Direito de Imagem Após a Morte: O Vácuo Normativo e a sua Perspectiva Patrimonial

Direito de Imagem Após a Morte: O Vácuo Normativo e a sua Perspectiva Patrimonial

    

Rodrigo Moraes[1] e Pablo Stolze Gagliano[2]


[1] Professor de Direito Civil da Faculdade de Direito da UFBA.

[2] Professor de Direito Civil da Faculdade de Direito da UFBA.

Sumário: 1. A problemática posta em debate: o uso comercial da imagem post mortem de John Lennon.2. A temporalidade dos direitos patrimoniais de autor. 3. O vácuo normativo em relação à temporalidade da faceta econômica do direito de imagem. 4. Conclusões. Referências bibliográficas.

1 A PROBLEMÁTICA POSTA EM DEBATE: O USO COMERCIAL DA IMAGEM POST MORTEM DE JOHN LENNON

Renato Russo era um grande fã de John Lennon.

Quando ainda vocalista da banda Aborto Elétrico – depois ele se tornou band leader da Legião Urbana –, um de seus maiores ídolos musicais, John Lennon, foi covardemente assassinado a tiros, no dia 8 de dezembro de 1980, em Nova York.

Ao tomar conhecimento desse crime de repercussão mundial, Renato Russo sofreu muito. Poucos dias depois, deparou-se com um ambulante brasiliense que praticava aquele brocardo popular: “Enquanto uns choram, outros vendem lenços”. No caso específico, estavam sendo vendidas camisetas com a foto estampada de John Lennon.

Eis o áspero diálogo que Renato Russo travou com o ambulante:

– Você está ganhando dinheiro em cima da morte do Lennon! Não tem vergonha, não?

– Mas é uma homenagem ao Lennon…

– Se é homenagem, então, dá de graça, sai distribuindo a camiseta![1]

Renato Russo sabia que aquela “homenagem” não era uma genuína homenagem.

Não raro, tal tipo de conduta consiste em aproveitamento comercial de uma figura pública e famosa, que tem grande potencial de projetar efeitos econômicos para além de sua morte. Renato Russo, mesmo não sendo jurista, percebeu que a fruição econômica da imagem de John Lennon pelo ambulante era muito mais uma violação do direito de imagem post mortem do que uma sincera e inofensiva homenagem ao lendário ex-Beatle.

As obras musicais de John Lennon, um dia, cairão em domínio público, tendo em vista a temporalidade dos direitos patrimoniais de autor.

Quando o repertório de John Lennon sair do domínio privado e cair em domínio público, qualquer pessoa poderá gravar e utilizar com fins comerciais, por exemplo, a bela canção Imagine, sem autorização dos sucessores de Lennon ou da Lenono Music, editora titular dos direitos patrimoniais da referida obra.

E a faceta econômica do direito de imagem?

Indaga-se: no ano 2180, quando for celebrado o bicentenário de falecimento do ilustre cantor e compositor, uma sociedade empresária brasileira poderá reproduzir comercialmente a imagem do ex-Beatle sem infringir direito de imagem post mortem?

Todo o repertório musical de John Lennon, no longínquo ano de 2180, certamente já estará em domínio público.

Mas e o direito de imagem?

Importante noticiar que consta no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), desde 23 de março de 2022, o pedido de registro da marca mista John Lennon na classe 25 (vestuário, calçados e chapelaria), conforme processo administrativo autuado sob o número 926113992, cujo requerente é The Imagine Peace Revocable Trust, representada pela viúva do ex-Beatle, Yoko Ono Lennon.

Portanto, no ano de 2180, se estiver válido o registro da marca mista John Lennon no INPI na classe 25, ficará vedada venda de camisetas contendo a assinatura do ex-Beatle.

E como ficaria o uso da sua imagem?

Em relação ao direito marcário, importante consignar que a Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, XIX, dispõe in verbis que “a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País”.

O legislador constitucional fala em privilégio temporário, ao se referir aos inventos industriais.

A Constituição utiliza o vocábulo “propriedade” apenas para fazer referência às marcas. Uma marca é um bem intelectual que pode ter proteção perpétua, desde que o produto ou serviço prossiga firme no tempo, atendidas as formalidades administrativas do INPI (p. ex., pagamento de taxas em cada decênio). E não há mal algum nessa perpetuidade da proteção marcária, tendo em vista que a finalidade precípua desse sinal distintivo é distinguir produtos e serviços, em prol, inclusive, da coletividade, do consumidor.

