Carlos E. Elias de Oliveira[1] Pablo Stolze Gagliano[2]
Resumo
1. A competência para o processo judicial de repactuação das dívidas do consumidor superendividado é da justiça comum mesmo quando, entre os credores, houver empresa pública federal (item 3).
2. É incompatível com o procedimento dos Juizados Especiais o processo de repactuação das dívidas do consumidor (item 4).
3. Dívidas perante o Poder Público não são alcançadas pelo procedimento judicial de repactuação das dívidas do consumidor (item 5).
4. Na fixação das parcelas do plano judicial compulsório, o juiz deve levar em conta a capacidade financeira futura do consumidor. No caso de consumidor assalariado, convém a fixação das parcelas em percentual do salário (item 6).
5. Após 5 anos do plano judicial compulsório, há a extinção de qualquer saldo devedor remanescente, independentemente de revisão posterior (itens 7, 8 e 9).
6. É cabível ação revisional no caso de mudança posterior da capacidade financeira do consumidor no caso de plano judicial compulsório (itens 8 e 9).
7. No caso de acordo entre o consumidor superendividado e os credores, a ação revisional é cabível no caso de empobrecimento posterior do consumidor, mas – salvo pacto expresso em contrário – é vedada no caso de enriquecimento superveniente (item 10).
1. Introdução
Quando da entrada em vigor da Lei do Superendividamento (Lei nº 14.181/2021), publicamos artigo comentando cada um dos dispositivos e apresentando os fundamentos teóricos e o contexto histórico. Reportamos o(a) amigo(a) leitor(a) ao referido artigo para aprofundamento[3].
Diversas questões práticas, porém, podem ser suscitadas a respeito do conjunto normativo que se extrai do texto da novel lei, especialmente em relação à sua parte mais impressiva: o procedimento judicial de repactuação das dívidas, inserido nos arts. 104-A e 104-B do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Focaremos, neste artigo, algumas questões práticas nesse procedimento.
2. Síntese do procedimento
O procedimento judicial de repactuação das dívidas é a via pela qual o devedor superendividado busca uma nova chance, um fresh start. Esse procedimento divide-se em duas fases:
(1) a fase conciliatória, prevista no art. 104-A do CDC; e
(2) a fase da repactuação judicial compulsória, previsto no art. 104-B do CDC.
O procedimento tem início com uma petição inicial por meio da qual o devedor demonstra que atende aos requisitos legais para configuração da sua situação jurídica de superenvidado, abrindo, com isso, espaço para a obtenção dos direitos à conciliação e à repactuação judicial compulsória. Os requisitos são os seguintes:
- a incapacidade financeira de garantir o mínimo existencial (art. 6º, XII, 54-A, § 1º, CDC);
- a ausência de má-fé ou de fraude na obtenção das dívidas (art. 54-A, § 3º, e art. 104-A, § 1º, CDC), observado que esses conceitos devem ser interpretados restritiva e teleologicamente, nos moldes do que defendemos em artigo anterior[4];
- a desvinculação entre as dívidas e a aquisição de produtos ou de serviços de luxo (art. 54-A, § 3º, CDC[5]);
- a não caracterização das dívidas sub oculi nas seguintes exceções: crédito com garantia real, crédito de financiamento imobiliário e crédito rural (art. 54-A, § 1º, do CDC; e
- a apresentação de proposta de plano de pagamento (art. 104-A, caput, CDC).
Para tanto, o consumidor deverá listar suas dívidas, com a indicação dos valores atualizados (se possível), explicitar a origem, expor suas fontes de renda e demonstrar a ameaça ao seu mínimo existencial.
No polo passivo, o consumidor incluirá todos os credores cujos créditos serão objeto de conciliação ou repactuação.
Não havendo acordo na fase conciliatória e após manifestação dos credores, caberá ao juiz impor um plano judicial compulsório de pagamento, na forma do art. 104-B[6].
Exposto o procedimento, passamos a tratar de questões práticas.
3. A competência será ou não da Justiça Federal se a Caixa Econômica Federal ou outra empresa pública federal for credora?
Entendemos que não.
