DIRETIVA ANTECIPADA DE VONTADE LATO SENSU: o que deve acontecer com o vida, o corpo e o patrimônio no caso de perda de lucidez ou de morte?

DIRETIVA ANTECIPADA DE VONTADE LATO SENSU: o que deve acontecer com o vida, o corpo e o patrimônio no caso de perda de lucidez ou de morte?

Carlos Eduardo Elias de Oliveira

Professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na Universidade de Brasília – UnB –, no IDP/DF, na Fundação Escola Superior do MPDFT – FESMPDFT, no EBD-SP, na Atame do DF e de GO e em outras instituições.

Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil (único aprovado no concurso de 2012), Advogado, ex-Advogado da União e ex-assessor de ministro STJ.

Doutorando, mestre e bacharel em Direito pela UnB (1º lugar no vestibular de 1º/2002).

Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro

E-mail: carloseliasdeoliveira@yahoo.com.br

Resumo

Este artigo trata das Diretiva Antecipada de Vontade Lato Sensu. Trata-se de ato por meio do qual a pessoa dá as diretrizes a serem seguidas em situação de perda de lucidez relativamente a tratamentos de saúde, na gestão de patrimônio e no cuidado de sua rotina. Pode abranger também cláusulas concernentes ao destino do cadáver no caso de morte e a outras questões vitais ou cadavéricas. Diferencia-se, porém, do testamento e do codicilo, que lidam com destino do patrimônio no caso de morte. É um tema que merece a atenção do Congresso, especialmente no que tange à gestão dos dados de escrituras que disciplinam a referida Diretiva.

Palavras-Chave: Diretiva Antecipada de Vontade Lato Sensu. Diretiva de Curatela. Autodeterminação da vida. Autonomia privada da vontade.

Sumário

1 Introdução.

2.   Direito Civil e a autodeterminação quanto à vida e ao cadáver 

3.   DAV lato sensu.

4.1 Limites para o testamento vital e da procuração para cuidados para saúde: caso da transfusão de sangue em testemunha de Jeová e outros casos 

4.2 Outras disposições vitais ou cadavéricas da DAV stricto sensu 

5. Diretiva de Curatela.

6. Forma da DAV lato sensu.

CONCLUSÕES.

1 Introdução

Há alguns eventos na vida diante dos quais qualquer ser humano – do mais habilidoso ao mais modesto – revela-se totalmente vulnerável.

O primeiro deles é o que Manuel Bandeira chamava de a “Indesejada das gentes”. Para ela, o poeta dirigiu estes versos, no poema “Consoada”:

“Quando a Indesejada das gentes chegar

(Não sei se dura ou caroável),

talvez eu tenha medo.

Talvez sorria, ou diga:

— Alô, iniludível!”

O outro evento é a perda de lucidez por diversos motivos, como uma doença mental, um acidente etc.

O Direito disponibiliza ferramentas para que as pessoas possam manifestar a sua vontade acerca de seus bens e de si próprias para quando esses iniludíveis vierem.

No caso da morte, temos o testamento e o codicilo, como instrumentos para destinação do patrimônio do falecido. A legislação e a doutrina já são muito consolidadas acerca deles. Para comandos relativos ao cadáver, não há um instrumento específico. De um modo geral, para a cremação, basta que seja comprovada a vontade da pessoa, o que costuma ser admitido mediante declaração dos parentes após a morte (art. 77, § 2º, da Lei nº 6.015/1973 e leis municipais[1]). Similar é o entendimento para submissão do cadáver à criogenia: o STJ satisfez-se com a manifestação de vontade dos parentes[2].

No caso de perda de lucidez, o instrumento principal é a Diretiva Antecipada de Vontade “lato sensu” (DAV), por meio da qual a pessoa dá comandos acerca dos tratamentos médicos a que quer se submeter e do modo como deve se dar gestão de sua pessoa e de seus bens. A legislação e a doutrina brasileiras não estão ainda amadurecidas, motivo que nos leva a escrever este opúsculo.

Neste Texto para Discussão, trataremos da Diretiva Antecipada de Vontade (DAV) lato sensu, que pode ser dividida em duas espécies: a DAV stricto sensu e a Diretiva de Curatela. Trata-se de instrumentos por meio dos quais a pessoa manifesta a sua vontade para dispor sobre o que deve ser feito em relação à gestão de seu patrimônio, ao cuidado de sua saúde, ao trato de sua convivência diária e ao destino de seu corpo no caso de perda de lucidez ou de morte. Não se confundem com o testamento e o codicilo, pois estes restringem-se a disposições patrimoniais post mortem.

Entre as ideias, está a de ser editada uma lei para conferir maior efetividade à DAV lato sensu, à semelhança do que se deu em Portugal em relação à DAV stricto sensu por meio de sua Lei nº 25/2012, de 16 de julho[3].

2.   Direito Civil e a autodeterminação quanto à vida e ao cadáver

Nem tudo está sob o controle do ser humano. Isso fica mais visível no caso de perda de lucidez por qualquer motivo.

O Direito Civil dispõe de ferramentas para que, mesmo nesse momento de perda de lucidez, o ser humano possa realizar a sua própria vontade.

Afinal – independentemente da corrente epistemológica adotada (Recivilização Constitucional ou Constitucionalização do Direito Civil[4]), a qual poderá adotar caminhos discursivos diversos –, uma das principais bases do Direito Civil é garantir o direito de cada pessoa em autodeterminar-se, respeitadas as limitações de ordem pública. Trata-se da autodeterminação, conceito mais amplo que abrange a autonomia privada da vontade (esta última, expressão tida como mais adequada às simples fórmulas autonomia privada ou autonomia da vontade)[5].

De um lado, sob a ótica da Constitucionalização do Direito Civil, citando Paulo Nalin, Isabella Silveira de Castro e Juliana Carvalho Pavão destacam que “a autonomia privada atende mais a visão social e menos a individual, logo, ‘[…] a força irradiante do princípio da autonomia privada contribuirá para a edificação de uma civilística, pois atingirá todos os institutos do Direito Civil, a partir dos valores constitucionais’”[6].

De outro, sob o prisma da Recivilização Constitucional, Otávio Luiz Rodrigues Jr., ao defender um modelo fraco de eficácia indireta para as normas constitucionais em relações privadas, realça que “a vinculação da autonomia privada aos direitos fundamentais não pode implicar o sacrifício do caráter autônomo do Direito Civil”[7].

Seja como for, é certo que o Direito Civil precisa disponibilizar ferramentas que permitam a cada indivíduo exercer um dos principais vetores da dignidade da pessoa humana: a autonomia privada da vontade.

Aliás, é sob essa ótica que já tivemos a oportunidade de defender que o Direito Civil é edificado, entre outros, sobre o princípio da vontade presumível, à luz do qual as regras devem, ao máximo, prestigiar a vontade do homo medius no caso de ausência de uma vontade efetiva no caso concreto[8].

Diante disso, indaga-se: de quais ferramentas a pessoa pode se valer para predeterminar o que deve ser feito em relação à sua vida, ao seu corpo e ao seu patrimônio no caso de perda de lucidez ou de morte?

A resposta é o que chamamos de Diretiva Antecipada de Vontade lato sensu (DAV lato sensu[9]) bem como o testamento ou o codicilo. Estes dois últimos voltam-se para definir o destino do patrimônio após a morte, mas não trataremos deles neste artigo por escapar ao nosso objetivo.

3.   DAV lato sensu

A DAV stricto sensu é a manifestação de vontade que versa sobre questões existenciais relativas à vida e ao cadáver. Consiste em disposições vitais e cadavéricas. Abrange o testamento vital, a procuração para cuidados de saúde e outras disposições concernentes ao futuro da vida e do cadáver no caso de perda da aptidão de autogoverno.