Pois bem.

Há um vácuo normativo, sobre a questão da temporalidade da faceta patrimonial do direito de imagem.

Pretendemos, portanto, fomentar na doutrina pátria a curiosidade para a reflexão desse importante tópico ligado aos direitos da personalidade.

2 A TEMPORALIDADE DOS DIREITOS PATRIMONIAIS DE AUTOR

Os direitos patrimoniais de autor não podem ser perpétuos.

No Brasil, caso uma lei ordinária previsse uma perpetuidade da faceta patrimonial do direito de autor, estaria inquinada de inconstitucionalidade. Isso porque o art. 5º, XXVII, da Constituição Federal de 1988, dispõe in verbis: “aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar”.

A referida norma constitucional, na célebre classificação tripartite de José Afonso da Silva, é norma de eficácia contida.[2] A competência discricionária do legislador ordinário possui, portanto, limites. As Constituições de 1891, 1934, 1946, 1967, 1969 e 1988 dispuseram – com redações diversas – sobre a transmissibilidade (e temporalidade) dos direitos patrimoniais de autor. Apenas a Constituição Imperial de 1824 e a Constituição de 1937 não trataram da matéria.

O princípio da temporalidade dos direitos patrimoniais de autor é direito fundamental. Faz parte do núcleo duro da Constituição Federal. É cláusula pétrea, intangível, conforme disposição do art. 60, §4º, do texto constitucional, não podendo ser objeto de emenda pelo legislador constituinte reformador.[3]

Na redação original do projeto do Código Civil de 1916, elaborada por Clóvis Beviláqua, em 1899, era prevista a perpetuidade da proteção da “propriedade literária, científica e artística”. Uma emenda estabeleceu o tempo de 60 anos post mortem auctoris. Tal modificação, que resultou no art. 649 do Código Civil, não convenceu o jurista cearense, que teceu os seguintes comentários:

O Projeto primitivo propusera a perpetuidade para o direito dos autores. Contra esse modo de ver levantam-se objeções, que não são muito convincentes. […] E, uma vez criada essa riqueza imaterial, não há, em princípio, razão teórica para que se não transmita pelos modos adotados para a transmissão da riqueza material. São razões de ordem prática, e uma certa obscuridade de ideias, próprias da fase evolucional, em que se acha o direito autoral, que explicam essa forma de propriedade menos plena, de propriedade temporária e revogável, que as leis imprimem ao direito dos autores.[4]

Na Espanha, por meio do Decreto de 5 de agosto de 1823, foi prevista a perpetuidade. Mas esse direito patrimonial perpétuo durou pouquíssimo, apenas entre 5 de agosto e 1º de outubro de 1823. Menos de dois meses.

Em 1876, um grupo de deputados espanhóis de grande prestígio intelectual apresentou um projeto de lei equiparando a propriedade intelectual à propriedade comum. Foi pleiteada, assim, a perpetuidade dos direitos patrimoniais de autor. Don Manuel Dánvila y Collado foi um defensor ferrenho dessa perpetuidade. Dizia Dánvila: “o la propiedad intelectual es justa, y entonces no termina nunca, o es injusta, y en este caso no debe comenzar”.[5]  

Houve grande polêmica nos debates legislativos, vencendo a corrente defensora da temporalidade dos direitos patrimoniais. Em 10 de janeiro de 1879, foi publicada uma lei prevendo prazo de oitenta anos post mortem auctoris, o que fez da Espanha o país com o maior prazo protetivo de toda a Europa.

Atualmente, na Espanha, Carlos Rogel Vide insiste – mas sem nos convencer – na tese da perpetuidade dos direitos patrimoniais de autor.[6]

A lei portuguesa de 1927, que sucedeu a de 1851, previu a perpetuidade do direito de autor. Caso isolado entre os países signatários da Convenção de Berna. Tal diploma perdurou naquele país por cerca de quarenta anos. Com o Código do Direito de Autor, de 1966, foi revogado o regime de proteção perpétua.

