DEPÓSITO EM JUÍZO PARA AFASTAR OS ENCARGOS MORATÓRIOS: NOVOS VENTOS PARA A CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO

DEPÓSITO EM JUÍZO PARA AFASTAR OS ENCARGOS MORATÓRIOS: NOVOS VENTOS PARA A CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO

    

Carlos E. Elias de Oliveira

(Professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na Universidade de Brasília – UnB –, no IDP/DF, na Fundação Escola Superior do MPDFT – FESMPDFT, no EBD-SP, na Atame do DF e de GO e em outras instituições.

Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Advogado, ex-Advogado da União e ex-assessor de ministro STJ.

Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro

E-mail: carloseliasdeoliveira@yahoo.com.br)

Brasília/DF, 1º de novembro de 2022

1.      Resumo

Antes de começamos o artigo, antecipamos um resumo das suas conclusões em forma de tópicos:

1. Havendo ação cobrando a dívida, o depósito, pelo devedor, em juízo para fins de garantia ou a penhora da coisa não afasta os encargos moratórios por falta de fundamento legal. Os rendimentos da conta judicial, porém, devem ser considerados como antecipação de parte desses encargos moratórios, resguardado o direito à cobrança do excedente.

2. Não é, pois, aplicável a essa hipótese o art. 335, V, do CC, que autoriza a consignação em pagamento quando o objeto da obrigação for litigioso. A bem da verdade, o entendimento do STJ, com sua inevitável amplificação nos termos deste artigo, esvaziou a aplicação prática do inciso V do art. 335 do CC.

2. Caso o devedor queira afastar os encargos moratórios, cabe-lhe extinguir a obrigação por meio do pagamento (pagamento direto).

3. Esse pagamento pode ocorrer: (a) entrega da coisa devida diretamente ao credor; (b) depósito, em juízo, para fins de pagamento; (c) autorizar o credor a levantar a quantia depositada em juízo.

3. Em relação às duas últimas maneiras – que envolvem pendência de ação judicial de cobrança da dívida –, entendemos que, a partir da data de protocolo da petição autorizando o levantamento da quantia pelo credor, já há o pagamento (pagamento direto) a extinguir a obrigação.

4. Caso o devedor pretenda discutir o cabimento da dívida (o an debeatur ou o quantum debeatur), é preciso tomar cuidado: em já havendo ação judicial em curso cobrando a dívida, o pagamento deve ser feito “com ressalvas” explícitas, sob pena de possível preclusão lógica.

5. Se o devedor pagar a dívida ou depositar a coisa em juízo (seja para fins de pagamento, seja para fins de garantia) e se, posteriormente, vencer demanda judicial impugnando o an debeatur ou o quantum debeatur, entendemos que caberá à outra parte pagar os encargos moratórios a título de indenização mínima (art. 302, CPC). A exceção dá-se se a coisa tiver sido depositada em juízo para fins de garantia sem qualquer pedido ou provocação do credor.

5. O STJ entendia que era viável o afastamento da mora no caso de propositura de ação revisional de contratos, desde que o devedor tenha depositado o valor incontroverso e haja plausibilidade jurídico do pleito. Doravante, deve-se firmar que o entendimento acima não afasta o direito do credor a cobrar os encargos moratórios no caso de malogro do devedor na ação revisional. Se o devedor perder o pleito revisional, terá de pagar os valores controvertidos atrasados, com acréscimos de todos os encargos moratórios, deduzidos os rendimentos da conta judicial. Na prática, o entendimento acima servirá apenas para inibir que, na pendência da ação, o credor possa valer-se de medidas de índole coercitiva ou executiva, como negativação do nome do devedor em cadastro de inadimplentes, busca e apreensão, reintegração de posse etc.

6. Recomendação informal e prática: se o leitor for questionar judicialmente a dívida, a recomendação é depositar o valor integral da dívida, externando que a finalidade é de pagamento “com ressalvas”, ou seja, ressalvando o direito à repetição de indébito no caso de vitória na impugnação judicial do crédito. No caso de penhora do valor, a recomendação é que o leitor peticione autorizando o levantamento da quantia pelo credor, ressalvando, porém, o direito à repetição de indébito no caso de vitória na insurreição. Com isso, o leitor não sofrerá a surpresa de, após anos de judicialização, ter de pagar encargos moratórios atrasados. Essa recomendação, porém, não deve ser seguida se: (1) o leitor verificar que há sério risco de a outra parte “dar um calote” na hora de devolver o valor ao final da ação; e (2) o valor estimado dos encargos moratórios for irrelevante dentro das circunstâncias do caso concreto. Nessas hipóteses, é melhor que o leitor sequer faça o depósito em juízo do valor, nem mesmo para fins de garantia. É economicamente mais vantajoso deixar esse valor em alguma aplicação financeira pessoal, que certamente renderá mais do que os tímidos rendimentos das contas judiciais.

7. Sugestão de mudanças do Poder Judiciário: é conveniente que o Poder Judiciário reveja os convênios mantidos com bancos que mantêm contas judiciais vinculadas. O ideal é que esses convênios prevejam o direito da parte que depositou o valor em juízo em direcionar o valor da conta judicial a alguma aplicação financeira segura (de “renda fixa”), como títulos da dívida pública, Letras de Crédito Imobiliária (LCI) ou Letras de Crédito Agrária (LCA). Em outras palavras, os valores custodiados judicialmente, a critério de quem o depositou, devem ser submetidos a aplicações que um investidor “comum e conservador” (homo medius) deixa. Não há motivos para o valor ficar sendo derretido em uma conta judicial de rendimentos absolutamente atrofiados. Isso também vale para valores penhorados ou bloqueados judicialmente.