A competência para o processo de repactuação das dívidas do consumidor superendividado não deve ser deslocado para a Justiça Federal se a Caixa Econômica Federal ou se outra empresa pública federal for credora. A competência é da justiça comum.
O art. 109, I, da Constituição Federal (CF) merece interpretação
teleológica. Embora o referido preceito fixe a competência da Justiça Federal
quando empresa pública federal for parte, essa regra é excepcionada nas causas
“de falência”. A referência a falência, aí, é constitucional. Não pode, pois, ser tomada no sentido técnico
estrito. Abrange, em verdade, todos os procedimentos de natureza
concursal. Abarca, pois, o recentemente
criado procedimento concursal relativo ao superendividamento. Engloba, assim,
processos que tenham sido etiquetados diversamente pelo legislador
infraconstitucional.
É importante registrar, portanto, nesse ponto, que a referência a “falência” no texto constitucional é, em verdade, alusiva a todos os procedimentos infraconstitucionais destinados ao tratamento das dívidas de um devedor com patrimônio líquido negativo.
Abrange, portanto, não apenas o procedimento de falência previsto na Lei nº 11.101/2005, mas também outros procedimentos etiquetados com outros títulos. É o caso, por exemplo, da recuperação judicial prevista na Lei nº 11.101/2005, do procedimento de insolvência civil de operadoras de planos de saúde nos termos do art. 23, § 1º, Lei nº 9.656/1998 bem como dos procedimentos decorrentes da intervenção e liquidação extrajudicial em instituições financeiras na forma da Lei nº 6.024/1974. A jurisprudência já caminha nesse sentido: STJ, CC 144.238/RJ, 2ª Seção, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 31/08/2016; CC 43.128/SP, 1ª Seção, Rel. Ministra Denise Arruda, DJ 01/02/2006.
Em arremate, vale lembrar que o CPC, no seu art. 45, I, expressa exatamente essa linha de entendimento, ao aludir, ao lado da falência, à recuperação judicial e à insolvência civil.
É nesse contexto que se deve compreender o procedimento judicial de conciliação e repactuação das dívidas do consumidor superendividado.
Em conclusão e em resposta à indagação formulada, a competência para o processamento é da justiça comum.
4. É ou não cabível o procedimento inaugurado pela Lei do Superendividamento nos Juizados Especiais?
Entendemos que não. Independe do valor total das dívidas envolvidas.
O procedimento judicial de repactuação das dívidas do consumidor superendividado é especial. Possui regras próprias, nos termos dos arts. 104-A e 104-B do CDC. Apesar de certa proximidade com o procedimento dos Juizados Especiais, não há compatibilidade.
Além disso, o procedimento judicial da repactuação das dívidas, no mais das vezes, haverá de exigir dilação probatória mais profunda, como para apurar os montantes das dívidas ou para averiguar o real estado de superendividamento. Daí decorre que esse procedimento não pode ser enquadrado como causa de “menor complexidade” nos termos do art. 3º da Lei de Juizados Especiais (Lei nº 9.099/1995).
5. Dívidas perante o Pode Público podem ser alcançadas pelo procedimento de repactuação das dívidas do consumidor?
Entendemos que não.
Os créditos do Poder Público são submetidos a uma disciplina legal específica. Só lei especial poderia discipliná-los.
Daí decorre que a Lei do Superendividamento não alcança as dívidas perante o Poder Público por falta de previsão específica.
Aliás, sem lei específica, os agentes públicos não dispõem de liberdade para fazer acordos ou parcelamentos de dívidas perante o Poder Público. A indisponibilidade do interesse público retira os créditos estatais da órbita de alcance da Lei do Superendividamento.
Portanto, o consumidor superendividado não pode pleitear a “repactuação” das suas dívidas nas situações em que a parte credora é uma pessoa jurídica de direito público.
Alerte-se que não se está tratando de dívidas perante empresas públicas, como a Caixa Econômica Federal, pois estas se sujeitam ao regime das pessoas jurídicas de direito privado (art. 173, § 1º, II, CF).
6. No caso do plano judicial compulsório, o juiz deve ou não fixar parcelas levando em conta as remunerações atual e futura do consumidor? É viável ou não a fixação de parcelas de valor variável, a depender da renda futura do consumidor? É ou não cabível levar em conta as leis que tratam de limites de empréstimo consignado como parâmetros?