É oportuno dizer que o México, em 23 de julho de 2003, seguindo essa perigosa marcha para a perpetuidade, alterou sua Ley Federal del Derecho de Autor (art. 29º), de 1997, aumentando o prazo de 75 para 100 anos post mortem auctoris.[7] Com isso, tornou-se o país da América Latina com o maior prazo de proteção, superando o da Colômbia, que é de 80 anos post mortem auctoris.

Sucede que, em essência, a propriedade não é sempre perpétua.

A perpetuidade não é uma condição sine qua non para a existência do direito de propriedade. Em regra, a propriedade é perpétua, mas poderá ser temporária, como, por exemplo, a propriedade resolúvel[8].

Aliás, o direito de autor não é uma propriedade.

É uma pretensa “propriedade”, no dizer de José de Oliveira Ascensão.[9] O direito de autor é um direito exclusivo temporário. Fala-se em propriedade tão somente porque os revolucionários franceses utilizaram essa expressão, na falta, à época, de outra melhor.

Sendo assim, como nem toda propriedade é perpétua, e como o direito de autor não é propriedade, o direito de autor não pode ser perpétuo.

Concordamos com a nomenclatura direitos intelectuais para designar uma quarta categoria de direitos (além dos direitos pessoais, obrigacionais e reais), seguindo, assim, a classificação quadripartida criada pelo jurista belga Edmond Picard (1836-1924), no final do século XIX.

O jurista Pierre Recht, cerca de um século após a correta classificação como categoria autônoma – direitos intelectuais – feita pelo seu conterrâneo Edmond Picard, defendeu a tese de que o direito de autor seria um direito real de propriedade. Segundo ele, o direito de autor seria uma nova forma de propriedade, que denominou de propriété-création (propriedade-criação), fundada no trabalho criador do autor. Essa propriété-création conviveria com a clássica propriété-possession (propriedade-posse).Na visão de Recht, seria um erro dizer que a teoria da propriedade,para fundamentar a natureza jurídica do direito de autor, estaria enterrada; como Fênix, essa teoria ressurgia das cinzas.[10] Com a devida vênia, não convence a opinião de Pierre Recht.

No seu livro Direitos Reais, Orlando Gomes afirma que a denominada “propriedade intelectual” não é, na verdade, propriedade. Certíssima observação do jurista baiano. Para ele, “a assimilação é tecnicamente falsa”.[11]

Eis as precisas palavras de Orlando Gomes, sem qualquer nota do atualizador:

O objeto do direito de propriedade não é definido em termos incontroversos. Tradicionalmente, afirma-se que hão de ser os bens corpóreos, mas, contra essa doutrina, que foi pacífica, levantou-se corrente doutrinária que o estende aos bens incorpóreos. Seus partidários admitem a existência de propriedade literária, artística e científica, que, recaindo nas produções do espírito humano, teria como objeto bens imateriais. Outros vão adiante, sustentando que os direitos podem ser objeto de propriedade. Recentemente, o conceito de propriedade alarga-se abrangendo certos valores, como o fundo de comércio, a clientela, o nome comercial, as patentes de invenção e tantos outros. Fala-se, constantemente, em propriedade industrial para significar o direito dos inventores e o que se assegura aos industriais e comerciantes sobre as marcas de fábricas, desenhos e modelos. Chega-se até a admitir a propriedade de cargos e empregos.

O fenômeno da propriedade incorpórea explica-se como reflexo do valor psicológico da ideia de propriedade, mas, embora esses direitos novos tenham semelhança com o de propriedade, porque também são exclusivos e absolutos, com ela não se confundem. A assimilação é tecnicamente falsa. Poderiam enquadrar-se, contudo, numa categoria à parte, que, alhures, denominamos quase-propriedade.

Quanto à propriedade de direitos, admitida por Gierke para significar o poder um indivíduo sobre a totalidade de seu direito, só poderia aceitar como força de expressão; porquanto, como salienta Wolff, não é possível aplicar-se-lhe o regime jurídico da propriedade corpórea.

Subsiste, assim, a doutrina de que o objeto do direito de propriedade não pode ser senão bens corpóreos.

Silmara Chinellato também acredita que o direito de autor não possui natureza jurídica de propriedade.