2.      Introdução

Um tema de interesse de todos os juristas é saber como estancar os encargos moratórios (juros moratórios, correção monetária e multa) no caso de controvérsia sobre a existência da dívida (an debeatur) e o seu valor (quantum debeatur). A questão parece-nos ter assumido novos ventos após a recente decisão da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no REsp 1.820.963/SP no dia 19 de outubro de 2022. O acórdão ainda está pendente de publicação, mas a sessão de julgamento está disponível no YouTube[1]. Neste artigo, erguemos reflexões preliminares com base na sessão de julgamento que acompanhamos, sem prejuízo de novas reflexões após a publicação oficial do acórdão.

A questão interessa não apenas a advogados, magistrados e outros profissionais que atuam diretamente em litígios judiciais, mas também de tabeliães de notas e de tabeliães de protestos (por lidarem quotidianamente com as obrigações).

A resposta costumava ser a consignação em pagamento, que consiste no depósito da quantia em juízo ou em outro meio legal.

O corriqueiro é que essa consignação em pagamento seja feita de forma incidental a um processo judicial em que se controverte a dívida. O advogado deposita o valor em juízo, a quantia fica rendendo em uma conta judicial e, ao final da ação, o montante final (com os rendimentos) seja “sacado” (“levantado”) por quem venceu a demanda judicial mediante um alvará de levantamento expedido pelo juiz.

O grande problema é definir se esse depósito em juízo faz cessar ou não a incidência dos encargos moratórios.

Há inegável interesse financeiro do credor nesse tema. Imagine que um devedor esteja em mora no pagamento do valor de 10 milhões de reais. Por esse atraso, incidem, a título de encargos moratórios, juros moratórios de 1% a.m. e correção monetária de 0,5% a.m. Veja que, a cada mês de atraso, a dívida “engorda” 1,5% a.m. No primeiro mês, a dívida aumentará em R$ 150 mil. No segundo mês, subirá mais R$ 152,25 mil. Perceba o quão expressivo é o valor acrescido a título de encargos moratórios nesse exemplo.

Imagine que o devedor entenda que a dívida é indevida por algum motivo (ex.: nulidade de um contrato). O credor, porém, está a cobrar a dívida. Há, pois, controvérsia sobre o cabimento da dívida. Indaga-se: o que o devedor poderá fazer para “estancar” a copiosa sangria de encargos moratórios enquanto se discute judicialmente se a dívida é ou não devida?

A praxe era, no caso acima, o devedor depositar o valor em juízo (os 10 milhões de reais) incidentalmente à demanda judicial em que se discute o cabimento da dívida (ação de cobrança, ação de nulidade do contrato, ação de inexigibilidade da dívida, embargos do devedor, impugnação ao cumprimento de sentença etc). Ao final da demanda, o dinheiro depositado em juízo, com os rendimentos da conta judicial, seria levantado pelo vencedor. Assim, se a dívida for judicialmente tida por indevida, o devedor poderia levantar o dinheiro de volta, com os rendimentos da conta judicial. Caso, porém, a dívida seja tida por devida, o credor poderá levantar a quantia depositada com os rendimentos da conta judicial.

Acontece que o rendimento da conta judicial costuma ser inferior ao dos encargos moratórios. Indaga-se: pode-se cobrar a diferença? No exemplo acima, os encargos moratórios estavam a render cerca de R$ 150 mil mensalmente. Suponha que o rendimento da conta judicial tenha sido apenas de R$ 100 mil mensais. Pergunta-se: pode-se cobrar os R$ 50 mil de diferença ao final da demanda?

Até o supracitado julgado do STJ, não havia essa cobrança da diferença, seja pelo relativo consenso dos profissionais do Direito, seja pela forte inclinação jurisprudencial em considerar que o depósito em juízo no exemplo acima afastava a mora.

Com o mencionado o julgado, entendemos que novos ventos passam a guiar a questão.

3.      Fundamento jurídico dos encargos moratórios

Os encargos moratórios são devidos no período da anormalidade obrigacional, ocorrente em casos de inadimplemento relativo. Sobre o tema, transcrevemos explicação nossa com João Costa-Neto[2]:

5.2.1.2.1. Preço (período da normalidade) vs encargos moratórios (período da anormalidade)

O período da normalidade obrigacional perdura até antes do vencimento da obrigação. Quando se trata de contratos, é comum a nomenclatura “período da normalidade contratual”. Mas nada impede o uso da expressão mais genérica (período da normalidade obrigacional).

Nesse período, as partes podem estipular uma remuneração, que corresponde ao preço. Vige o princípio da livre contratação, que confere autonomia na estipulação do preço. Em regra, as partes têm liberdade para arbitrar o preço que lhes aprouver. De modo excepcional, o Estado coloca limites de preços a determinados produtos ou serviços. Essa limitação exige cautela, diante do potencial lesivo dos tabelamentos de preços para a economia. É o que se extrai do inciso IIII do art. 3º da Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019).

