Carlos Eduardo Elias de Oliveira1
O texto trata do princípio da vontade presumível no Direito Civil. Expõe seus fundamentos. Indica diversas aplicações práticas, seja para a compreensão de diversas regras atuais, seja para as problematizar, seja para discutir casos novos. Trata de questões de diversos ramos do Direito Civil, como interpretação e integração de contratos, curatela, testamento, sucessão mortis causa, responsabilidade civil etc.
Palavras-Chave: Vontade presumível. Direito Civil. Flexibilização.
Sumário
2 Importância da identificação dos princípios de Direito Civil.
4 Aplicação prática do princípio da vontade presumível.
4.1. regra de interpretação e de integração da vontade presumível.
4.2. Ordem preferencial para curadores.
4.4. Gestão de negócios: atuar de acordo com a vontade presumível do dono do negócio.
4.5. Res perit domino no caso de empréstimo de bens.
4.6. Responsabilidade civil do generoso.
4.7. Teste da vontade presumível para resolução contratual por fato superveniente.
4.14. Alimentos entre familiares.
4.15. A ordem de vocação hereditária e a legítima.
4.16. Exclusão do herdeiro por indignidade: hipóteses, modo e reabilitação tácita.
4.17. Rompimento do testamento.
4.18. Abusividade de cláusulas contratuais.
4.19. Modulação de efeitos de mudança de jurisprudência.
4.20. Dúvida jurídica razoável como excludente.
4.21. Responsabilidade civil da agência de viagens por serviços turísticos.
1 Introdução
Trataremos de um importante princípio do Direito Civil: o princípio da vontade presumível.
Esse princípio também está presente em outros ramos do Direito, com as particularidades que lhes são próprias. Mas o foco deste artigo é a sua incidência no Direito Civil.
Exporemos seus fundamentos e indicaremos diversas aplicações práticas.
Podemos resumir o que será exposto da seguinte maneira:
a) O princípio da vontade presumível consiste em submeter as soluções de Direito Civil à vontade presumível do homo medius (capítulos 2 e 3).
b) Há quatro parâmetros para a definição da vontade presumível do homo medius: (1) compatibilidade com as lógicas de justiça do ordenamento; (2) harmonia com outros princípios do ordenamento; (3) contextualização com a atualidade; e (4) observar a lógica kantiana de empatia (capítulo 3).
c) O princípio da vontade presumível explica diversas regras atuais e serve para guiar reflexões acerca de casos novos em relação aos quais o texto legal é omisso ou dúbio (capítulo 4). É aplicável, por exemplo, para:
c.1) a interpretação e a integração de contratos (capítulo 4.1.);
c.2) a ordem preferencial de nomeação de curadores (capítulo 4.2);
c.3) a flexibilização ou não dessa ordem legal, seja pela jurisprudência, seja pelo legislador (capítulo 4.2);
c.4) a conversão substancial, a conversão formal, a redução e a substituição do ato de vontade (capítulo 4.3);
c.5) a res perit domino em empréstimo de bens (capítulo 4.5);
c.6) o regime de responsabilidade civil do generoso (capítulo 4.6);
c.7) o teste da vontade presumível como parâmetro para a resolução contratual por fato superveniente (capítulo 4.7);
c.8) a evicção e o vício redibitório (capítulos 4.8. e 4.9);
c.9) o direito de vizinhança (capítulo 4.10);
c.10) o regime mais amistoso de gestão de bens no caso de poder familiar (capítulo 4.11);
c.11) a redução equitativa da indenização no caso de dano manifestamente desproporcional à culpa (capítulo 4.12);
c.12) a união estável (capítulo 4.13);
c.13) a discussão sobre adequação e flexibilização de regras de direito sucessório, como as relativas à ordem de vocação hereditária, à legítima, à exclusão de herdeiros indignos ou deserdados e ao rompimento de testamento (capítulos 4.16 a 4.17);
c.14) a invalidade de cláusulas abusivas (capítulo 4.18);
c.15) a modulação dos efeitos da jurisprudência (capítulo 4.19);
c.16) a dúvida jurídica razoável como excludente de efeitos jurídicos desproporcionais (capítulo 4.20);
c.17) a discussão sobre a responsabilização solidária da agência de viagens por danos causados pelos prestadores de serviços turísticos (capítulo 4.21).
