem um procedimento específico destinado a assegurar ao consumidor superendividado o direito a renegociar as dívidas.
O procedimento prestigia uma solução consensual das partes, mas, no caso de sua frustração, caberá ao juiz aprovar um plano judicial compulsório de parcelamento da dívida.
Posto não se identifique, equipara-se à Recuperação Judicial do empresário e de sociedade empresária prevista na Lei nº 11.101/05, embora, claro, guarde diversas especificidades, especialmente ao se levar em conta que o seu destinatário é o consumidor pessoa física.
Vale salientar: frustrado o “processo de repactuação de dívidas” (art. 104-A), instaura-se o “processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes” (art. 104-B), caso em que será apresentado um “plano judicial compulsório”.
Apesar de os referidos preceitos fazerem menção a “processos”, parece-nos mais adequado que há apenas um processo, com duas fases procedimentais: uma de “repactuação de dívidas” e outra “de revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes”, da qual resultará um plano judicial compulsório. Essa última iniciar-se-á com mera petição do consumidor no bojo do feito após a frustração, total ou parcial, das tentativas de autocomposição. O próprio caput do art. 104-B do CDC dá suporte a essa interpretação, pois sua redação dá noção da existência de uma linha de continuidade processual.
O processo por superendividamento será instaurado a pedido do consumidor, ou seja, não há espaço legal para a atuação judicial de ofício.
As peculiaridades de todo esse procedimento, que envolve, inclusive, vetores metajurídicos (carga emocional derivada do strepitus fori, o abalo psicológico vivenciado pelo consumidor superendividado, os complexos aspectos econômicos em jogo) recomendam, em nosso sentir, que as respectivas Leis de Organização Judiciária Estaduais criem unidades especializadas na matéria atinente ao superendividamento. Sem dúvida, é a melhor solução.
14. Idoso e superendividamento (art. 96, § 3º, do Estatuto do Idoso)
“Art. 96. ………………………….
§ 3º Não constitui crime a negativa de crédito motivada por superendividamento do idoso.”
Como forma de afastar o receio do mercado em negar crédito a idosos sem capacidade financeira suficiente, a supracitada alteração no Estatuto do Idoso deixa clara a ausência de crime nessa hipótese.
15. Vigência e retroatividade (art. 3º e art. 4º da Lei do Superendividamento)
Art. 3º A validade dos negócios e dos demais atos jurídicos de crédito em curso constituídos antes da entrada em vigor desta Lei obedece ao disposto em lei anterior, mas os efeitos produzidos após a entrada em vigor desta Lei subordinam-se aos seus preceitos.
Art. 4º O disposto no caput do art. 54-E da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), não se aplica às operações de crédito consignado e de cartão de crédito com reserva de margem celebradas ou repactuadas antes da entrada em vigor desta Lei com amparo em normas específicas ou de vigência temporária que admitam percentuais distintos de margem e de taxas e encargos, podendo ser mantidas as margens estipuladas à época da contratação até o término do prazo inicialmente acordado. VETADO
O art. 3º do CC espelha-se no art. 2.035 do CC.
“Se, por um lado”, escreve Pablo Stolze Gagliano, “não pode a lei nova atingir a ‘validade’ dos negócios jurídicos já constituídos, por outro, se os ‘efeitos’ do ato penetrarem o âmbito de vigência” da nova Lei, “deverão se subordinar aos seus preceitos”.[15]
Isso quer dizer que aspectos referentes, por exemplo, à validade (nulidade) de um contrato de concessão de crédito obedecerá à lei do tempo da sua celebração, mas no que se refere, não à validade, mas à própria executoriedade (eficácia) do contrato, normas da nova Lei poderão ser aplicadas, a exemplo daquelas constantes no art. 54-F que trata da coligação de contratos.
Acrescente-se que as normas referentes à conciliação no superendividamento (arts. 104-A a 104-C), por terem natureza processual têm aplicação imediata.
A Lei do Superendividamento, em muitos pontos, apenas positiva o princípio do crédito responsável, já admitido no ordenamento pela Constituição Federal e pelo CDC conforme exposto no item 2 deste artigo. Aplicar o referido princípio a atos jurídicos perfeitos anteriores à Lei do Superendividamento não é propriamente uma retroatividade[16].
Sem dúvida, temos uma grande lei.
E esperamos que a sua aplicação marque uma nova fase na história do
Direito do Consumidor brasileiro.
[1] Juiz de Direito. Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Professor da Universidade Federal da Bahia. Coautor do Manual de Direito Civil e do Novo Curso de Direito Civil (Ed. Saraiva).
[2] Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Advogado, ex-Advogado da União e ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na Universidade de Brasília – UnB. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual, do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil. Instagram: @profcarloselias. E-mail: carloseliasdeoliveira@yahoo.com.br
[3] LIMA, Clarissa Costa De. O tratamento do superendividamento e o direito de recomeçar dos consumidores. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.