O Estado não costuma ter condições para dimensionar todos os riscos e custos do negócio, o que pode desestimular a atividade empresarial. Em planos individuais de saúde, por exemplo, a ANS controla os aumentos dos preços por força da Lei no 9.961/2000. Na prática, essa política da ANS conduziu as operadoras de plano de saúde a abandonarem, em grande medida, os planos individuais. As operadoras passaram a focar a celebração de planos de saúde em grupo. Nos planos de saúde em grupo, não há o controle de preços, o que é ruim para o consumidor. Em qualquer caso, excessos desproporcionais no arbitramento do preço podem ser tidos por anuláveis na lesão especial (art. 157, CC) ou nulos na lesão consumerista (art. 6o, V, CC).

O período da anormalidade obrigacional inicia-se após o vencimento da obrigação, caso haja inadimplemento relativo. Nesse período, a parte prejudicada pelo inadimplemento poderá cobrar encargos moratórios.

Preço é o valor estipulado para o período da normalidade obrigacional. Já os encargos moratórios incidem durante o período da anormalidade obrigacional.

Para afastar os encargos moratórios, a obrigação precisa ser extinta. A extinção da obrigação pode ser normal ou anormal. Veja o expusemos sobre o assunto com João Costa-Neto[3]:

 A doutrina apresenta diferentes formas de classificar a extinção das obrigações. Adota- remos aqui a que consideramos mais didática e deixaremos de expor as demais para evitar discussões inférteis.

Há dois meios de extinção das obrigações: (1) extinção normal (meio normal de extinção) e (2) extinção anormal (meio anormal de extinção).

A extinção anormal ocorre quando a obrigação se extingue, sem o seu cumprimento. Ex.: perecimento do bem sem culpa do devedor, advento do termo resolutivo, invalidade etc. Diz-se anormal, porque o caminho normal e desejável para a extinção da obrigação é o pagamento.

A extinção normal dá-se quando a obrigação é cumprida, o que pode ocorrer por dois tipos de pagamento: o pagamento direto e o pagamento indireto.

(…)

O pagamento direto ou adimplemento propriamente dito (solutio propria) corresponde ao cumprimento exato da prestação pactuada. Refere-se ao pagamento propriamente dito, que está disciplinado nos arts. 304 a 333, CC.

(…)

Já o pagamento indireto ou adimplemento impróprio (solutio impropria) diz respeito a outros fenômenos que importam no cumprimento da obrigação por outra via que não o paga- mento direto (Zimmermann, 1996, p. 758). O pagamento indireto também pode ser chamado de “modalidades especiais de pagamento”.

Na Alemanha, a doutrina prefere a expressão “sucedâneos do adimplemento” (Erfüllun- gssurrogate), institutos listados a partir do § 362, BGB. São sucedâneos do adimplemento, que podemos também chamar de formas de “pagamento indireto” ou de “modos especiais de pagamento”: a dação em pagamento (datio in solutum; Leistung an Erfüllungs statt, § 364 Abs. 1 BGB), a consignação em pagamento (depositio; Hinterlegung, §§ 372 e ss., BGB), a compensação (compensatio; Aufrechnung (§§ 387 e ss., BGB; set-off); e a remissão (remissio; Erlass, § 397, par. 1, BGB) (Kaser, 1955, pp. 531 ss.; Zimmermann, 1996, pp. 758 ss.; Ger- nhuber, 1994, pp. 92 ss.).

Todos esses institutos apresentam correspondente no Direito Romano (Kaser, 1955, pp. 531 ss.).

Existem outros meios, em tese infinitos, de extinção imprópria da obrigação. Essas for- mas também têm caráter liberatório, mas não configuraram propriamente pagamento, nem indireto ou impróprio. São exemplos de outras causas de extinção da obrigação: invalidação da obrigação (nulidade ou anulabilidade), implemento de condição resolutiva, impossibilidade superveniente, resilição e resolução.

As formas de pagamento indireto constam dos arts. 334 a 388, CC. Aí se incluem, portanto: (1) o pagamento em consignação (i.e. pagamento efetuado por depósito judicial ou bancário, e não diretamente ao credor); (2) a dação em pagamento (i.e. credor aceita coisa diversa da pactuada; isso por aquilo; aliud pro alio); (3) a imputação do pagamento (i.e. pagamento inde- terminado entre partes que têm várias obrigações entre si, estabelecendo a lei uma prioridade quanto a quais obrigações serão quitadas primeiro); e (4) o pagamento com sub-rogação (um terceiro, e não o devedor, cumpre a obrigação e assume a posição jurídica do credor anterior, com todas as prerrogativas, garantias e privilégios).

A novação, a compensação, a confusão e a remissão também podem ser consideradas for- mas de pagamento indireto. Também há, na doutrina, quem as considere como meios anormais de extinção da obrigação; e não como pagamento indireto. Não falta indefinição taxonômica sobre essa matéria (…).

4.      A CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO COMO EXTINÇÃO DA OBRIGAÇÃO

Como dito no item anterior, a consignação em pagamento – que se operacionaliza por meio do depósito da coisa devida em juízo ou em outra via legalmente admitida – é uma das hipóteses de extinção da obrigação e, como tal, estanca a incidência de encargos moratórios.