A autora, em sua Tese para Concurso de Professora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, faz uma minudente análise das diferenças entre direito de autor e o direito de propriedade estudado pelos civilistas, comprovando que “propriedade intelectual”, indubitavelmente, contém equivocidade terminológica. Chinellato cita 08 (oito) diferenças existentes entre direito de autor e direito de propriedade.[12]

A nomenclatura “propriedade intelectual”, apesar de errônea, continua em pleno uso atualmente, não tendo sido ainda erradicada do mundo jurídico.

Tanto que existem a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) e a Associação Brasileira da Propriedade Intelectual (ABPI). O discurso em prol da defesa desse tipo de “propriedade” continua sendo atraente e poderoso. Há um inescondível valor retórico por trás desse vocábulo, tanto que especialistas da área que o consideram errôneo costumam não abrir mão do seu uso. No mundo jurídico há terminologias que, mesmo comprovadamente equivocadas, continuam em uso corrente.

Existem diversos argumentos que tentam justificar a temporalidade dos direitos patrimoniais de autor.

O principal deles é o seguinte: de nihilo, nihil, ou seja, nada vem do nada. O autor está imerso num determinado contexto histórico e social. Retira daí o substrato de sua criação intelectual. A comunidade oferta ao autor a matéria-prima para as suas criações. Esse foi – e continua sendo – o principal argumento da doutrina autoralista.

A arte tem fôlego capaz de atravessar séculos.

Basta constatar, por exemplo, que há milhões e milhões de ouvintes mensais de Johann Sebastian Bach (1685-1750) nas plataformas de streaming musical. Todas as obras de Bach já estão em domínio público, mas não no esquecimento do público ouvinte. Essa longevidade de Bach não significa que os direitos patrimoniais de autor devam estar protegidos per secula seculorum. Mais cedo ou mais tarde as obras musicais devem cair em domínio público.

O tempo passou, e a tese da perpetuidade defendida, no Brasil, por Clóvis Beviláqua e inclusive por José de Alencar[13] não pode mais ser aceita.

O domínio público é um dos pilares filosóficos do direito de autor, existente tanto no sistema europeu do droit d´auteur quanto no sistema anglo-saxão do copyright.

No Direito de Autor, portanto, o debate sobre a temporalidade dos direitos patrimoniais já existe e é antiga.

Mas a doutrina pátria pouco se debruçou sobre a tese da temporalidade da faceta patrimonial do direito de imagem.

A seguir, será tecida uma breve reflexão sobre esse tema específico, que ainda não teve regulação normativa em nosso ordenamento jurídico.

E esse hiato normativo gera, sem dúvida alguma, insegurança jurídica.

3 O VÁCUO NORMATIVO EM RELAÇÃO À TEMPORALIDADE DA FACETA ECONÔMICA DO DIREITO DE IMAGEM

O direito de imagem está previsto no art. 5º, X, da Constituição Federal, como direito da personalidade autônomo: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

O legislador constituinte não afirmou que a faceta patrimonial do direito de imagem seria “transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar”.

De acordo com Carlos Alberto Bittar, compreendem-se no contexto do direito à imagem “tanto pessoas vivas, como mortas, eis que o direito não cessa com o falecimento, cabendo aos herdeiros promover a sua defesa, por direito próprio, como tem sido posto nas codificações e leis do presente século.”[14]

O velho adágio jurídico mors omnia solvit (a morte tudo resolve) tem aplicação mitigada no campo dos direitos da personalidade. Tais direitos se estendem desde a concepção para além da vida da pessoa natural. Há, portanto, eficácia post mortem dos direitos da personalidade.

Os parágrafos únicos do art. 12 e do art. 20 do Código Civil brasileiro de 2002 dispõem sobre a legitimidade ativa para interpor ação indenizatória contra violação ao direito da personalidade post mortem.