Entendemos que sim.
Explicamos.
Na fase da repactuação compulsória, o juiz impõe aos credores um plano judicial para o pagamento das dívidas nos termos do 4º do art. 104-B do CDC, in litteris:
Art. 104-B. (…)
(…)
§ 4º O plano judicial compulsório assegurará aos credores, no mínimo, o valor do principal devido, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço, e preverá a liquidação total da dívida, após a quitação do plano de pagamento consensual previsto no art. 104-A deste Código, em, no máximo, 5 (cinco) anos, sendo que a primeira parcela será devida no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, contado de sua homologação judicial, e o restante do saldo será devido em parcelas mensais iguais e sucessivas.
Ao estabelecer plano judicial compulsório, o juiz impõe ao devedor uma forma de pagamento das dívidas que não comprometa o seu mínimo existencial. Por óbvio, esse cuidado deve ter em vista não só a situação existente no momento do estabelecimento do plano, como situações futuras. É essa, aliás, a finalidade da Lei do Superendividamento.
Por essa razão, o juiz, ao fixar as parcelas de pagamento, deve levar em consideração, no que for possível, não apenas a capacidade financeira presente do consumidor, mas também a futura, respeitado o prazo máximo de 5 anos. E tudo isso deve ser feito com olhos na garantia do mínimo existencial do consumidor.
Nessa linha, é preciso perceber que o § 4º do art. 104-B do CDC, ao estabelecer que o juiz deve fixar “parcelas mensais iguais e sucessivas”, precisa ser interpretado de forma sistemática e teleológica. Se, de um lado, quer-se garantir o mínimo existencial ao consumidor superendividado, objetiva-se, de outro lado, impedir que outros consumidores sejam prejudicados com o aumento dos preços de produtos e serviços em razão do repasse, pelos fornecedores, dos seus prejuízos.
É preciso, pois – sempre! –, analisar as circunstâncias que marcam o caso concreto.
No caso de consumidores assalariados, convém que as parcelas sejam fixadas em percentual de suas remunerações. Desse modo, se o consumidor vier a ter aumento salarial, a parcela mensal aumentará proporcionalmente. Se, porém, o salário reduzir, a parcela seguirá a mesma sina.
Para arbitramento do valor das parcelas, entendemos que, como parâmetro, os juízes devem levar em conta as normas que fixam limites para os valores das prestações nos conhecidos contratos de empréstimo consignado.
Em suma, essas normas proíbem descontos superiores a 35% do salário do devedor (art. 45, § 2º, Lei nº 8.112/90; art. 1º, § 1º, Lei nº 10.820/2003). Entendemos que esse percentual deve servir de parâmetro, pois é aquele escolhido pelo sistema jurídico como suficiente para garantir o mínimo existencial de um assalariado. Assim, a parcela fixada no plano judicial compulsório não deve extrapolar 35% do salário do consumidor.
No caso de consumidores autônomos, a situação é mais difícil pela falta de uma garantia de uma remuneração mensal. Para esses casos, o juiz poderá, a depender do caso concreto, fixar parcelas em valores fixos ou em percentual de faturamentos ou rendas específicas do consumidor, caso ele as tenha.
7. Há ou não extinção do saldo devedor remanescente após 5 anos do plano judicial compulsório?
Entendemos que sim.
O juiz, ao fixar o plano judicial compulsório, fixará parcelas durante o prazo máximo de 5 anos (art. 104-A, § 4º, CDC). Após esse prazo, eventual saldo devedor remanescente será automaticamente extinto, independentemente de declaração judicial.
8. O consumidor pode ou não propor uma ação de revisão do plano judicial compulsório em razão de superveniente empobrecimento?
Entendemos que sim.
O plano judicial compulsório carrega implicitamente uma cláusula rebus sic standibus.
Ele é implicitamente condicionado à manutenção das circunstâncias fáticas de então.
O juiz, ao fixar o plano judicial compulsório, leva em conta a capacidade financeira do consumidor no momento do estabelecimento do plano. Se, posteriormente, o consumidor sofre substancial perda de sua capacidade financeira, é viável a readequação desse plano judicial mediante ação judicial revisional proposta pelo consumidor superendividado.