[4] SILVA E SAMPAIO, Marília de Ávila e. Justiça e Superendivamento: um estudo de caso sobre decisões judiciais no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016. A obra foi objeto deste artigo da Professora Cláudia Lima Marques:
– MARQUES, Claudia Lima. Justiça e superendividamento: um estudo de caso sobre decisões judiciais no Brasil, de Marília de Ávila e Silva Sampaio. In: Revista de Direito do Consumidor. vol. 107. ano 25. p. 635-648. São Paulo: Ed. RT, set.-out. 2016 (Disponível em: https://revistadedireitodoconsumidor.emnuvens.com.br/rdc/article/view/743)(. No panorama do tema, merece também referência a obra de PELLEGRINO, Fabiana Andrea de Almeida Oliveira. Tutela Jurídcia do Superendividamento. Salvador: JusPodivm.
[5] Sobre o tema, confira-se:
– CARQUI, Vagner Bruno Caparelli. Princípio do crédito responsável: evitabilidade do superendividamento e promoção da pessoa humana na sociedade de consumo. Dissertação de Mestrado no Programa de Pós-Gradução em Direito na Universidade Federal de Uberlândia (orientadora Profa. Keila Pacheco Ferreira), 2016 (Disponível em: https://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/18854/1/PrincipioCreditoReponsavel.pdf
[6] Convém citar, por exemplo, este excerto do voto da Desembargadora Simone Lucindo:
“Quanto à alegação de superendividamento, é certo que as empresas, ao concederem o crédito, devem adotar as cautelas necessárias ao efetivo recebimento do retorno financeiro e, ao lado disso, devem tomar medidas visando coibir a superveniência do superendividamento dos devedores, preservando, assim, o patrimônio mínimo a garantir a dignidade humana. Trata-se da aplicação da teoria do crédito responsável.” (TJDFT, Acórdão 1095565, 20180110080656APC, 1ª Turma, Rel. Desembargadora Simone Lucindo, DJE: 15/5/2018)
[7] Art. 54-A, § 1º, do CDC: “Entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação”.
[8] OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de Oliveira. O princípio da proteção simplificada do luxo, o princípio da proteção simplificada do agraciado e a responsabilidade civil do generoso. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Dezembro/2018 (Texto para Discussão nº 254). Disponível em: www.senado.leg.br/estudos.
[9] OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de Oliveira. O princípio da proteção simplificada do luxo, o princípio da proteção simplificada do agraciado e a responsabilidade civil do generoso. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Dezembro/2018 (Texto para Discussão nº 254).
[10] FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2001.
[11] A Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) é órgão do Ministério da Justiça que detém a competência para coordenar a política nacional de proteção e defesa do consumidor (Anexo I do Decreto nº 9.662/2019). Ela coordena o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (art. 3º, Decreto nº 2.181/1997).
[12] O Conselho Nacional de Defesa do Consumidor é órgão que, na essência, serve de apoio consultivo, propondo recomendações aos órgãos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (Decreto nº 10.417/2020).
[13] GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil – Contratos – vol. 04. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 189.
[14] Reportamo-nos a estes trabalhos: PEREIRA, Andressa; ZAGANELLI, Margareth Vetis. Superendividamento do consumidor: prevenção e tratamento sob o prisma da dignidade da pessoa humana. Disponível em: https://periodicos.unicesumar.edu.br/index.php/revjuridica/article/download/6864/3397/. Acesso em 18 de junho de 2021; WODTKE, Guilherme Domingos Gonçalves. O superendividamento do consumidor: as possíveis previsões legais para seu tratamento. Disponível em: https://www.pucrs.br/direito/wp-content/uploads/sites/11/2018/09/guilherme_wodtke_2014_2.pdf. Acesso em 18 de junho de 2021; SILVA, Daniela Borges. Regulação para o tratamento do superendividamento: diretrizes para a construção de um modelo de falência da pessoa natural no Brasil. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/27342/2019_02_22%20Disserta%c3%a7%c3%a3o_Gabriela%20Borges%20%28web%29.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Elaborado em 2019.
[15] GAGLIANO, Pablo Stolze. Comentários ao Código Civil Brasileiro – Do Direito das Sucessões – Arts. 1.912 a 2.046, Vol. XVII (Henrique de Mello, Maria Isabel do Prado e Pablo Stolze Gagliano, coord. Arruda Alvim e Thereza Alvim). Rio de Janeiro: 2008, Gen/Forense, p. 606.
[16] Para aprofundamento, reportamo-nos a este artigo: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de Oliveira. Retroatividade das leis: a situação das leis emergenciais em tempos de pandemia. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/335960/retroatividade-das-leis–a-situacao-das-leis-emergenciais-em-tempos-de-pandemia. Publicado em 5 de novembro de 2019.No mesmo sentido, tratando da inaplicabilidade da Lei do Distrato para “distratos” relativos a contratos anteriores, o STJ reafirmou o descabimento da retroatividade mínima (STJ, Questão de Ordem no REsp 1.498.484/DF, 2ª Seção, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 25/06/2019). O STF seguiu a mesma linha de proibir a retroatividade mínima diante de atos jurídicos perfeitos ao proibir a aplicação da Lei dos Planos de Saúde – LPS (Lei nº 9.565/1998) a contratos anteriores (STF, ADI 1931, Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 08-06-2018).