A DAV stricto sensu abrange aquilo que a doutrina chama de testamento vital (living will) ou testamento biológico, assim entendida como a manifestação da vontade da pessoa acerca dos procedimentos médicos a serem adotados na hipótese de doenças gravíssimas que tenham subtraído a lucidez. A ideia é que a pessoa possa manifestar a vontade de não ser submetida a tratamentos meramente paliativos ou inúteis nessas hipóteses. Em poucas palavras, é a vontade expressa em não ser submetida à distanásia, também conhecida como obstinação terapêutica (l’acharnement thérapeutique) na Françaou como futilidade médica (medical futility) nos Estados Unidos, expressões que se reportam ao prolongamento exagerado da morte de um paciente. É a vontade de ser submetido à ortotanásia, assim entendida a conduta médica em – diante de um quadro clínico terminal e irreversível – abster-se de ministrar procedimentos paliativos e inúteis, deixando a natureza seguir o seu curso normal. O Conselho Federal de Medicina permite a ortotanásia mediante manifestação de vontade da pessoa ou, se for o caso, de seu representante legal[10]. Não se confunde com a eutanásia, que é a realização da morte do paciente a pedido deste e que é vedada no Brasil[11].

A DAV stricto sensu não se restringe ao testamento vital, mas abrange outras manifestações de vontade relativas ao futuro de sua vida e de seu cadáver. Alcança, por exemplo, a procuração para cuidados de saúde (durable power of attorney for health care), assim entendida a indicação de um terceiro para tomar as decisões sobre os tratamentos médicos a serem empregados no caso de doenças gravíssimas e no caso de perda de lucidez da pessoa. Não se confunde com o testamento vital, pois este consiste na manifestação direta de vontade da própria pessoa acerca desses procedimentos médicos a serem adotados, e não à delegação e poderes a terceiro[12].

Apesar de inexistir lei expressa, o testamento vital e a procuração para cuidados de saúde são admitidas no Brasil, especialmente pelas Resoluções CFM nºs 1.805/2006, 1.995/2012 e 2.232/2019[13], pelo art. 41, parágrafo único, do Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2.217/2018[14], pelo enunciado nº 528 das Jornadas de Direito Civil[15] e pelo enunciado 37 das Jornadas de Direito da Saúde[16].

Flávio Tartuce, com sua genialidade marcada pelo que admiramos como realismo civilista, averba o seguinte ao se reportar às retromencionadas normas infralegais do Conselho Federal de Medicina, mais especificamente à Resolução CFM nº 1.805/2006[17]:

“Sem qualquer hipocrisia, a resolução só acaba regulamentando situações que já ocorriam na prática médica. De qualquer forma, fica a dúvida se ela extrapola os limites da autonomia privada do indivíduo, da sua liberdade como valor constitucional, diante da mitigação da proteção da vida.

(…)

A problemática é muito polêmica, merecendo reflexões profundas. Atente-se ao fato de que existem projetos de lei para regulamentar a prática do testamento vital.”

4.1 Limites para o testamento vital e da procuração para cuidados para saúde: caso da transfusão de sangue em testemunha de Jeová e outros casos

Questão interessante é definir os limites do testamento vital e da procuração para cuidados para saúde.

É certo o seu cabimento para hipóteses de “ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas”, para usar as palavras do próprio parágrafo único do art. 41 do Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2.217/2018). Na DAV stricto sensu, a pessoa pode manifestar expressamente o seu desinteresse pela já mencionada distanásia, obstinação terapêutica (l’acharnement thérapeutique) ou futilidade médica (medical futility). É irrelevante o motivo (justificação pessoal) da pessoa, se é por religião, se é por preferência pessoal ou se é por qualquer outro motivo. Estamos diante de uma situação objetiva de irreversibilidade do quadro de saúde terminal.

A controvérsia dá-se diante de ações diagnósticas ou terapêuticas que sejam potencialmente úteis para evitar a morte de uma pessoa. Nessas hipóteses, indaga-se: a pessoa legitimamente poderia manifestar expressamente seu desinteresse na adoção dessas medidas por meio de uma DAV stricto sensu? O tema fica mais complexo quando a motivação dessa vontade é de índole religiosa.

Não há pacificidade doutrinária nem jurisprudencial sobre o tema. E, por isso, enquanto não houver consolidação jurisprudencial, entendemos que não se poderá punir nem responsabilizar civilmente médicos que adotem qualquer uma das duas respostas em conflito, tudo em razão do fato de a dúvida jurídica razoável poder, em determinados casos, excluir a responsabilidade civil[18].

Sob um aspecto puramente pragmático, enquanto não for pacificada a questão, o mais recomendável é que o médico adote o entendimento mais restritivo e, portanto, só siga a DAV stricto sensu se houver uma decisão judicial expressamente favorável. Com isso, o médico se livrará dos transtornos financeiros e pessoais para defender-se de eventuais investigações criminais e ações civis. Aliás, é sob esse prisma que interpretamos o posicionamento dos consagrados doutrinadores Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho[19], in verbis:

Como compatibilizar o direito indisponível à vida e à integridade física com a convicção de fé, que sustenta a espiritualidade do ser humano? Como aceitar passivamente ver a vida se esvaindo rapidamente, como grãos de areia na ampulheta do tempo, se o médico tem o dever (e o juramento) de lutar sempre pela vida?

Nenhum posicionamento que se adotar agradará a todos, mas parece-nos que, em tais casos, a cautela recomenda que as entidades hospitalares, por intermédio de seus representantes legais, obtenham o suprimento da autorização via judicial, cabendo ao magistrado analisar, no caso concreto, qual o valor jurídico a preservar.

Sob o aspecto doutrinário, há diferentes posicionamentos.

De um lado, o talentoso Flávio Tartuce é contundente em não admitir a flexibilização do direito à vida, nem mesmo diante do direito à liberdade religiosa. Entende, assim, que o médico tem de realizar o procedimento médico tido como útil para evitar a morte do paciente, ainda que haja manifestação de vontade contrária deste por motivos religiosos. Em seu apoio, cita precedentes de tribunais estaduais que negaram pedidos de indenização formulados por pacientes da religião Testemunha de Jeová contra médicos e hospitais que realizaram a transfusão de sangue a despeito da existência de manifestação contrária de vontade[20] ou que se recusaram a prestar os serviços médicos sem a realização da transfusão de sangue[21]. Flávio Tartuce afirma, in verbis:

Com todo o respeito em relação a posicionamento em contrário, conclui-se que, em casos de emergência e de real risco de morte, deverá ocorrer a intervenção cirúrgica, eis que o direito à vida merece maior proteção do que o direito à liberdade, particularmente quanto àquele relacionado com a opção religiosa. Em síntese, fazendo uma ponderação entre direitos fundamentais – direito à vida x direito à liberdade ou opção religiosa -, o primeiro deverá prevalecer. (…) Deve ficar claro que esse exemplo não visa a captar opiniões sobre o tema religião, mas somente demonstrar que um direito da personalidade pode ser relativizado se entrar em conflito com outro direito de igual conteúdo.

                            De outro lado, o brilhante civilista carioca Anderson Schreiber acena em sentido contrário quando estivermos diante de uma recusa a tratamento médico por motivos religiosos. Defende que o direito a uma vida digna pressuporia também o direito a uma morte digna, o que abrange a morte decorrente do exercício de outro direito fundamental, como a liberdade religiosa. Por isso, no caso de uma pessoa da religião Testemunha de Jeová, poderia legitimamente recusar uma transfusão de sangue tida por necessária pelo médico para evitar a morte. Veja as palavras de Schreiber[22]:

       Pode-se afirmar, nessa direção, que não há um direito à vida digna, o que há de abranger também o encerramento da vida quando tal resultado for mais consentâneo com a dignidade humana do paciente. Em outras palavras: deve-se reconhecer um direito à morte digna, sempre que tal decisão representar o exercício de outro direito fundamental (por exemplo, a liberdade religiosa) que, à luz das circunstâncias concretas e da pessoa considerada em sua individualidade, se revele capaz de prevalecer sobre a vida na ponderação entre direitos de igual hierarquia.