Não é cabível, porém, em qualquer caso, mas apenas nas hipóteses previstas em lei. Consignação em pagamento feita fora das hipóteses legais não gera o efeito extintivo da obrigação: o depósito em juízo ou na via legalmente admitida não estanca a sangria dos encargos moratórios.

Há motivo pragmático para tanto: o credor não tem a disponibilidade efetiva do valor depositada; logo, não pode fruir nem usar a quantia. Isso justifica a incidência dos encargos moratórios como uma forma de compensação.

Ilustrando, suponha uma dívida de R$ 10 milhões. Se o credor receber essa quantia no vencimento, ele poderia, por exemplo, investir esse valor em uma aplicação financeira. Se essa aplicação render 1% a.m., isso significa que o credor “lucrará” R$ 100 mil mensalmente. Caso o devedor deposite a quantia em juízo, o credor terá apenas um rendimento tímido da conta judicial enquanto não puder levantar a quantia. Há manifesto prejuízo financeiro ao credor com essa indisponibilidade efetiva da coisa depositada. É por isso que a consignação em pagamento fora das hipóteses legais não afasta os encargos moratórios.

Sobre o tema, tomamos explicação nossa com João Costa-Neto[4]:

O art. 335, CC cataloga as hipóteses de cabimento do pagamento em consignação. Entre as causas, há:

a)  causa subjetiva: diz respeito a razões imputáveis ao próprio credor (recusa injustificada em receber o pagamento ou em dar a quitação; não comparecimento do credor para receber; paradeiro desconhecido do credor; incapacidade de receber) e a dúvidas sobre quem tem legitimidade para receber o pagamento (art. 335, I a IV, CC);

b)  causa objetiva: reporta-se à existência de litígio quanto ao objeto da dívida, conforme art. 335, V, CC.

(…)

O pagamento em consignação só pode ocorrer nas hipóteses legais. Sua utilização sem respaldo legal acarreta a improcedência do depósito. Pode ocorrer de a parte obter liminar de depósito e, depois, no mérito, a sentença julgar improcedente o pedido. Nesse caso, mesmo que o depósito tenha sido autorizado por liminar, o risco é da parte que pleiteou a decisão judicial precária concessiva da tutela provisória (arts. 297, parágrafo único, e 520, I, do CPC).

O mero ajuizamento da ação de consignação não produz efeitos por si só. Somente com o deferimento da liminar, por exemplo, deverá ser afastada a negativação em órgãos de res- trição ao crédito (e.g. Serasa; SPC). Mas tudo isso ficará sem efeito caso a sentença, ao final, seja improcedente.

O depósito feito sem fundamento legal não extingue a obrigação. Portanto, não afasta os ônus decorrentes do inadimplemento, como os juros moratórios e os riscos pelo perecimento da coisa (art. 337, CC).

Trata-se de medida importante para evitar um estratagema comum na praxe forense: asfixiar o credor com o depósito em juízo de várias prestações, causando-lhe a insolvência em razão da “falta de dinheiro em caixa” ou forçando-lhe a fazer um acordo desvantajoso. Se, por exemplo, os alunos de uma escola fizerem o depósito em juízo das mensalidades, a escola poderia ficar sem disponibilidade financeira para pagar os seus funcionários e poderia sucumbir por estrangulamento. Desse modo, o magistrado deve ter cuidado com o deferimento de liminares em ações de consignação em pagamento.

5.      Depósito em juízo no caso de controvérsia sobre a dívida: afasta ou não os encargos moratórios?

4.1.           Situação em sede de execução civil: inaplicabilidade do art. 335, V, CC

Passamos a enfrentar a questão central deste artigo: havendo litígio sobre a existência da dívida (an debeatur) ou sobre seu valor (quantum debeatur), o depósito em juízo afasta ou não os encargos moratórios? Ambas as partes podem exigir a diferença entre os encargos moratórios e os rendimentos da conta judicial?

Ao julgar o REsp 1.820.963/SP no dia 19 de outubro de 2022, a Corte Especial do STJ analisou a questão sob um enfoque bem específico: o depósito em juízo pelo devedor em sede de uma execução civil, seja de modo voluntário, seja por força de uma penhora. Mas esse entendimento deve ser estendido para outras hipóteses.

O STJ assentou que o depósito, pelo devedor, na execução para garantia ou por penhora, não afasta os encargos moratórios, porque não é depósito para fins de pagamento. Por isso, o credor tem direito a cobrar integralmente os encargos moratórios, deduzidos, porém, os rendimentos da conta judicial. Afinal, esses rendimentos da conta judicial são uma espécie de antecipação dos encargos moratórios.

Esse julgado representa uma mudança brutal da jurisprudência. A propósito, o Ministro Og Fernandes – em um voto bem aprofundado – foi certeiro em recomendar a modulação dos efeitos do novo entendimento para outros processos anteriores e não julgados. Concordamos com esse entendimento, porque inúmeros devedores depositaram valores em juízo confiança na orientação jurisprudencial anterior. Se soubessem que a jurisprudência mudaria, provavelmente não teriam feito o depósito, mas deixariam o valor em alguma aplicação financeira pessoal que renda mais do que as tímidas contas judiciais. Não modular os efeitos seria fazer o que chamamos de “justiçamento de transição”[5]. Todavia, a maioria dos ministros não acompanharam essa posição, afirmando que o entendimento acima estaria implícito em julgados anteriores.