2 Importância da identificação dos princípios de Direito Civil
Princípios são normas de baixa densidade que guiam as atividades jurídicas do legislador e dos operadores do Direito.
Sua identificação é essencial para a harmonia do sistema. Os princípios podem ser aplicados diretamente à solução de casos concretos, notadamente aqueles em relação aos quais inexistem regras. Devem, ainda, ser convocados a orientar a interpretação de regras pelo jurista. Servem, igualmente, para canalizar a edição de novas leis. Além disso, os princípios possuem uma função didática ao facilitar a compreensão e o ensino das regras pelo jurista.
Alguns princípios são decorrências de outros: são especializações de um princípio mais geral. Do ponto de vista da Argumentação Jurídica, há inegável relevância nesses “subprincípios”. É que os subprincípios marcam topoi[1], ou seja, pontos de consenso da comunidade jurídica. A partir desses lugares comuns, os juristas podem concentrar seus reforços argumentativos em pontos seguintes.
No Direito Civil, em escritos anteriores, temos apontado a existência de princípios de grande aplicação prática. É o caso do que designamos de:
a) princípio da proteção simplificada do agraciado[2];
b) princípio da proteção simplificada do luxo[3];
c) princípio do aviso prévio a uma sanção[4];
d) princípio do prestígio aos familiares privilegiados[5];
e) princípio da prioridade relativa da família natural[6];
f) princípio da vontade soberana do testador[7];
g) princípio da harmonização internacional dos direitos reais[8].
Neste texto, apontamos um outro: o princípio da vontade presumível.
3 Fundamentos
O princípio da vontade presumível consiste em submeter as soluções de Direito Civil à vontade presumível do homo medius (ou, na linguagem dos britânicos, do the man on the Clapham omnibus[9]).
Como todo princípio, ele pode entrar em colisão com outros, o que levará o jurista a, no caso concreto, balanceá-los mediante as técnicas adequadas (como, para muitos, a da ponderação).
O fundamento do princípio da vontade presumível é histórico e constitucional.
Extrai-se do fato de que o Direito nasce dos fatos (ex facto jus oritur),
conforme consagrado brocardo latino. Deriva também da definição constitucional
de que todo o poder emana do povo (art. 1º, parágrafo único, CF).
Decorre, outrossim, dos vários dispositivos constitucionais e
infraconstitucionais que, ao tratar das relações de direito privado, acenam
para uma solução jurídica compatível com a vontade presumível dos indivíduos.
Em alguns casos, o Código Civil é mais explícito em referir-se à vontade
presumível do interessado. São os casos do art. 170 (que elege a vontade
presumível das partes como guia para a conversão substancial do negócio nulo[10]) e do art. 862 (que indica a vontade
presumível do dono do negócio como farol[11]).
Miguel Reale, na sua ontognoseologia jurídica, ainda que de forma indireta, timbra a conexão do Direito Civil com a vontade presumível do homo medius. Fá-lo quando, por exemplo, aponta que o operador do Direito atua de acordo com sua experiência, cultura e história (culturalismo jurídico). Fá-lo também ao destacar que a matéria-prima do Direito não é apenas a norma, mas também o fato e o valor (teoria tridimensional do Direito)[12].
A ideia é a de que o jurista, ao lidar com questões de Direito Civil, deve guiar-se de modo a chegar ao resultado que o homo medius alcançaria.
Se, por exemplo, um contrato é omisso sobre determinado caso concreto, o preenchimento dessa lacuna (integração contratual) deve ser feito respondendo a esta pergunta:
– Se as partes houvessem antevisto os desdobramentos do caso concreto, qual cláusula contratual elas teriam redigido?
Se, por exemplo, o legislador pretende regular como será feita a partilha de bens deixados por um falecido, a lei deve ser talhada de modo a retratar a vontade presumível do falecido, considerando o padrão do homo medius.