       Intolerável, portanto, que uma Testemunha de Jeová seja compelida, contra sua livre manifestação de vontade, a receber transfusão de sangue, com base na pretensa superioridade do direito à vida sobre a sua liberdade de crença. Note-se que a priorização da vida representa, ela própria, uma “crença”, já que não encontra amparo em nossa Constituição, refletindo, muitas vezes, convicções científicas e religiosas da comunidade médica, em detrimento das convicções do próprio paciente. Outras vezes exprime o temor dos profissionais de saúde de serem responsabilizados por descumprimento das normas do Conselho Federal de Medicina, como a Resolução 1.021/1980. Nesse cenário, cumpre destacar que normas profissionais emitidas pelo Conselho Federal de Medicina não podem ser invocadas para afastar a incidência da Constituição da República, que coloca a liberdade de religião e o direito à vida no mesmíssimo patamar. (…) A vontade do paciente deve ser respeitada, porque assim determina a tutela da dignidade humana, valor fundamental do ordenamento jurídico brasileiro. É com esses olhos que se deve examinar o art. 15 do Código Civil.

       Nesse sentido, o enunciado nº 403 das Jornadas de Direito Civil dispõe o seguinte:

       O Direito à inviolabilidade de consciência e de crença, previsto no art. 5º, VI, da Constituição Federal, aplica-se também à pessoa que se nega a tratamento médico, inclusive transfusão de sangue, com ou sem risco de morte, em razão do tratamento ou da falta dele, desde que observados os seguintes critérios: a) capacidade civil plena, excluído o suprimento pelo representante ou assistente; b) manifestação de vontade livre, consciente e informada; e c) oposição que diga respeito exclusivamente à própria pessoa do declarante.

Ainda nesse sentido, citamos Maria Cecília Cury Chaddad e Sérgio Henrique Goulart Calux, que defendem que “o paciente maior e capaz tem o direito subjetivo de recusar transfusão de sanguínea com base em crença religiosa, ainda que tal recusa implique risco à própria vida”[23].

Inclinamo-nos para essa última corrente.

Entendemos que, se a ação médica for potencialmente útil para evitar a morte, o paciente pessoalmente, sem qualquer representante, poderá recusá-lo, desde que, além de ser maior e capaz, exiba plenitude de suas faculdades mentais perante o médico. Não importa se a motivação é religiosa. A vontade imotivada é legítima, desde que seja pessoal e consciente.

Se, porém, o paciente estiver sem lucidez, entendemos que a ação médica potencialmente útil tem de ser feita, ainda que contrariamente à vontade expressada por eventual representante legal ou familiar do paciente. E, nesse caso, nem mesmo uma DAV stricto sensu seria apta a afastar o tratamento médico. O médico deverá, mesmo assim, promover o tratamento médico útil para salvar a vida do paciente. Não precisa de autorização judicial para tanto, desde que obviamente o paciente esteja sob a custódia do médico. Se, porém, o paciente não estiver sob a custódia do médico, entendemos que o adequado é comunicar as autoridades competentes, conforme art. 4º da Resolução CFM nº 2.232/2019[24].

Isso, porque, para nós, a recusa terapêutica precisa ser marcada pela atualidade: o paciente precisa manifestar sua vontade pessoalmente no momento em que a ação terapêutica for necessária. Manifestações abstratas e antigas de vontade, ainda que escritas em uma DAV stricto sensu, não são aptas a tanto, tudo em prestígio à conservação da vida. A cláusula da DAV stricto sensu é, pois, nula nesse caso, por ser inábil à produção de efeitos. Viola o direito constitucional à vida digna, além de violar a interpretação mais restritiva que temos do art. 15 do CC[25].

Assim, no caso de transfusão de sangue em pessoa da religião de Testemunha de Jeová, a única hipótese em que o médico deverá abster-se de fazer a transfusão de sangue é se a própria pessoa externar diretamente sua recusa terapêutica no momento em que a ação terapêutica se revelar necessária para salvar a vida, observado que a pessoa necessariamente precisa ser maior e estar na plenitude das faculdades mentais, vedada a sua representação.

Nossa posição coaduna com a postura do STJ, que já entendeu que o médico é obrigado a promover a transfusão de sangue em pacientes menores de 18 anos, ainda que seus pais – por motivos religiosos – manifestem recusa terapêutica. Nesse caso, o STJ entendeu que os pais não chegam a cometer crime de homicídio por expressarem a recusa terapêutica, ao contrário do médico, que tem dever de salvar o paciente mirim mesmo à revelia da vontade dos pais. A propósito, pontuou o STJ (HC n. 268.459/SP, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 2/9/2014, DJe de 28/10/2014):

“(…) Em verdade, como inexistem direitos absolutos em nossa ordem constitucional, de igual forma a liberdade religiosa também se sujeita ao concerto axiológico, acomodando-se diante das demais condicionantes valorativas.

       Desta maneira, no caso em foco, ter-se-ia que aquilatar, a fim de bem se equacionar a expressão penal da conduta dos envolvidos, em que medida teria impacto a manifestação de vontade, religiosamente inspirada, dos pacientes.

       No juízo de ponderação, o peso dos bens jurídicos, de um lado, a vida e o superior interesse do adolescente, que ainda não teria discernimento suficiente (ao menos em termos legais) para deliberar sobre os rumos de seu tratamento médico, sobrepairam sobre, de outro lado, a convicção religiosa dos pais, que teriam se manifestado contrariamente à transfusão de sangue.

       Nesse panorama, tem-se como inócua a negativa de concordância para a providência terapêutica, agigantando-se, ademais, a omissão do hospital, que, entendendo que seria imperiosa a intervenção, deveria, independentemente de qualquer posição dos pais, ter avançado pelo tratamento que entendiam ser o imprescindível para evitar a morte.

       Portanto, não há falar em tipicidade da conduta dos pais que, tendo levado sua filha para o hospital, mostrando que com ela se preocupavam, por convicção religiosa, não ofereceram consentimento para transfusão de sangue – pois, tal manifestação era indiferente para os médicos, que, nesse cenário, tinham o dever de salvar a vida.

       Contudo, os médicos do hospital, crendo que se tratava de medida indispensável para se evitar a morte, não poderiam privar a adolescente de qualquer procedimento, mas, antes, a eles cumpria avançar no cumprimento de seu dever profissional.”

Em outro caso, o STJ entendeu haver “justa causa” para o recebimento de denúncia criminal oferecida contra médico adepto da religião Testemunha de Jeová o qual teria influenciado os pais na decisão de não submeterem o filho menor a transfusão de sangue, fato que acabou levando a criança à morte (STJ, RHC n. 7.785/SP, 6ª Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ de 30/11/1998).

Portanto, embora seja válida a cláusula da DAV stricto sensu que autoriza a ortotanásia (assim entendida aquela hipótese em que a ação terapêutica é meramente paliativa), é nula a cláusula da DAV stricto sensu que pretende afastar o dever do médico de realizar ação terapêutica potencialmente útil para salvar o paciente do iminente risco de morte.

Alerte-se que o exposto acima não abrange hipóteses de tratamentos meramente eletivos – assim entendidos aqueles em que o paciente não está sob risco de morte. Para esses casos, prevalece a liberdade do paciente em submeter-se ou não ao procedimento médico, admitida eventual representação do paciente.

Tampouco o entendimento acima não abrange hipóteses de ações terapêuticas demasiadamente arriscadas de sucesso muito duvidoso, ainda que sejam enxergadas como a única tentativa possível de enfrentamento do quadro clínico sensível do paciente. Afinal de contas, ninguém é obrigado a submeter sua vida a loterias médicas. Para essas situações, entendemos que a recusa terapêutica pode ser manifestada por representante legal do paciente incapaz ou sem lucidez. É sob essa ótica que se devem interpretar o art. 15 do CC[26] e os arts. 2º e 3º da Resolução CFM nº 2.232/2019[27].

Para aprofundamento acerca do consentimento do paciente, recomendamos a aprofundada tese de doutorado da professora Flaviana Rampazzo Soares[28].