Seja como for, o fato é que, na execução, para o devedor afastar os encargos moratórios, não basta que ele faça o depósito da quantia em juízo enquanto discute o cabimento ou não da dívida (an debeatur e quantum debeatur). É que esse depósito é apenas para fins de garantia. Se, em uma execução, o devedor opõe embargos do devedor questionando a dívida, é irrelevante o simples fato de a quantia executada estar depositada em juízo (seja por conta de uma penhora, seja por conta de um depósito voluntário): os encargos moratórios seguirão incidindo. Isso, porque o depósito aí serve apenas como uma mera garantia.

Não é, pois, aplicável a essa hipótese o art. 335, V, do CC, que autoriza a consignação em pagamento se pender litígio sobre o objeto do pagamento. Não deve recair sobre hipóteses em que o litígio é sobre o an debeatur ou o quantum debeatur. É o que se infere da decisão do STJ.

A bem da verdade, o entendimento do STJ esvaziou a aplicação prática do inciso V do art. 335 do CC. Entendemos que atualmente o referido dispositivo deve ficar restrito a hipóteses pouco usuais de haver litígio entre dois ou mais credores sobre o objeto da obrigação. Nessa hipótese, o devedor fica em uma encruzilhada por não ter certeza sobre qual objeto deve ser entregue diante da divergência dos credores. Assim, se, por exemplo, um credor defende que o objeto é um carro e outro credor, uma moto, o devedor pode consignar em pagamento o objeto que entender devido e deixar os credores litigarem entre si sobre qual seria o objeto correto. Em prevalecendo um objeto diverso do depositado pelo devedor, entendemos que o devedor pode ser notificado a entregá-lo após receber de volta a coisa depositada. O devedor não estará em mora até esse momento.

Lembramos que, quando há divergência sobre quem é o credor (como no caso de há litígio entre dois ou mais ou mais pessoas pela condição de credor), a consignação em pagamento tem outro fundamento: o inciso IV do art. 335 do CC (que autoriza a consignação em pagamento se ocorrer dúvida sobre quem deva legitimamente receber o objeto do pagamento[6]).

Merece aplausos o entendimento do STJ. Afinal de contas, o depósito para fins de garantia não transfere a disponibilidade efetiva do valor ao credor. É justo que o credor cobre os encargos moratórios enquanto não tiver a disponibilidade efetiva da coisa devida. A litigiosidade sobre o an debeatur e o quantum debeatur é risco do próprio devedor.

4.2.           Desdobramentos práticos para cessar os encargos moratórios

4.2.1.     atos do devedor

O supracitado julgado do STJ vai além dos casos de execução civil. Alcança as demandas judiciais em geral, respeitadas normas específicas (como o art. 151 do Código Tributário Nacional, que confere ao depósito do montante integral a suspensão do crédito tributário).

O depósito, pelo devedor, em juízo para fins de garantia não afasta os encargos moratórios. A demora no julgamento da demanda judicial em que se discute o an debeatur ou o quantum debeatur é risco do próprio devedor: se este malograr, terá de suportar integralmente os encargos moratórios, deduzidos apenas os rendimentos da conta judicial.

Caso o devedor queira afastar os encargos moratórios, cabe-lhe extinguir a obrigação por meio do pagamento (pagamento direto). Não é cabível a consignação em pagamento como forma de extinção da obrigação por falta de fundamento legal.

O pagamento poderá ocorrer de três maneiras.

A primeira é a entrega da coisa devida diretamente ao credor. Se já houver ação judicial relativa à dívida, deve-se comunicar o juiz com a devida prova do pagamento.

A segunda é apenas para a hipótese de haver alguma ação judicial em curso envolvendo a cobrança da dívida (como uma ação de cobrança ou uma execução). Cabe ao devedor escolher entre a primeira maneira supracitada ou o depósito, em juízo, para fins de pagamento. Esse depósito para fins de pagamento consiste em o devedor autorizar expressamente o credor a levantar a quantia depositada.

A terceira é para a hipótese de já haver a penhora da coisa devida ou de já haver um depósito para fins de garantia. Nessa hipótese, o devedor poderá pagar a dívida (e, assim, extinguir a obrigação e fazer cessar os encargos moratórios) autorizando expressamente o credor a levantar a quantia.

Em relação às duas últimas maneiras – que envolvem pendência de ação judicial de cobrança da dívida (ex.: ação de cobrança, ação monitória, execução etc.) –, entendemos que, a partir da data de protocolo da petição autorizando o levantamento da quantia pelo credor, já há o pagamento (pagamento direto) a extinguir a obrigação. O motivo é que o local do pagamento passa a ser o juízo a partir do momento em que a ação judicial cobrando a dívida é proposta. Mas nada impede que, por acordo, o credor receba o pagamento, com comunicação ao juízo para efeito de extinção. No caso de penhora de dinheiro, com a petição do devedor autorizando o levantamento muda a finalidade de garantia para a de pagamento.