Regina Sahm traz julgado de 1989, do Tribunal da Grande Instância de Aix-en-Provence, França, que tratou da utilização da imagem de falecido ator para fins publicitários, no qual ficou consolidado que “é ilícita a utilização realizada sem autorização do herdeiro, a quem cabe explorar a imagem segundo as regras do mercado publicitário”.[15]

No Brasil, Glauber Rocha filmou, em outubro de 1976, o velório do pintor Di Cavalcanti. O cineasta baiano filmou o funeral, dando destaque à imagem do corpo do artista plástico dentro de um caixão, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Foi filmada com close a face cadavérica do artista. Em 1977, o filme “Di-Glauber” foi lançado e premiado. A filha do ilustre pintor ajuizou uma ação por conta desse uso desautorizado – e talvez desrespeitoso – da imagem do seu falecido pai. O filme foi proibido em decisão proferida, em mandado de segurança, pela 7ª Vara Cível do TJRJ. O episódio virou dissertação de mestrado na Universidade de São Paulo.[16]

Existem decisões judiciais sobre utilização de imagem de pessoa falecida por empresa jornalística em nítido caráter sensacionalista, com abuso do direito de informação.[17]

Importante dizer que o direito de imagem não é ilimitado.

Direito fundamental disposto no art. 5º, X, da Constituição Federal de 1988, deve ser exercido em equilíbrio com outros direitos fundamentais, tais como os direitos à liberdade de expressão, à cultura e à informação.

Para tentar oferecer critério de ponderação para a rotineira colisão do direito de imagem com outros direitos fundamentais foi editado o Enunciado 279 do Conselho da Justiça Federal, que traz o seguinte texto:

A proteção à imagem deve ser ponderada com outros interesses constitucionalmente tutelados, especialmente em face do direito de amplo acesso à informação e da liberdade de imprensa. Em caso de colisão, levar-se-á em conta a notoriedade do retratado e dos fatos abordados, bem como a veracidade destes e, ainda, as características de sua utilização (comercial, informativa, biográfica), privilegiando-se medidas que não restrinjam a divulgação de informações.

Hermano Duval noticia que o art. 23 da Lei alemã de 1907 já dispunha que o direito à imagem não é absoluto, especialmente: “a favor da fotografia de vultos da história contemporânea (homens de Estado, personagens ilustres, vedettes literárias, artísticas ou desportivas).”[18]

O biógrafo e jornalista Paulo Cesar de Araújo teve seu livro Roberto Carlos em Detalhes censurado em 2007. O caso é minudentemente narrado no seu livro O Réu e o Rei.

Sobre essa temática de biografias não autorizadas, o Supremo Tribunal Federal, à unanimidade, em 10 de junho de 2015, julgou procedente Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4815) “para dar interpretação conforme à Constituição aos arts. 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto, para, em consonância com os direitos fundamentais à liberdade de pensamento e de sua expressão, de criação artística, produção científica, declarar inexigível autorização de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais, sendo também desnecessária autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas ou ausentes)”.

O referido biógrafo Paulo Cesar de Araújo, em 2021, lançou um novo livro, Roberto Carlos Outra Vez – Volume 1 – 1941-1970,contendo, na capa da obra literária, a imagem de Roberto Carlos, além de várias outras fotografias do cantor biografado. Houve autorização prévia tão somente dos titulares dos direitos patrimoniais das obras fotográficas. De acordo com a histórica decisão do STF, tornou-se desimportante a aquiescência prévia e expressa do biografado para a utilização de sua imagem numa biografia literária ou cinematográfica.

Saiamos do contexto do uso de uma imagem para fins biográficos.

Atenhamo-nos ao uso comercial da imagem de uma pessoa falecida fora do contexto biográfico.

O Código Civil de 2022, diferentemente do direito alemão, não prevê um prazo específico para a exploração da imagem da pessoa morta.

De lege data, há uma lacuna normativa.

Afinal, a proteção póstuma deveria ter limite temporal? Ou deveria ser considerada perpétua? A faceta patrimonial do direito de imagem, caso tenha sido negociado em vida, deveria cair em domínio público após algum prazo contado da morte do titular originário da imagem?

A imagem de Virgulino Ferreira da Silva e Maria Déa (o famoso casal Lampião e Maria Bonita), mortos em 1938, foi utilizada numa campanha publicitária do LLOYDS BANK PLC publicada na edição 977 da revista VEJA. A filha única e herdeira universal do casal, Expedita Ferreira Nunes, ajuizou uma ação e foi vitoriosa no STJ (REsp 86109/SP).