4.2 Outras disposições vitais ou cadavéricas da DAV stricto sensu

Outras disposições vitais ou cadavéricas devem também ser incluídas dentro do conceito de DAV stricto sensu.

Por exemplo, a cremação do cadáver só é permitida quando há interesse de saúde pública ou manifestação de vontade da pessoa nesse sentido (art. 77, § 2º, da LRP[29]). Na prática de direito municipal, costuma-se admitir que essa vontade para a cremação seja comprovada por qualquer meio, inclusive mediante declaração de familiares no sentido de que, em vida, testemunharam essa manifestação de vontade, o que nos parece absolutamente correto diante da ausência de forma específica exigida em lei: não há por que formalizar e burocratizar quando o legislador foi mais complacente[30].

Também incluímos, no campo de abrangência da DAV stricto sensu, disposições não tão comuns, como as relativas à forma de realização do funeral, ao destino das cinzas após a cremação, ao arranjo arquitetônico do sepulcro, à “doação” do cadáver e dos órgãos na forma das regras específicas[31], entre outras disposições relativas a questões extrapatrimoniais vinculadas ao cadáver.

5. Diretiva de Curatela

A segunda espécie de DAV lato sensu é o que chamamos de Diretiva de Curatela.

A diferença é que a Diretiva de Curatela endereça-se a definir os termos de eventual curatela no caso de interdição. Por esse instrumento, a pessoa indica quem será o curador (aspecto subjetivo) e como será o exercício da curatela (aspecto objetivo).

Sob o aspecto subjetivo, poder-se-á indicar um familiar, um amigo ou até mesmo um profissional para exercer a curatela no caso de interdição.

Pode-se, inclusive, estabelecer uma espécie de conselho de curatela, indicando que a curatela será fruto da decisão coletiva dos integrantes desse conselho, tomadas por maioria. Os membros desse conselho podem ser familiares ou pessoas de alta confiança indicadas na própria DAV. Aliás, essa solução de criar um conselho de curatela para decisões coletivas (tomadas é inspirada em alguns ordenamentos jurídicos estrangeiros, a exemplo do francês, que preveem um regime de gestão coletiva no caso de tutela e curatela. Na França, por exemplo, tem-se o “conselho de família” (conseil de famille) para o caso de tutela[32].

Nada impede que, na DAV, a pessoa indique mais de um conselho para cuidar de questões diferentes. Poderia, por exemplo, indicar um “conselho curador” para cuidar da gestão patrimonial e indicar um “conselho cuidador” para cuidar de questões relativas à saúde da pessoa. Os termos “conselho curador” e “conselho cuidador” não são legais, de modo que outras expressões podem ser tranquilamente utilizadas. Valemo-nos dela por mera preferência, sob a inspiração da experiente e brilhante tabeliã paulista Giselle Barros.

Aliás, a propósito desse exemplo, fazemos menção elogiosa a essa tabeliã, que, com seu talento jurídico, em escrituras de DAV lato sensu, já formalizou essas cláusulas. Tivemos acesso à minuta anonimizada da escritura por generosidade da respeitada notária, com cláusulas de DAV stricto sensu (especificamente de testamento vital) e de Diretiva de Curatelas, adotando-se uma forma coletiva de exercício da curatela por familiares próximos. Extraímos da referida escritura pública este excerto para ilustração:

III. NOMEAÇÃO DE CURADORES. 4. Considerando a hipótese de XXXXXXX vir a ser interditado – o que não se espera ocorra – e tendo em vista sua já mencionada preocupação com a gestão e preservação de seu complexo e diversificado acervo patrimonial nos mesmos moldes hoje por ele praticados, garantindo assim sua perpetuação e crescimento, as declarações aqui feitas objetivam orientar e direcionar a administração de seus bens na eventual hipótese de sua interdição judicial (incapacidade civil), seja por força de enfermidade, seja em razão de trauma havido por acidente, seja por qualquer outro motivo que o impeça de praticar atos da vida civil. 5. Assim, o OUTORGANTE DECLARANTE, completamente lúcido no seu discernimento, em consonância com os artigos do Novo Código de Processo Civil aplicáveis à espécie (Lei 13.105/2015, especialmente artigo 755, inciso II e parágrafo 1º), bem como conforme autoriza a Lei Civil no artigo 1.775-A, considerando a envergadura e complexidade de seu patrimônio, o perfil e especificidade da gestão desse acervo de bens, respeitosamente encarece, no caso de sua incapacidade civil, que seja nomeado um Conselho Curador para completa gestão e administração de seus bens, colegiado esse formado pelas pessoas a seguir indicadas: (i) seu filho xxxxxxx ,(ii) sua filha xxxxxxxxx, ambos acima qualificados, (iii) XXXXXXXXXX, brasileiro, casado, engenheiro, portador da cédula de identidade RG nºxxxxxxxx, inscrito no CPF/MF sob o nº xxxxxxxx, residente e domiciliado nesta Capital, na Rua  xxxxxxxxxx, (iv) XXXXXXXX, brasileiro, casado, administrador de empresas, portador da cédula de identidade RG nºxxxx, inscrito no CPF/MF sob o nº xxxxxxx, com endereço comercial nesta Capital, na XXXXX e (v) XXXXXXX, brasileira, divorciada, advogada, com endereço comercial nesta Capital, na Rua XXXXXX, portadora da cédula de identidade RG nº  xxxxx SSP/SP, inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo, sob o nº xxxxx  e no CPF/MF sob nº xxxxx. O Conselho Curador ora nomeado e que se requer, respeitosamente, seja constituído na hipótese de incapacidade civil de XXXXXXX, importará atuação conjunta dos seus membros, xxxx, xxxx, xxxxx, xxxx e xxxxx, encarecendo a eles a aceitação e o exercício desse encargo, dispensando-os de qualquer garantia ou caução, dando-os por abonados em Juízo e fora dele, depositando, pois, integral confiança na respectiva condução patrimonial. 5.1. Na ausência de qualquer dos curadores indicados no caput desta cláusula integrará o Conselho Curador o irmão do OUTORGANTE DECLARANTE,  xxxxxxx e, na falta ou impossibilidade dele, seu amigo xxxxxxx , brasileiro, casado, contador, portador da cédula de identidade RG nº xxxxxx, inscrito no CPF/MF sob o nº xxxxxx, residente e domiciliado nesta Capital, na Rua xxxxx, encarecendo a eles, pela ordem de indicação, a aceitação e o exercício desse encargo, dispensando-os de qualquer garantia ou caução, dando-os por abonadoem Juízo e fora dele, depositando, pois, integral confiança na respectiva condução patrimonial. 5.2. As decisões serão tomadas de forma conjunta pelos membros do Conselho Curador, sendo necessário para a implementação de determinada medida objeto de deliberação a maioria simples, ou seja, a aprovação de pelo menos 3 (três) dos 5 (cinco) nomeados, desde que ao menos um dos dois filhos do testador integre a maioria de votos. Vale aqui expressamente consignar a recomendação do testador no sentido de que seja sempre buscada e obtida uma solução de consenso entre os curadores indicados.O testador recomenda aos membros do Conselho Curador que consultem os suplentes indicados casa haja deliberações objeto de grande divergência entre eles, isso com o objetivo de possibilitar maior troca de ideias e enriquecer o debate. Ao serem consultados nessas deliberações, os suplentes não terão direito a voto. 5.3. Quando qualquer dos membros do Conselho Curador (inclusive os suplentes que venham a integrá-lo) completar 75 (setenta e cinco) anos de idade, ou na hipótese de falecimento ou incapacidade, ele deverá ser substituído por um novo membro, a ser indicado e aprovado pelos demais conselheiros por maioria de 3 (três) votos em 4 (quatro).5.4.O Conselho Curador deverá se reunir com periodicidade trimestral, sendo certo que, se necessário for, reuniões extraordinárias poderão ser convocadas.5.5. Considerando que xxxxxx, xxxx e xxxxxx, curadores e suplente indicados são, respectivamente, filhos e irmão do OUTORGANTE DECLARANTE, eles não deverão receber qualquer remuneração pelo desempenho de seus encargos. Por sua vez, os demais membros nomeados deverão receber, à título de remuneração, a quantia de R$ 15.000,00 (quinze mil reais), por reunião, atualizada a partir desta data até a da reunião realizada, com base no IPCA. 6. Portanto, independentemente da ordem legal prevista no artigo 1.775, do Código Civil, é expresso desejo do OUTORGANTE DECLARANTE que sejam nomeadas curadoras as pessoas indicadas na cláusula “5”supra e, na falta de alguma delas, os suplentes nomeados na cláusula “5.1”, que, como dito, exercerão conjuntamente essa função, na forma de um Conselho Curador, nos moldes do quanto acima estabelecido.