Há uma advertência importantíssima. Em todas as hipóteses acima, caso o devedor pretenda discutir o cabimento da dívida (o an debeatur ou o quantum debeatur), é preciso tomar cuidado. Em já havendo ação judicial em curso cobrando a dívida, o pagamento deve ser feito com ressalvas. Essas ressalvas devem ser expressas no momento do ato do pagamento. Sem as ressalvas no ato do pagamento, como estamos a tratar de uma cobrança judicial da dívida com integração processual do devedor por meio da citação ou da intimação, opera-se um efeito processual: a preclusão lógica (art. 503, CPC).

É que o ato de pagar uma dívida judicializada sem qualquer ressalva faz presumir concordância do devedor com o pleito. Não pode o devedor posteriormente questionar o cabimento do pagamento, ao menos no mesmo feito. Afinal, mesmo sendo parte já integrada processualmente ao feito pela citação ou intimação, não se valeu dos meios de insurgência processualmente devidos. É o que se encontra na jurisprudência, a exemplo deste julgado:

PRECLUSÃO LÓGICA – CONFIGURAÇÃO – Configura-se a preclusão lógica quando a parte pratica ato incompatível com outro anteriormente realizado no feito, tornando-os contraditórios entre si. No presente caso, o executado, após a homologação dos cálculos de liquidação, praticou ato processual de forma válida e livre, por meio do qual revelou inequívoca intenção de quitar o débito exequendo. Com efeito, a posterior oposição de embargos à execução constitui ato diametralmente oposto àquele primeiro, o que enseja o não conhecimento da medida processual, vez que verificada a ocorrência da preclusão lógica.

(TRT-3 – AP: 00473201006703009 MG 0000473-24.2010.5.03.0067, Relator: Jorge Berg de Mendonca, Sexta Turma, Data de Publicação: 17/02/2014)

Alerte-se: se o devedor não foi ainda integrado ao processo por meio da citação ou da intimação, não há “cobrança judicial” da dívida. Não se aplica, pois, o entendimento acima. Assim, eventual pagamento feito pelo devedor sem ter sido intimado ou citado no feito de cobrança da dívida é um ato jurídico que pode ser impugnado posteriormente pelos meios processuais devidos. Não há preclusão, porque este é um efeito processual aplicável por conta de um ato de quem já foi integrado a uma relação processual.

Questão curiosa é a seguinte: havendo penhora da coisa devida e mantendo-se o devedor silente após ser regularmente intimado, indaga-se: esse silêncio implica uma preclusão? Poderá o devedor questionar judicialmente o an debeatur ou o quantum debeatur? Poderia o devedor propor uma ação declaratória de inexigibilidade da dívida (como uma de nulidade)?

Trata-se de questão a ser aprofundada em processo civil, o que escapa ao escopo deste artigo. Apesar disso, averbamos que o STJ tende a admitir a propositura de ações autônomas de impugnação (ação declaratória de nulidade do negócio jurídico, ação rescisória, ação de inexigibilidade do crédito), questionando o título executivo, respeitados os prazos prescricionais ou decadenciais eventualmente cabíveis. Há, porém, inúmeras particularidades que deixamos de aprofundar por sua maior conexão com o processo civil. Limitamo-nos a citar estes julgados do STJ:

AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. AÇÃO ANULATÓRIA E REVISIONAL DE ACORDO EXTRAJUDICIAL HOMOLOGADO. AUSÊNCIA DE EMBARGOS À EXECUÇÃO OU IMPUGNAÇÃO AO CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. INOCORRÊNCIA. ALEGADA PRECLUSÃO. INSUBSISTÊNCIA.

(…)

3. A eventual não oposição de embargos à execução ou impugnação ao cumprimento de sentença não impede que os executados manejem ação com natureza anulatória/revisional contra o título executivo.

Doutrina e jurisprudência sobre o tema.

4. Ausente o prévio exame das questões relativas à abusividade das cláusulas do acordo em sede de instrumento de natureza cognitiva (embargos à execução ou impugnação ao cumprimento de sentença), não há falar em preclusão extraprocessual a alcançar ação anulatória/revisional autônoma ajuizada pelo executado contra o título executivo.

5. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO.

(AgInt no REsp n. 1.765.824/SP, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 21/9/2020, DJe de 24/9/2020.)

RECURSOS ESPECIAIS. PROCESSUAL CIVIL. CPC/1973. EMBARGOS À EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. RECURSO ESPECIAL DA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. PAGAMENTO PARCIAL. QUESTÃO NÃO DEDUZIDA NA PETIÇÃO INICIAL DOS EMBARGOS. INOVAÇÃO DA LIDE. DESCABIMENTO. PRECLUSÃO. RECURSO ESPECIAL DOS EMBARGANTES. JUROS REMUNERATÓRIOS. LIMITAÇÃO A 12% AO ANO. DESCABIMENTO. SÚMULA 382/STJ. 1. RECURSO ESPECIAL DA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA.

1.1. Necessidade de alegação da tese de pagamento parcial na petição inicial dos embargos à execução, sob pena de preclusão.

1.2. Caso concreto em que a alegação de pagamento somente veio a ser deduzida na fase de instrução, sob a forma de quesitos complementares à perícia, quando já preclusa a matéria, configurando inovação da lide (art. 264 do CPC/1973, atual art. 329 do CPC/2015).

1.3. Inocorrência, porém, de coisa julgada material, ficando aberta a via da ação autônoma para se obter a declaração de quitação parcial, bem como a condenação da exequente às sanções devidas pela cobrança de dívida já paga, se for o caso.