Aplica-se, aqui, quanto aos efeitos da coisa julgada, o mesmo raciocínio aplicável às situações disciplinadas pelo conjunto normativo que se extrai do texto do art. 505, I, do CPC.
Seja como for, independentemente de haver ou não revisão, as dívidas devem ser extintas após o transcurso de 5 anos do plano judicial compulsório inicialmente aprovado nos termos do art. 104-A, § 4º, CDC.
A Lei do Superendividamento censura dívidas eternas.
9. Os credores podem ou não propor uma ação revisional do plano judicial compulsório no caso de superveniente enriquecimento do consumidor?
Entendemos que sim.
Como já dito anteriormente, há uma cláusula rebus sic standibus implícita no plano judicial compulsório. Se as circunstâncias fáticas mudam expressivamente, é de admitir-se a revisão.
Quanto à estabilização da decisão judicial que fixou o plano de pagamento, entra em cena, mais uma vez, a interpretação a ser dada ao art. 505, I, do CPC.
Na hipótese de o consumidor enriquecer posteriormente, é justo que o valor de suas parcelas aumente de modo a viabilizar, ao máximo, o pagamento de suas dívidas.
O motivo é que o plano judicial compulsório objetiva garantir o mínimo existencial do consumidor ao longo dos cinco anos de sua vigência (art. 104-A, § 4º, CDC) e libertá-lo das dívidas parceladas após esse quinquênio.
O superveniente enriquecimento do consumidor dentro desse quinquênio permite ao consumidor aumentar seus aportes para honrar suas dívidas sem comprometer o seu mínimo existencial.
Não se trata de proteger propriamente os fornecedores, e sim os demais consumidores. É que estes acabam sofrendo prejuízos indiretos com o inevitável aumento do preço dos produtos e dos serviços em razão do repasse pelos fornecedores da inadimplência.
Basta pensar em um consumidor que tenha uma renda de R$ 2.000,00 mensais e que esteja com dívidas vencidas no valor total de R$ 100.000,00. Suponha que, diante desse contexto, o juiz aprove um plano judicial compulsório fixando parcelas mensais de R$ 700,00 (35% da remuneração). Com essa parcela mensal, após o prazo máximo de 5 anos, o consumidor pagará, ao total, apenas R$ 42.000,00. O saldo devedor remanescente seria extinto após esse quinquênio.
Suponha, porém, que, após um ano de aprovação do plano judicial compulsório, o consumidor passe a ter um salário mensal de R$ 50.000,00. É justo que as parcelas mensais sejam reajustadas para a quitação de suas dívidas. Foge ao espírito da Lei do Superendividamento permitir que esse consumidor continue pagando uma prestação que, para ele, se tornou irrisória, especialmente pelo fato de que, indiretamente, os demais consumidores acabarão suportando financeiramente os prejuízos absorvidos pelos fornecedores.
10. É ou não cabível ação revisional de acordo celebrado com o consumidor superendividado no caso de superveniente enriquecimento ou empobrecimento deste?
Entendemos que, no caso de acordo celebrado entre o consumidor superendividado e os credores, a situação exige uma análise diferenciada. A solução é diferente da que estabelecemos para os casos de ações revisionais de planos judiciais compulsórios.
Assim é que, na hipótese de enriquecimento superveniente do consumidor, não é cabível ação revisional, salvo pacto expresso em contrário.
No caso de empobrecimento superveniente do consumidor, é cabível ação revisional. É nula cláusula contratual em contrário por abusividade.
A condição de vulnerabilidade do consumidor justifica essa interpretação.
Alertamos para a circunstância de que o acordo de que estamos cuidando
pode ter sido celebrado na fase conciliatória do procedimento judicial
compulsório (art. 104-A, CDC), na conciliação feita perante os Procons (art.
104-C, CDC) ou em tratativas extrajudiciais sem a intermediação do Poder
Público.
[1] Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Advogado, ex-Advogado da União e ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na Universidade de Brasília – UnB. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual, do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil. Instagram: @profcarloselias. E-mail: carloseliasdeoliveira@yahoo.com.br
[2] Juiz de Direito. Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Professor da Universidade Federal da Bahia. Coautor do Manual de Direito Civil e do Novo Curso de Direito Civil (Ed. Saraiva).