IV – NOMEAÇÃO DE CUIDADORES. 7. Sem prejuízo da curadoria exercida conjuntamente pelos curadores que integrarão o Conselho Curador nomeado, que se prestará a zelar por seus interesses econômicos e patrimoniais, é desejo de XXXXX que os cuidados pessoais relativos à sua saúde (decisões de internação, home care, escolha de hospitais, clínicas, médicos, tratamentos, profissionais outros e assim por diante, no Brasil e/ou no exterior) sejam exercidos pelos cuidadores a seguir nomeados, que deverão atuar conjuntamente na forma de um Conselho Cuidador: (i) seu cônjuge XXXX, desde que casada e convivendo maritalmente com o OUTORGANTE DECLARANTE ao tempo da eventual declaração de sua incapacidade civil, (ii) seu filho xxxx e (iii) seu filho xxxxx, todos acima qualificados.8. As decisões desse Conselho Cuidador dar-se-ão por maioria de votos (2 votos em 3).8.1. No que se refere às mais relevantes decisões afetas à saúde de XXXXXX, ele encarece ao Conselho Cuidador que sejam previamente consultados os Drs.  XXXXXX e XXXXX, seus amigos de longa data e médicos de sua irrestrita confiança. 9. Na ausência de qualquer uma das pessoas nomeadas na cláusula “7” acima, o Conselho Cuidador permanecerá em exercício com os membros remanescentes, sendo certo que, neste caso, as decisões deverão ser tomadas por consenso.

OUTRAS DISPOSIÇÕES. 10. O Conselho Curador deverá destinar ao Conselho Cuidador valores mensais suficientes para o confortável custeio de todas as despesas do OUTORGANTE DECLARANTE e para manutenção do padrão de vida da família em nível equivalente ao por eles desfrutado antes de verificada a incapacidade. 11. Nesse sentido, XXXXXX aqui consigna que é sua expressa vontade que seu cônjuge XXXX e seus filhos, XXXXX e XXXXX, tenham suficiência de recursos mensais e autonomia para geri-los, inclusive em prol deles próprios, nos mesmos níveis e moldes do que era a eles proporcionado pelo OUTORGANTE DECLARANTE antes de sua incapacidade. A esse propósito, incumbe ao Conselho Curador proteger não apenas os interesses do OUTORGANTE DECLARANTE mas também de sua família, de modo que a incapacidade não represente óbice ao integral custeio de despesas, amplo conforto e qualidade de vida deles. 12. Assim, XXXXXX estabelece que deverá ser destinada ao Conselho Cuidador (cláusula “7” acima), além de valores suficientes ao custeio das necessidades médicas dele, quantia mensal em pecúnia calculada considerando a média dos gastos de sua família nos vinte e quatro meses que antecederam sua incapacidade, para tanto tomando por base todas as despesas com moradia, alimentação, saúde, vestuário, transporte, lazer, e a assim por diante. 13. Nesse sentido, o patrimônio detido por XXXXX (imóvel em que reside, imóveis de lazer e assim por diante) importa gastos significativos de manutenção, que devem continuar a ser pagos, inclusive sob pena de deterioração de expressivo patrimônio. Eis que o OUTORGANTE DECLARANTE não deseja que seu comprometimento cognitivo implique solução de continuidade, qualquer ruptura ou modificação no amplo e completo pagamento de todas as suas despesas, bem como integral custeio dos gastos advindos da manutenção do patrimônio por ele detido, a fim de que não haja comprometimento ou prejuízo à continuidade e desenvolvimento dos bens e negócios então em curso e futuros.14. Outrossim, considerando que o patrimônio de XXXXX é composto predominantemente por quotas do Fundo de Investimento em Participações (FIP) XXXXX, que atualmente detém as ações do XXXXXX e da XXXXX Participações S.A., participações societárias e ativos financeiros, deverão ser estritamente observadas pelo Conselho Curador na gestão e administração de seus bens as regras estabelecidas nos referidos Fundo (regulamento e acordo de quotistas) e sociedades (contratos e estatutos sociais, acordos de sócios). 15. É desejo do OUTORGANTE DECLARANTE que, caso venha a ser interditado, não haja alteração de sua residência, a não ser que seja necessária sua remoção para local especializado por ordem médica ou conveniência por questões de sua saúde.16. No que diz respeito às decisões afetas à saúde de XXXXX, tais como intervenções médicas e internações hospitalares, inclusive em estado gravíssimo e/ou irreversível de saúde, o OUTORGANTE DECLARANTE, pleno nas suas faculdades mentais e completamente lúcido no seu discernimento, manifesta e declara que, uma vez constatada por médico de confiança de seus familiares a irreversibilidade de seu quadro de saúde, e especialmente aqueles indicados na cláusula “8” supra, com sua capacidade cognitiva irreversivelmente prejudicada e incapaz de se comunicar, após terem sido esgotados sem sucesso todos os esforços, tratamentos e alternativas médicas para a reversão de seu quadro, não deseja receber procedimentos médicos que prolonguem artificialmente a sobrevivência biológica de seu corpo. Independentemente de sua formal interdição judicial, é desejo de XXXXX que esta cláusula seja aplicada, sendo interpretada como sua diretiva antecipada de vontade, nos termos da resolução nº 1.995/2012 do Conselho Federal de Medicina. 17. O OUTORGANTE DECLARANTE expressa sua confiança nos curadores e cuidadores ora indicados, pessoas que lhe são próximas e queridas, que certamente protegerão sua pessoa e seus interesses, de modo que a incapacidade não represente óbice à continuidade de seu proceder e ao cumprimento dos desejos aqui manifestados. 18. Estas são as declarações feitas com o propósito de, na hipótese aqui versada (incapacidade civil), orientar e direcionar os cuidados pessoais de XXXXXX e as decisões afetas à sua saúde e à sua vida, bem como administração de seus bens, confiando, ainda, que serão observadas pelo Poder Judiciário em eventual processo judicial.

Sob o aspecto objetivo, a pessoa terá liberdade para disciplinar como a curatela deverá ser exercida. E, nesse ponto, valerão cláusulas não apenas relacionadas à gestão patrimonial, mas também à gestão pessoal da própria pessoa interditada. Pode a parte dispor sobre pro labore ao curador, sobre rotinas a serem realizadas no cuidado da pessoa (ex.: levar a pessoa a um determinado teatro semanalmente etc.), sobre o modo de gestão financeira etc.