1.4. Doutrina e jurisprudência sobre o tema. 2. RECURSO ESPECIAL DOS EMBARGANTES.

(…)

(REsp n. 1.487.124/PR, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 26/9/2017, DJe de 2/10/2017.)

PROCESSO DE EXECUÇÃO. PRECLUSÃO ‘PRO JUDICATO’. COISA JULGADA MATERIAL INEXISTENTE. INOCORRE PRECLUSÃO, E PORTANTO A VALIDADE E EFICÁCIA DO TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL PODEM SER OBJETO DE POSTERIOR AÇÃO DE CONHECIMENTO, QUANDO NA EXECUÇÃO NÃO FOREM OPOSTOS EMBARGOS DO DEVEDOR, E IGUALMENTE QUANDO TAIS EMBARGOS, EMBORA OPOSTOS, NÃO FORAM RECEBIDOS OU APRECIADOS EM SEU MÉRITO. INEXISTENCIA DE COISA JULGADA MATERIAL, E DA IMUTABILIDADE DELA DECORRENTE. AGRAVO REGIMENTAL REJEITADO.

(AgRg no Ag 8.089/SP, Rel. Ministro ATHOS CARNEIRO, QUARTA TURMA, julgado em 23/04/1991, DJ 20/05/1991, p. 6537)

Lembramos ainda este excerto do didático manual de Processo Civil do professor Rafael Vasconcellos de Araújo Pereira[7]:

No processo de conhecimento, o réu tem apenas uma forma de defesa (contestação) e o contra-ataque (reconvenção), sob pena de preclusão.

Na execução, o réu possui quatro formas de defesa (objeção de pré-executividade, inúmeras petições simples incidentais, impugnação ao cumprimento de sentença ou embargos do devedor e ação anulatória de título executivo). (…) tais instrumentos de defesa podem ser utilizados simultaneamente, desde que não haja litispendência ou ofensa à coisa julgada.

O fato é que, nas hipóteses acima, o devedor terá direito à repetição de indébito caso tenha êxito na sua demanda judicial contestando o an debeatur ou o quantum debeatur.

Em suma, se o devedor quiser estancar os encargos moratórios enquanto discute o an debeatur ou o quantum debeatur, o caminho é o pagamento “com ressalvas”. Em vencendo judicialmente a demanda sobre o cabimento da dívida, sobrar-lhe-á o direito à repetição de indébito, observado o que exporemos mais abaixo.

4.2.2.     Credor pode ser obrigado a pagar encargos moratórios?

Que ocorre se o devedor pagar a dívida ou depositar a coisa em juízo (seja para fins de pagamento, seja para fins de garantia) e se, posteriormente, vencer demanda judicial impugnando o an debeatur ou o quantum debeatur?

O devedor terá direito a reaver a coisa (repetição de indébito ou, se for o caso, levantamento da coisa depositada).

Indaga-se, porém: o devedor poderá cobrar da outra parte uma indenização correspondente a, no mínimo, o valor dos encargos moratórios devidos para a pretensa obrigação principal, deduzidos – se o for o caso – os rendimentos da conta judicial?

Entendemos que sim por dois motivos.

O primeiro é que a parte vencida na ação judicial tem de indenizar os prejuízos sofridos pela vencedora. É o que se extrai do art. 302 do CPC[8].

O segundo é que, com a vitória na ação questionando o an debeatur ou o quantum debeatur, a cobrança provou-se indevida e, portanto, ilícita. Daí decorre o cabimento, pelo devedor, de dois remédios contra esse ilícito: a repetição de indébito (ou o levantamento da quantia ainda depositada) e a indenização pelos danos sofridos por quem pagou ou depositou o valor indevido.

Logo, entendemos que, havendo a vitória do devedor na ação questionando o an debeatur ou o quantum debeatur, caso o devedor tenha pagado a dívida ou depositado a coisa em juízo, nasce-lhe o direito a uma indenização mínima correspondente à incidência dos mesmos encargos moratórios que a outra parte cobrava.

Há uma exceção: não incidirão encargos moratórios se a coisa tiver sido depositada em juízo para fins de garantia sem qualquer pedido ou provocação do credor. É que, nessa hipótese, o depósito foi feito à risco do próprio devedor.

Exemplifiquemos. Suponha que o Banco X cobre judicialmente R$ 10 milhões do Manoel, que considera indevida a dívida. Imagine que Manoel deposite o valor em juízo e autorize o banco a levantar a quantia, mas faz a ressalva de que haverá de questionar judicialmente a dívida. Com esse depósito, Manoel acabou perdendo a disponibilidade efetiva de R$ 10 milhões e, assim, passou a sofrer prejuízos. Basta pensar que, se essa quantia estivesse em uma aplicação financeira que rendesse 1% a.m., Manoel terá perdido um rendimento mensal de R$ 100 mil.

Suponha que Manoel ajuíze conteste a ação de cobrança, defendendo o descabimento da dívida. Manoel vence a ação após 10 anos de processo.

Indaga-se: Manoel terá direito a “pegar” os seus R$ 100 mil “de volta” e, ainda por cima, cobrar com os mesmos encargos moratórios exigidos pela outra parte a título de indenização mínima, deduzidos – se o for o caso – os rendimentos da conta judicial?