O Ministro Barros Monteiro, em decisão de 28 de junho de 2001, entendeu que a “utilização da imagem da pessoa, com fins econômicos, sem a sua autorização ou do sucessor, constitui locupletamento indevido, a ensejar a devida reparação.” Compreendeu, ainda, que não houve demonstração da instituição financeira ré de que a foto havia caído em domínio público, de acordo com as regras insertas no art. 42 e seus parágrafos da Lei n° 5.988, de 1973, a Lei de Direitos Autorais vigente à época do fato. O ministro relator afirmou que a instituição financeira ré tinha sede no exterior, e que ela quis vincular sua imagem à história brasileira, querendo, com isso, inquestionavelmente, captar clientes.

Eis o ponto central da nossa reflexão: cai em domínio público o direito patrimonial de imagem? É possível aplicar analogicamente a Lei de Direitos Autorais? Em regra, hoje, entende-se que a utilização da imagem post mortem deve ser precedida da autorização dos herdeiros. Mas isso deve ocorrer ad infinitum?

Os direitos da personalidade foram concebidos com base no princípio da dignidade da pessoa humana. Não à toa, o Enunciado 274 da IV Jornada de Direito Civil do CJF dispôs que “os direitos da personalidade, regulados de maneira não exaustiva pelo Código Civil de 2002, são expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no art. 1º, inc. III, da Constituição (princípio da dignidade da pessoa humana).”

Mesmo sendo caracterizado como direito extrapatrimonial, o direito de imagem possui, inescondivelmente, uma face econômica, que pode ser licenciada ou mesmo cedida, no âmbito do princípio da autonomia privada.

Mas, em algum momento, cairia em domínio público a faceta patrimonial do direito de imagem de uma pessoa famosa?

Seria possível, por exemplo, a utilização da imagem do civilista Orlando Gomes, falecido em 1988, por uma faculdade privada de Direito, sem a prévia autorização dos seus sucessores?

Caso negativo, seria possível essa utilização inconsentida em 2088, data do futuro centenário de seu falecimento? Nessa longínqua e vindoura data a obra completa de Orlando Gomes já estará em domínio público.

E mais: até quantos anos após a morte do jurista Orlando Gomes o Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI deverá exigir a prova de titularidade de sua imagem e de seu nome para o deferimento de um pedido de registro de marca?

O art. 124, XV, da Lei de Propriedade Industrial (Lei 9.279, de 1996) preconiza:

Art. 124. Não são registráveis como marca:

[…]

XV – nome civil ou sua assinatura, nome de família ou patronímico e imagem de terceiros, salvo com consentimento do titular, herdeiros ou sucessores;

O atual Manual de Marcas do INPI[19] nada diz sobre essa questão da temporalidade ou perpetuidade do direito de imagem ou do direito ao nome post mortem para efeito de registro de marca. O Manual se atém a dizer que “o dispositivo legal disposto no inciso XV do art. 124 da LPI tem como base os direitos da personalidade, regulados pelo Código Civil. Desta forma, os pedidos de registro que apresentem sinais constituídos por nome civil, assinatura e imagem de terceiros (notórios ou não) e cujo requerente não seja o próprio titular do direito da personalidade devem estar acompanhados de autorização do detentor do direito para registrá-lo como marca”.

Qual, então, o limite da proteção (post mortem) do direito de imagem?

Em princípio, vislumbra-se a possibilidade do exercício patrimonial da imagem de pessoa morta pelos seus herdeiros, tendo por parâmetro a proteção dos direitos patrimoniais de autor, post mortem, consolidada pela Lei de Direitos Autorais em seu art. 41, que dispõe: “Os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil”.

No entanto, pela evidente distinção da natureza dos direitos em baila (autoral e à imagem), o prazo para cair em domínio público não poderia ser o mesmo do art. 41 da LDA (70 anos), recomendando-se, por certo, uma normatização específica.

No direito alemão, o prazo da proteção patrimonial do direito à imagem é de dez anos após a morte do seu titular[20].

A Lei de Direitos Autorais em Obras de Belas Artes e Fotografia alemã (§ 22, 3, KUrhG) dispõe: “Os retratos só podem ser distribuídos ou exibidos publicamente com o consentimento da pessoa retratada. Em caso de dúvida, considera-se que o consentimento foi dado se a pessoa retratada tiver recebido pagamento por se permitir ser retratada. Após a morte da pessoa retratada, é necessário o consentimento dos parentes da pessoa retratada por um período de 10 anos. Para os fins desta lei, são parentes o cônjuge ou companheiro sobrevivente e os filhos da pessoa retratada e, se não houver cônjuge ou companheiro, nem filhos, os pais da pessoa retratada”.[21]

O direito positivo brasileiro, nessa linha, deve ter essa lacuna suprida, mediante a expressa normatização do uso do direito de imagem post mortem.