Sobre o tema, tivemos a oportunidade de aprofundar o tema em artigo cujo resumo ora transcrevemos[33]

  1. O princípio da vontade presumível é uma diretriz a ser seguida pelo juiz, pelo Ministério Público e por todos os atores públicos ou privados que vierem a lidar com pessoas vulneráveis (subseção 1.3.).
  2. A depender do caso concreto, em respeito à vontade presumível e à vontade real, pode-se adotar restritivas de regras do Código Civil acerca da curatela, a exemplo das regras de proibição de atos de liberalidade (subseção 1.3).
  3. A ordem de preferência entre as diferentes espécies de curatela quanto à origem é esta: curatela autêntica, curatela legítima e curatela dativa (subseção 1.4.).
  4. “Diretivas de Curatela” é o documento por meio do qual a pessoa declara qual é sua vontade caso venha a ser submetida a curatela no futuro. Nas Diretivas de Curatela, a pessoa apontará quem deverá ser nomeado curador (curatela autêntica), qual remuneração será devida a ele e como o curatelado deverá ser cuidado (subseção 2.1.).
  5. Por essa razão, a regra é a de que as Diretivas de Curatela devem ser observadas, ao máximo, pelo juiz e pelo curador em favor da pessoa vulnerável. Há três principais exceções: (1) existência de elementos concretos que, de modo inequívoco, indiquem a desatualização das Diretivas de Curatela; (2) manifesta violação a normas de ordem pública; e (3) inviabilidade material (subseção 2.2.).
  6. É preciso tomar cuidado no controle judicial sobre cláusulas das Diretivas de Curatela que estabeleçam remunerações ao curador. Não deve o juiz interferir na Diretivas, salvo no caso de insuficiência financeira (subseção 2.3.).
  7. São admissíveis, nas Diretivas de Curatela, a cláusula de rejeição de potenciais curadores e a cláusula de indicação de profissional (subseção 2.4.).
  8. O Código Civil deveria ser mais textual na definição da ordem preferencial supracitada de curadores bem como no reforço da liberdade da pessoa em indicar como será a curatela, além de outros esclarecimentos de pontos indicados neste texto (subseção 3.1.).
  9. Convém a edição de norma do Conselho Nacional de Justiça para dar efetividade às Diretivas de Curatela (subseção 3.2.). Embora não se tenha notícia de muitas atividades privadas nesse sentido, uma alternativa para dar efetividade às Diretivas de Curatela é contratar o que chamamos de um “anjo da guarda” (subseção 3.3.).

6. Forma da DAV lato sensu

Em regra, não há uma forma legal obrigatória para a DAV lato sensu, de maneira que ela pode ser formalizada por escritura pública, por instrumento particular ou até mesmo por outras vias (como por vídeo, verbalmente etc.).

A exceção correria à conta de cláusulas específicas que, por lei, podem exigir uma forma determinada. Por exemplo, entendemos que o testamento vital precisa ser por escrito, porque a recusa terapêutica tem de ser preferencialmente por escrito por força do art. 12 da Resolução CFM nº 2.232/2019[34].

De qualquer forma, por questão de segurança jurídica, entendemos que DAVs lato sensu meramente verbais não devem ser admitidas diante da fragilidade probatória. No máximo, poder-se-ia admiti-las se a manifestação de vontade estiver contida integralmente em suporte de áudio e vídeo. Mas, ainda assim, é preciso haver algum justo motivo para a formalização da DAV lato sensu não ter sido feita por escrito.

Entre as formas escritas, é olimpicamente superior a escritura pública em detrimento do instrumento particular.

Em primeiro lugar, a escritura pública é lavrada por um tabelião de notas, que possui amplo conhecimento jurídico para formalizar a vontade de acordo com o melhor entendimento jurídico.

Em segundo lugar, a escritura pública possui maior grau de confiabilidade diante da sua fé pública.

Em terceiro lugar, esta não sofre praticamente risco algum de extravio, ao contrário dos instrumentos particulares, que podem, com facilidade, desaparecer ou ser destruídos.

Em quarto lugar, a notícia de todas as escrituras públicas de DAV lavradas em todos os cartórios brasileiros é mantida na Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados (CENSEC). Na prática, isso permite que, no caso de interdição ou de perda de lucidez diante de uma doença terminal, seja possível consultar a existência de alguma escritura pública de DAV lavrada em algum cartório de notas brasileiro.

Aliás, defendemos que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) deveria obrigar que todos os juízes consultem a CENSEC no caso de processos de interdição, tudo com vistas de identificar a existência de uma DAV. Deveria, ainda, o Conselho Federal de Medicina (CFM) determinar que os médicos consultem à CENSEC no caso de pacientes que perderam a lucidez e estejam em situação gravíssima de saúde, tudo a fim de identificar a existência de eventual DAV. Enquanto isso não ocorre, a consulta à CENSEC pelos juízes e pelos médicos é uma conveniência apenas.

Lembramos que, em Portugal, especificamente para a DAV stricto sensu, há uma central (chamada de RENTEV[35]) à qual os médicos e os juízes recorrem para consultar a existência do ato. A lavratura da DAV é feita perante funcionário devidamente habilitado ou por notário, conforme art. 3º da Lei nº 25/2012, de 16 de julho[36].

Enfim, não há dúvidas de que o melhor é que a DAV lato sensu seja formalizada por escritura pública, embora entendamos pelo cabimento de instrumentos particulares para tanto.

CONCLUSÕES

Em suma, concluímos que:

  1. A DAV lato sensu é um instrumento por meio do qual a pessoa pode exercer a sua autodeterminação em relação à sua vida, ao seu corpo e ao seu patrimônio no caso de perda de lucidez ou de morte;
  2. DAV lato sensu é dividida em DAV stricto sensu e em Diretiva de Curatela;
  3. A DAV stricto sensu envolve disposições vitais e cadavéricas, o que inclui: o testamento vital, a procuração para cuidados de saúde, o destino dos órgãos e do corpo no caso de morte, a cremação, a forma de realização do funeral, o destino das cinzas após a cremação, o arranjo arquitetônico do sepulcro e quejandos;
  4. É válida a cláusula da DAV stricto sensu que autoriza a ortotanásia, assim entendida aquela hipótese em que a ação terapêutica é meramente paliativa;
  5. É nula a cláusula da DAV stricto sensu que pretende afastar o dever do médico de realizar ação terapêutica potencialmente útil para salvar o paciente do iminente risco de morte. A recusa terapêutica nessas hipóteses só pode ser feita pessoalmente, por pessoa maior e com plenitude de suas faculdades mentais no momento em que a ação médica se tornar necessária;
  6. Assim, no caso de transfusão de sangue em pessoa da religião de Testemunha de Jeová, a única hipótese em que o médico deverá abster-se de fazer a transfusão de sangue é se a própria pessoa externar diretamente sua recusa terapêutica no momento em que a ação médica se revelar necessária para salvar sua vida, observado sempre que a pessoa tem de ser maio, desfrutar da plenitude das faculdades mentais e externar a vontade direta e pessoalmente, sem qualquer representante;
  7. Diretiva de Curatela endereça-se a definir os termos de eventual curatela no caso de interdição da pessoa. Por esse instrumento, a pessoa indica quem será o curador (aspecto subjetivo) e como será o exercício da curatela (aspecto objetivo);
  8. Apesar de, em princípio, haver liberdade na escolha da forma da DAV lato sensu (salvo para cláusulas específicas para as quais haja norma exigindo forma específica), o mais recomendável é a adoção de escritura pública;
  9. A notícia das escrituras públicas de DAV são mantidas na CENSEC para consulta, o que é importante para identificação da manifestação de vontade da pessoa no caso de interdição, de perda de lucidez ou de morte. É, porém, recomendável que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) tornem obrigatórias essa consulta, tudo em prestígio à vontade da pessoa. É ainda recomendável que o Congresso edite lei dando respaldo a essa centralização de dados de escrituras DAVs.



[1] Citamos, por exemplo, o art. 2º, “b”, da Lei municipal nº 7.017/1967, de São Paulo:

Art. 2º Será cremado o cadáver: (…)

a) daquele que, em vida, houver demonstrado esse desejo, por instrumento público ou particular, exigida, neste último caso, a intervenção de três testemunhas e o registro do documento;

b) se, ocorrida a morte natural, a família do morto assim o desejar e sempre que, em vida, o “de cujus” não haja feito declaração em contrário por uma das formas a que se refere a alínea anterior.

§ 1º – Para os efeitos do disposto na alínea “b” deste artigo, considera-se família, atuando sempre um na falta do outro, e na ordem ora estabelecida, o cônjuge sobrevivente, os ascendentes, os descendentes e os irmãos, estes e aqueles últimos, se maiores.