Entendemos que sim.

4.2.3.     Superação parcial (ou necessidade de esclarecimento) de entendimento do stj sobre ação revisional de contratos?

Entendemos que há superação parcial do entendimento do STJ relativo a ações revisionais de contratos – a exemplo daquelas envolvendo pretensões de consumidores para reduzir taxas de juros cobrados em empréstimos bancários.

O STJ entendia que era viável o afastamento da mora no caso de propositura de ação revisional de contratos, desde que o devedor tenha depositado o valor incontroverso e haja plausibilidade jurídico do pleito. Veja:

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL – AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO – DECISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGOU PROVIMENTO AO RECURSO. IRRESIGNAÇÃO DO REQUERIDO.

1. A mora do devedor é comprovada pelo protesto do título, se houver, ou pela notificação extrajudicial feita por intermédio do Cartório de Títulos e Documentos.

Suficiência da entrega da notificação no endereço do devedor, ainda que não lhe seja entregue pessoalmente. Precedentes.

2. A simples propositura de ação revisional não é suficiente para descaracterização da mora, a teor da Súmula 380/STJ. O afastamento da mora reclama a presença concomitante dos seguintes requisitos: (i) ação proposta pelo devedor contestando a existência integral ou parcial do débito;  (ii) efetiva demonstração da plausibilidade da pretensão (consonância com a jurisprudência do STF ou do STJ); e (iii) depósito ou prestação de caução idônea do valor referente à parcela incontroversa, para o caso de a contestação ser apenas de parte do débito. Precedentes. Súmula 83/STJ

3. Na hipótese dos autos, o Tribunal de origem, com base nas provas carreadas aos autos, concluiu não estarem presentes os requisitos para o afastamento da mora, pois insuficientes os valores depositados judicialmente. Alterar tal conclusão demandaria o reexame de fatos e provas, inviável em recurso especial, a teor do disposto na Súmula 7 do STJ.

4. Agravo interno desprovido.

(STJ, AgInt no AREsp n. 1.022.809/MS, relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 4/10/2018, DJe de 11/10/2018.)

Esse entendimento era interpretado no sentido de que, preenchidos os requisitos acima, a mora era afastada para todos os efeitos legais. Não se deve mais dar essa amplitude a essa interpretação após o julgamento do REsp 1.820.963/SP pela Corte Especial em 19 de outubro de 2022.

Doravante, deve-se firmar que o entendimento acima não afasta o direito do credor a cobrar os encargos moratórios no caso de malogro do devedor na ação revisional. Se o devedor perder o pleito revisional, terá de pagar os valores controvertidos atrasados, com acréscimos de todos os encargos moratórios, deduzidos os rendimentos da conta judicial.

Na prática, o entendimento acima servirá apenas para inibir que, na pendência da ação, o credor possa valer-se de medidas de índole coercitiva ou executiva, como negativação do nome do devedor em cadastro de inadimplentes, busca e apreensão, reintegração de posse etc.

6.      Considerações finais

No início deste artigo, deixamos sugestões de mudanças das parcerias do Poder Judiciário com os bancos que mantêm contas judiciais. Também deixamos recomendações informais aos leitores. Reportamo-nos para lá.


[1] Link: https://youtu.be/mt–UH-_m1Y.

[2] OLIVEIRA, Carlos E. Elias de; COSTA-NETO, João. Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense; Método, 2022, pp. 487-488.

[3] OLIVEIRA, Carlos E. Elias de; COSTA-NETO, João. Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense; Método, 2022, pp. 487-488.

[4] OLIVEIRA, Carlos E. Elias de; COSTA-NETO, João. Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense; Método, 2022, pp. 447-448.

[5] Oliveira, Carlos E. Elias de. Entendendo a formação das leis: A interação entre os Três Poderes, o “boicote hermenêutico” e o “justiçamento de transição”. Link: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/373787/entendendo-a-formacao-das-leis. Publicado em 21 de setembro de 2022.

[6] Art. 335. A consignação tem lugar:

I – se o credor não puder, ou, sem justa causa, recusar receber o pagamento, ou dar quitação na devida forma;

II – se o credor não for, nem mandar receber a coisa no lugar, tempo e condição devidos;

III – se o credor for incapaz de receber, for desconhecido, declarado ausente, ou residir em lugar incerto ou de acesso perigoso ou difícil;

IV – se ocorrer dúvida sobre quem deva legitimamente receber o objeto do pagamento;

V – se pender litígio sobre o objeto do pagamento.

[7] PEREIRA, Rafael Vasconcellos de Araújo. Processo Civil Aplicado. Brasília: Virtual Editora, 2019, p. 625.

[8] Art. 302. Independentemente da reparação por dano processual, a parte responde pelo prejuízo que a efetivação da tutela de urgência causar à parte adversa, se:

I – a sentença lhe for desfavorável;

II – obtida liminarmente a tutela em caráter antecedente, não fornecer os meios necessários para a citação do requerido no prazo de 5 (cinco) dias;

III – ocorrer a cessação da eficácia da medida em qualquer hipótese legal;

IV – o juiz acolher a alegação de decadência ou prescrição da pretensão do autor.

Parágrafo único. A indenização será liquidada nos autos em que a medida tiver sido concedida, sempre que possível.

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