4 CONCLUSÕES

A proteção póstuma da faceta patrimonial do direito de imagem não deveria ser ad eternum. Não deveria ser perpétua. Ao revés, deveria ter limite temporal e, portanto, cair em domínio público após algum prazo contado da morte do titular originário da imagem.

Existe, no Brasil, um vácuo normativo, além de pouca reflexão doutrinária sobre a matéria.

Enquanto não houver norma legal expressa, propõe-se, aqui, a aplicação analógica da Lei de Direitos Autorais brasileira (Lei 9.610/1998), que prevê limite temporal para os direitos patrimoniais.

Nessa perspectiva, quando as obras literárias de Jorge Amado, por exemplo, estiverem em domínio público, não será desarrazoado que a faceta patrimonial do direito de imagem do saudoso escritor baiano também esteja fora do domínio privado, excetuadas as eventuais e específicas hipóteses em que houver proteção marcária, por força de registro em vigor no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI).

Mas o ideal (e o esperado) é que haja normas específicas, regulamentando o uso da imagem post mortem, especialmente o prazo após o qual cairá em domínio público.

A reflexão aqui traçada merece o devido aprofundamento. Este estudo tem o objetivo precípuo de fomentar o debate cuidadoso sobre a limitação temporal da faceta econômica do direito de imagem post mortem, quenão merece ser tachada como uma forma de desrespeito aos mortos.

Consiste, sim, em proposta de limitação a um direito da personalidade, que, como todo direito, não deve ser considerado ilimitado.

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[1] MARCELO, Carlos. Renato Russo: o filho da revolução. São Paulo: Planeta, 2016, p. 171.

[2] O constitucionalista classifica as normas constitucionais em: a) normas de eficácia plena; b) normas de eficácia contida; c) normas de eficácia limitada. Para ele, o art. 5º, XXVII seria um exemplo de norma de eficácia contida. Cf. a sua clássica obra Curso de Direito Constitucional Positivo (JusPodivm/Malheiros).

[3] MORAES, Rodrigo. Direito fundamental à temporalidade (razoável) dos direitos patrimoniais de autor. In: SANTOS, Manoel J. Pereira dos (Coord.). Direito de Autor e Direitos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 254-290.

[4] BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil Comentado. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Livraria Francisco Alves, 1923, p. 181-182.  

[5] ROGEL VIDE, Carlos (Org.). La duración de la propiedad intelectual y las obras en dominio público. Madri: Reus e AISGE, 2005, p. 327.

[6] ROGEL VIDE, Carlos (Org.). La duración de la propiedad intelectual y las obras en dominio público. Madri: Reus e AISGE, 2005, p. 325-335.

[7] Eis a redação do atual art. 29 da Lei Mexicana: “Artículo 29 Los derechos patrimoniales estarán vigentes durante: I. La vida del autor y, a partir de su muerte, cien años más. Cuando la obra le pertenezca a varios coautores los cien años se contarán a partir de la muerte del último”. 

[8] “Com efeito, a propriedade é, em essência, perpétua, com duração ilimitada, podendo ser transmitida indefinidamente, por gerações. Todavia, por exceção, pode-se falar também de uma propriedade resolúvel, entendida como aquela que encontra, no seu próprio título constitutivo, uma razão de sua extinção.” (GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil – Direitos Reais, v. 5. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2022, p. 122). Também a propriedade fiduciária não tem por nota essencial a perpetuidade: “… a propriedade fiduciária, pela literalidade da lei, constitui modalidade de propriedade resolúvel (TARTUCE, Flávio. Direito Civil – Direito das Coisas, v. 4. 14ª ed. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2022, p. 190). Na mesma linha, a denominada propriedade ad tempus também encontra limite existencial: “A propriedade revogável ou ad tempus é aquela que se extingue por outra causa superveniente que não seja o implemento de uma condição ou termo resolutivos.” (OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias e COSTA-NETO, JOÃO. Direito Civil – Volume Único. Rio de Janeiro: Forense/Método, 2022, p. 944). É o que se dá, por exemplo, com a posterior revogação da doação por ato de ingratidão do donatário.