§ 2º – Em caso de morte violenta, a cremação, atendidas as condições estatuídas neste artigo, só poderá ser lavada a efeito mediante prévio e expresso consentimento da autoridade policial competente.

§ 3º – A Prefeitura poderá determinar, observadas as cautelas indicadas nos parágrafos anteriores, tal seja o caso, a cremação de cadáveres de indigentes e daqueles não identificados.

[2] No caso concreto, o STJ prestigiou a vontade da filha que mais tinha contato com o falecido pai. Os demais irmãos queriam o sepultamento do cadáver, mas a filha defendeu que o desejo do pai era ser submetido a técnica de congelamento de corpo humano para eventual futura reanimação (STJ, REsp n. 1.693.718/RJ, 3ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe de 4/4/2019).

[3] O inteiro teor da lei está disponível neste site: https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1765&tabela=leis&so_miolo=. Para uma visão mais crítica, recomendamos obra da professora da Faculdade de Direito de Lisboa Cláudia Monge (MONGE, Cláudia. Das Diretivas Antecipadas de Vontade. Lisboa: AAFDL, 2014).

[4] OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Constitucionalização e recivilização constitucional do Direito Civil: Um mapeamento atual. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/338073/constitucionalizacao-e-recivilizacao-constitucional-do-direito-civil–um-mapeamento-atual. Publicado em 17 de dezembro de 2020.

[5] Otavio Luiz Rodrigues Jr., invocando a autoridade de Antonio Junqueira de Azevedo, lembra que a expressão “autonomia da vontade” foi estigmatizada durante o século XX por sua associação com princípios tradicionais de contratos. Em seu lugar, emergiu a terminologia “autonomia privada”, que, ao substituir termo “vontade” por “privada”, sublinha a existência de limites à autonomia. Acontece que, em contraposição ao exagero na limitação da vontade dos indivíduos e na busca por um equilíbrio, passou-se a falar em uma fórmula que concilia todos os elementos: autonomia privada da vontade. Com essa expressão, a autonomia é tida como sujeita a limites (como lembra o adjetivo “privada”), mas sem anular a liberdade (como recorda a locução “da vontade”). A autonomia privada da vontade é conceito mais restrito à liberdade dos indivíduos em criar normas para si mesmo, como por meio de um contrato. A liberdade contratual é, portanto, um componente da autonomia privada. Há, porém, um conceito mais amplo, que contém dentro de a própria autonomia privada. Cuida-se da autodeterminação, que alude ao poder dos indivíduos em gerir seus interesses e orientar a própria vida de acordo com suas preferências. A autodeterminação, portanto, abrange “a autonomia privada da vontade, bem assim as escolhas individuais quanto à ideologia, ao partido político, à religião, à dita opção sexual e ao direito de renunciar à própria vida” (RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Autonomia da vontade, autonomia privada e autodeterminação: notas sobre a evolução de um conceito na Modernidade e na Pós-modernidade. In: Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 41, n. 163, jul./set. 2004, pp. 127. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/982/R163-08.pdf?sequence=4&isAllowed=y).

[6] CASTRO, Isabella Silveira de Castro; PAVÃO, Juliana Carvalho. Pessoa Humana e Direito Civil: autonomia e vulnerabilidade pós-constitucionais. In: NALIN, Paulo; COPI, Lygia Maria; PAVAN, Vitor Ottoboni. Pós-constitucionalização do Direito Civil: novas perspectivas do Direito Civil na Constituição Prospectiva. Londrina/PR: Editora Thoth, 2021, p. 56.

[7] RODRIGUES JR. Otavio Luiz. Direito Civil Contemporâneo: estatuto epistemológico, constituição e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2019, p. 349.

[8] OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. O Princípio da Vontade Presumível no Direito Civil: fundamento e desdobramentos práticos. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Disponível em: www.senado.leg.br/estudos. Publicado em 18 jan. 2023.

[9] Propomos essa expressão em sentido amplo por imperativos de taxonomia e didática. É que entendemos que essa categoria vai além do testamento vital ou da procuração para cuidados de saúde, ao contrário do que se propagou. Preferimos enquadrar essas hipóteses em conjunto com outras disposições vitais ou cadavéricas dentro do conceito de DAV stricto sensu, conforme expomos no presente texto.

[10] Em regra, o paciente tem direito de recusa terapêutica, desde que seja maior e lúcido e desde que não haja abuso de direito, como na hipótese de se tratar de doença não transmissível (arts. 2º a 5º, Resolução CFM nº 2.232/2019). Nesses casos, é assegurado ao médico recusar-se a prosseguir o atendimento diante da recusa terapêutica pelo paciente; trata-se do direito do médico à objeção de consciência (art. 7º, Resolução CFM nº 2.232/2019). Se o paciente não estiver lúcido ou se for incapaz, o médico não deve acolher a recusa terapêutica se houver risco relevante à saúde, ainda que expressada por representantes legais. Essa situação, porém, não se confunde com aquelas de pacientes em fase terminal ou com enfermidade grave e incurável. Para essas hipóteses, o art. 1º da Resolução CFM nº 1.805/2006 dá suporte à ortotanásia, que só se aplica a casos em que as ações médicas configurariam mera obstinação terapêutica inútil.

Art.  1º É  permitido  ao  médico  limitar  ou  suspender  procedimentos  e  tratamentos  que

prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada

a vontade da pessoa ou de seu representante legal.

§ 1º O  médico  tem  a  obrigação  de  esclarecer  ao  doente  ou  a  seu  representante  legal  as

modalidades terapêuticas adequadas para cada situação.

§ 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário.

§ 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda

opinião médica.

[11] PESSINI, Léo. Distanásia até quando investir sem agredir? In: Revista Bioética, v. 4, n. 1, 1996 (Disponível em: https://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/394).

[12] Para aprofundamento, recomendamos excelente artigo do juiz Éverton Willian Pona, que lembra que, nos EUA, há a lei Patient Self-Determination Act (1990) a reconhecer a diretiva antecipada (advance directives) como vinculante em todo o território e que também lista diversos outros países que também contam com lei sobre as diretivas antecipadas   (Finlândia, Hungria, Holanda, Bélgica, França, Alemanha, Inglaterra, Portugal, Espanha, Itália, Porto Rico, Uruguai, Argentina, Colômbia, Nova Zelândia, Austrália). Éverton Willian Pona também pontua que, no Brasil, apesar de inexistir lei específica para a testamento vital e para procuração para cuidados de saúde, a doutrina e a prática são majoritaríssimas em admiti-la, do que dão prova a Resolução CFM nº 1.995/2012, o enunciado 528 da Jornadas de Direito Civil e o enunciado 37 da Jornadas de Direito da Saúde: PONA, Éverton Willian. Testamento vital: quais os rumos do debate legislativo brasileiro? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-abr-04/direito-civil-atual-testamento-vital-quais-rumos-debate-legislativo-brasileiro. Publicado em 13 de junho de 2022.

[13] CFM é sigla de Conselho Federal de Medicina. Já fizemos menção às Resoluções CFM nº 1.805/2006 e 2.232/2019 em outra nota de rodapé anterior. Agora, reportamo-nos aos arts. 1º e 2º da Resolução CFM nº 1.995/2012:

Art.  1º Definir  diretivas  antecipadas  de  vontade  como  o  conjunto  de  desejos,  prévia  e

expressamente  manifestados  pelo  paciente, sobre  cuidados  e  tratamentos  que  quer,  ou não,   receber   no   momento   em   que   estiver   incapacitado   de   expressar,   livre   e autonomamente, sua vontade.

Art.  2º  Nas  decisões  sobre  cuidados  e  tratamentos  de  pacientes  que  se  encontram incapazes  de  comunicar-se,  ou  de expressar  de  maneira  livre  e  independente  suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade.

§  1º Caso  o  paciente  tenha  designado  um  representante  para  tal  fim,  suas  informações serão levadas em consideração pelo médico.

§ 2º O médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente  ou  representante  que,  em  sua  análise,  estiverem  em  desacordo  com  os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica.