[3] GAGLIANO, Pablo Stolze; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Comentários à Lei do Superendividamento (Lei nº 14.181, de 1º de julho de 2021) e o princípio do crédito responsável. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91675/comentarios-a-lei-do-superendividamento-lei-n-14-181-de-1-de-julho-de-2021-e-o-principio-do-credito-responsavel/4. Publicado em julho de 2021. Recomendamos também: MIRAGEM, Bruno, A Lei do Crédito Responsável Altera o Código de Defesa do Consumidor (Migalhas Contratuais, publicado em julho de 2021, disponível no https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/348157/a-lei-do-credito-responsavel-altera-o-codigo-de-defesa-do-consumidor).
[4] “Como já dito, o princípio do crédito responsável exige do devedor um comportamento prudente e em consonância com a boa-fé objetiva ao assumir dívidas para evitar futura inadimplência.
Para tal efeito, a avaliação do que seja boa-fé não é singela. O mero fato de um devedor ter contraído uma dívida além de sua capacidade de pagamento não pode ser considerado uma conduta de má-fé.
O fato de o consumidor haver contraído dívida em situação de vulnerabilidade econômica não significa, por óbvio, de per si, haver atuado em violação à boa-fé.
Contrariamente, se o devedor efetivamente agiu (dolosamente) para praticar um golpe, o Direito não deve amparar esse tipo de comportamento.
Tudo dependerá da apurada análise do caso concreto.” (Gagliano e Oliveira, op. cit.)
[5] “Vigora no ordenamento jurídico brasileiro o princípio da proteção simplificada do luxo 8 , segundo o qual o Direito protege situações de luxo sem o mesmo prestígio de situações essenciais ou úteis. Esse conceito está atrelado ao conceito de paradigma da essencialidade, revelado pela Professora Teresa Negreiros. Segundo a jurista carioca, os direitos devem ser classificados quanto à essencialidade em direitos essenciais, direitos úteis e direitos supérfluos. Quanto menor for o grau de essencialidade do direito, menor deve ser a intervenção do Direito.
Esse princípio guia também a proteção dada aos casos de superendividamento. O intervencionismo estatal em favor de quem está em situação de superendividamento não deve alcançar casos oriundos de aquisição de produtos de luxo de alto valor, mesmo no caso de consumo. Quem, por exemplo, endivida-se por adquirir um veículo luxuoso de altíssimo valor não pode, posteriormente, invocar as ferramentas interventivas da Lei do Superendividamento. Sobram-lhe, apenas, as proteções gerais do Direito, sem prestígios interventivos. A própria Lei de Superendividamento é expressa nesse sentido (art. 54-A, § 3º, CDC).” (Gagliano e Oliveira, op. cit.)
[6] Sobre o tema, escrevemos:
Vale salientar: frustrado o “processo de repactuação de dívidas” (art. 104-A), instaura-se o “processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes” (art. 104-B), caso em que será apresentado um “plano judicial compulsório”.
Apesar de os referidos preceitos fazerem menção a “processos”, parece-nos mais adequado que há apenas um processo, com duas fases procedimentais: uma de “repactuação de dívidas” e outra “de revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes”, da qual resultará um plano judicial compulsório. Essa última iniciar-se-á com mera petição do consumidor no bojo do feito após a frustração, total ou parcial, das tentativas de autocomposição. O próprio caput do art. 104-B do CDC dá suporte a essa interpretação, pois sua redação dá noção da existência de uma linha de continuidade processual.
O processo por superendividamento será instaurado a pedido do consumidor, ou seja, não há espaço legal para a atuação judicial de ofício. As peculiaridades de todo esse procedimento, que envolve, inclusive, vetores metajurídicos (carga emocional derivada do strepitus fori, o abalo psicológico vivenciado pelo consumidor superendividado, os complexos aspectos econômicos em jogo) recomendam, em nosso sentir, que as respectivas Leis de Organização Judiciária Estaduais criem unidades especializadas na matéria atinente ao superendividamento. Sem dúvida, é a melhor solução.” (Gagliano e Oliveira, 2021)
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