[9] ASCENSÃO, José de Oliveira. A pretensa “propriedade” intelectual. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo: RIASP, v. 10, n. 20, p. 243-261, jul./dez. 2007.

[10] RECHT, Pierre. Le Droit d’auteur, une nouvelle forme de propriété, histoire et théorie. Paris: LGDJ, 1969, p. 9.

[11] GOMES, Orlando. Direitos Reais. 19. ed. Revista, atualizada e aumentada por Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: 2008, p. 112.

[12] CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu. Direito de autor e direitos da personalidade: reflexões à luz do Código Civil. Tese de concurso para Professora Titular do Departamento de Direito Civil. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo: 2008, p. 79-85.

[13] MORAES, Rodrigo. O Projeto de Lei 74/1875, de José de Alencar, e a atualidade do debate sobre domínio público no Direito de Autor. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 26. ano 8. p. 175-211. São Paulo: RT, jan.-mar./2021

[14] BITTAR, Carlos Alberto. Direitos da personalidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999, p. 95.

[15] SAHM, Regina. Direito à Imagem no Direito Civil Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 173.

[16] GNASPINI, José Mauro. Di-Glauber: filme como funeral reprodutível. 2003. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003. Acesso em: 08 out. 2022.

[17] Eis um exemplo oriundo do Tribunal de Justiça fluminense:

“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. DANOS MORAIS. Exposição de imagem de pessoa morta e ensanguentada em matéria jornalística. Demanda ajuizada pelo cônjuge sobrevivente com o fim de compelir o réu a se abster de divulgar por qualquer meio a imagem de fls. 8. Sentença procedente. Manutenção do decisum. Abuso do direito de informação com violação ao direito de imagem do morto. Fotografia escolhida de caráter sensacionalista, exagerada e, portanto, desnecessária, impondo à autora profundo sofrimento e sentimento de irresignação. Muito embora a matéria veiculada no periódico da ré buscasse tão somente informar ao leitor sobre o cometimento de ação criminosa (assassinato), na intenção de informar os cidadãos sobre os fatos verdadeiramente ocorridos naquela ocasião, e não a de difamar ou caluniar o falecido, o fato é que a imagem veiculada na forma dos autos é irrazoável, desrespeitosa e vexatória, pois mostra a pessoa do retratado toda ensanguentada logo após ter sido vítima de assassinato, sem considerar os sentimentos da família para com a imagem em questão. Quantum fixado com prudência e razoabilidade. Caráter dúplice do dano moral. Correção monetária desde a sentença e juros a contar da citação. APELO CONHECIDO E DESPROVIDO.

(TJ-RJ – APL: 00104583120158190007 RIO DE JANEIRO BARRA MANSA 1 VARA CIVEL, Relator: FERDINALDO DO NASCIMENTO, Data de Julgamento: 31/05/2016, DÉCIMA NONA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 03/06/2016)”.

[18] DUVAL, Hermano. Direito à imagem. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 127.

[19] Disponível em: http://manualdemarcas.inpi.gov.br. Acesso em 9 out. 2022.

[20] ZANINI, Leonardo Estevam de Assis. Direitos da personalidade: aspectos essenciais. São Paulo: Saraiva, 2011,p. 201.

[21] “Bildnisse dürfen nur mit Einwilligung des Abgebildeten verbreitet oder öffentlich zur Schau gestellt werden. Die Einwilligung gilt im Zweifel als erteilt, wenn der Abgebildete dafür, daß er sich abbilden ließ, eine Entlohnung erhielt. Nach dem Tode des Abgebildeten bedarf es bis zum Ablaufe von 10 Jahren der Einwilligung der Angehörigen des Abgebildeten. Angehörige im Sinne dieses Gesetzes sind der überlebende Ehegatte oder Lebenspartner und die Kinder des Abgebildeten und, wenn weder ein Ehegatte oder Lebenspartner noch Kinder vorhanden sind, die Eltern des Abgebildeten.”

Foto de Ron Lach : https://www.pexels.com/pt-br/foto/arte-borrao-mancha-nevoa-8259339/