§ 3º As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares.

§  4º O  médico  registrará,  no  prontuário,  as  diretivas  antecipadas  de  vontade  que  lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente.

§  5º Não  sendo  conhecidas  as  diretivas  antecipadas  de  vontade  do  paciente,  nem havendo  representante  designado,  familiares  disponíveis  ou  falta  de  consenso  entre estes,  o  médico  recorrerá  ao  Comitê  de  Bioética  da  instituição,  caso  exista,  ou,  na  falta deste,  à  Comissão  de  Ética  Médica do  hospital  ou  ao  Conselho  Regional  e  Federal  de Medicina  para  fundamentar  sua  decisão  sobre  conflitos  éticos,  quando  entender  esta medida necessária e conveniente.

[14] Confira-se o art. 41, parágrafo único, do Capítulo III do Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2/217/2018):

Capítulo III

RESPONSABILIDADE PROFISSIONAL

É vedado ao médico:

(…)

Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal.

Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal.

[15] Enunciado 528 das Jornadas de Direito Civil:

É válida a declaração de vontade expressa em documento autêntico, também chamado “testamento vital”, em que a pessoa estabelece disposições sobre o tipo de tratamento de saúde, ou não tratamento, que deseja no caso de se encontrar sem condições de manifestar a sua vontade.

[16] Enunciado 37 das Jornadas de Direito da Saúde:

As diretivas ou declarações antecipadas de vontade, que especificam os tratamentos médicos que o declarante deseja ou não se submeter quando incapacitado de expressar-se autonomamente, devem ser feitas preferencialmente por escrito, por instrumento particular, com duas testemunhas, ou público, sem prejuízo de outras formas inequívocas de manifestação admitidas em direito.

[17] TARTUCE, Flávio. Direito Civil: lei de introdução e parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2023, pp. 153-154.

[18] COSTA-NETO, João. Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense/Método, 2023, pp. 343-344.

[19] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2023, p. 174.

[20] TJSP, Apelação Cível 123.430-4, 3ª Câmara de Direito Privado, Rel. Flávio Pinheiro, j. 07.05.2002.

[21] TJRS, Apelação Cível 0409666-91.2016.8.21.7000, 10ª Câmara Cível, Rel. Juiz Túlio de Oliveira Martins, j. 27.04.2017, DJERS 10.05.2017).

[22] SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. São Paulo: Atlas, 2011, p. 53.

[23] CHADADD, Maria Cecília Cury; CALUX, Sérgio Henrique Goulart. Recusa de transfusão sanguínea por motivo religioso: possibilidades e limites na ordem constitucional brasileira. In: ALVIM, Arruda; MELLO, Cecilia; RODRIGUES, Daniel Colnago; ALVIM, Thereza. Direito Médico: aspectos materiais, éticos e processuais. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 254.

[24] Art. 4º Em  caso  de  discordância  insuperável  entre  o  médico  e  o  representante  legal, assistente  legal  ou  familiares  do  paciente  menor  ou  incapaz  quanto  à  terapêutica proposta,  o  médico  deve  comunicar  o  fato  às  autoridades  competentes  (Ministério Público, Polícia, Conselho Tutelar etc.), visando o melhor interesse do paciente.

[25] Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.

[26] Art. 15, CC: “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”.

[27] Confiram-se:

Art.  2º É  assegurado ao  paciente maior de  idade,  capaz,  lúcido,  orientado  e  consciente, no momento da decisão, o direito de recusa à terapêutica proposta em tratamento eletivo, de acordo com a legislação vigente.

Parágrafo único. O médico, diante da recusa terapêutica do paciente, pode propor outro tratamento quando disponível.

Art.  3º Em  situações  de  risco  relevante  à  saúde,  o  médico  não  deve  aceitar  a  recusa terapêutica de paciente menor de idade ou de adulto que não esteja no pleno uso de suas faculdades  mentais,  independentemente  de  estarem  representados  ou  assistidos  por terceiros.

Art. 4º Em  caso  de  discordância  insuperável  entre  o  médico  e  o  representante  legal, assistente  legal  ou  familiares  do  paciente  menor  ou  incapaz  quanto  à  terapêutica proposta,  o  médico  deve  comunicar  o  fato  às  autoridades  competentes  (Ministério Público, Polícia, Conselho Tutelar etc.), visando o melhor interesse do paciente.

[28] SOARES, Flaviana Rampazzo. Consentimento do paciente no direito médico: validade, interpretação e responsabilidade. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2021.

[29] Lei de Registros Públicos, ou seja, Lei nº 6.015/1973. Veja seu art. 77, § 2º:

Art. 77.  Nenhum sepultamento será feito sem certidão do oficial de registro do lugar do falecimento ou do lugar de residência do de cujus, quando o falecimento ocorrer em local diverso do seu domicílio, extraída após a lavratura do assento de óbito, em vista do atestado de médico, se houver no lugar, ou em caso contrário, de duas pessoas qualificadas que tiverem presenciado ou verificado a morte.         (Redação dada pela Lei nº 13.484, de 2017)

§ 1º Antes de proceder ao assento de óbito de criança de menos de 1 (um) ano, o oficial verificará se houve registro de nascimento, que, em caso de falta, será previamente feito.                     (Redação dada pela Lei nº 6.216, de 1975).

§ 2º A cremação de cadáver somente será feita daquele que houver manifestado a vontade de ser incinerado ou no interesse da saúde pública e se o atestado de óbito houver sido firmado por 2 (dois) médicos ou por 1 (um) médico legista e, no caso de morte violenta, depois de autorizada pela autoridade judiciária.            

[30] A título ilustrativo, no Distrito Federal (DF), confira-se o art. 22, I e § 1º, do Decreto DF nº 40.569/2020:

Art. 22. Somente é permitida a cremação de cadáver:

I – daquele que em vida tiver manifestado vontade nesse sentido;

II – no interesse da saúde pública, por determinação da autoridade sanitária e mediante apresentação da declaração de óbito assinada por dois médicos;

III – mediante autorização judicial e declaração de óbito assinada por médico legista, em caso morte violenta.

§ 1° A prova da manifestação da vontade de que trata o inciso I deste artigo deve ser feita por meio de documento subscrito pela pessoa falecida ou por declaração escrita do cônjuge, companheiro(a), pai, mãe, filho ou irmão, atestando que, em vida, o falecido expressou tal desejo.

§ 2º É proibida a cremação de corpo de portador de aparelho marca-passo ou bomba de infusão, exceto em caso de retirada prévia e devidamente comprovada desses instrumentos.

[31] Referimo-nos especialmente ao art. 14 do Código Civil e à Lei de Transplante (Lei nº 9.434/1997) com a respectiva regulamentação (Decreto nº 2.268/1998). Lembramos que, no caso de cadáveres não reclamados, a sua destinação será para fins de ensino e pesquisa, na forma da Lei nº 8.501/1992.

[32] Para aprofundamento, confira-se: https://www.dictionnaire-juridique.com/definition/conseil-de-famille.php.

[33] OLVIEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Curatela de pessoas vulneráveis e as diretivas de curatela: fragilidades legais e sugestões de aprimoramento à luz do princípio da vontade presumível. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Abril 2023 (Texto para Discussão nº 316). Disponível em: www.senado.leg.br. Acesso em 18 de abril de 2023.

[34] Art.  12. A  recusa  terapêutica  regulamentada  nesta  Resolução  deve  ser  prestada, preferencialmente, por escrito e perante duas testemunhas quando a falta do tratamento recusado expuser o paciente a perigo de morte.

Parágrafo único. São admitidos outros meios de registro da recusa terapêutica quando o paciente  não  puder  prestá-la  por  escrito,  desde  que  o  meio  empregado,  incluindo tecnologia  com  áudio  e  vídeo,  permita  sua  preservação  e  inserção  no  respectivo prontuário.

[35] Registro Nacional do Testamento Vital.

[36] Disponível neste link: https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1765&tabela=leis&so_miolo= .


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