Alerte-se que a busca de qual seria a vontade presumível do homo medius não é exercício de subjetivismo arbitrário do jurista. Há de observarem-se parâmetros do nosso ordenamento.
O primeiro parâmetro é identificar as lógicas de justiça que inspiraram o legislador em outras leis. O jurista precisa velar pela coerência com a razão de ser das normas. A propósito, é clássica a máxima ubi eadem ratio, ibi eadem ius (onde há a mesma razão, há a mesma norma). A vontade presumível do homo medius é a que se extrai das lógicas de justiça de nosso ordenamento.
Ainda sobre esse aspecto, é fundamental que o jurista procure, ao máximo, tal qual o dworkniano juiz Hércules[13], desvestir-se de suas próprias particularidades e subjetivismo para identificar, na sociedade, qual é o padrão do homo medius. Nesse exercício, é oportuno o jurista lançar mão de ferramentas de outras ciências, como a antropologia, a psicologia, a sociologia, a economia etc. Por meio delas, o jurista terá base mais segura para identificar o que um homo medius faria ou desejaria diante de determinada situação. Diversos fatores precisam ser levados em conta, como a cultura e a racionalidade econômica de cada sociedade. Além disso, o jurista terá condições de visualizar quais comportamentos passarão a ser adotados pelos indivíduos a depender da solução jurídica escolhida: as normas induzem comportamentos dos indivíduos.
Por exemplo, suponha-se que uma pessoa esteja precisando de ajuda de alguém para carregar uma mala, avaliada em R$ 900,00. Imagine que um generoso cidadão realiza esse favor, sem nada cobrar. O generoso, no lugar de prestar atenção no piso, fica conversando com o dono da mala durante o percurso. E, por conta dessa negligência, o generoso acaba tropeçando em um meio-fio e tomba em cima da mala, quebrando-a. O generoso, pois, causou um dano com culpa leve. Diante disso, indaga-se: qual é a solução jurídica mais adequada, condenar o generoso a indenizar o dano de R$ 900,00 ou exonerá-lo desse dever de indenizar?
O jurista, ao se deparar com essa questão, deve buscar a vontade presumível do homo medius, o que pode ser feito respondendo a esta pergunta:
– Levando-se em conta o padrão do homo medius, se as partes fossem regular a prestação do serviço gratuito de transporte de mala, elas teriam colocado uma cláusula responsabilizando o generoso a pagar R$ 900,00 caso culposamente danificasse a mala?
A resposta é não. Jamais o generoso – levando em conta o padrão do homo medius – aceitaria carregar “de graça” a mala e, ainda por cima, assumir o risco de, por um “erro humano” (culpa leve), ter de pagar R$ 900,00 para o dono da mala.
O mais provável é que o generoso recusaria o pedido do dono da mala, cobraria algum valor, recomendaria que o dono da mala contratasse algum profissional ou, simplesmente, ignoraria o pedido de ajuda do dono da mala. Essa é a vontade presumível que se extrai do padrão do homo medius. Em outras palavras, responsabilizar o generoso por culpa leve seria, na prática, tornar a sociedade mais egoísta e individualista: os generosos seriam inibidos a ajudar os outros por conta do elevado risco.
Por essa razão, é que o art. 392 do Código Civil isenta o generoso de indenizar danos causados por culpa leve. O legislador buscou a vontade presumível das partes nessa escolha legislativa. Aliás, essa escolha é replicada nos Códigos Civis de outros países, a exemplo da Alemanha[14].
O segundo parâmetro é observar outros princípios do nosso ordenamento. A vontade presumível do homo medius tem de guardar harmonia com eles. A boa-fé, a dignidade da pessoa humana e outros princípios precisam ser levados em conta na identificação da vontade presumível. O homo medius é alguém que respeita a dignidade da pessoa humana, que age de boa-fé e que atenta para os princípios do ordenamento.
Imagine que uma companhia aérea venda uma passagem por R$ 1.000,00. O consumidor, no momento do check-in, é surpreendido com uma cobrança adicional de R$ 500,00 a título de “tarifa de limpeza do assento”. A companhia alega que essa tarifa destina-se a remunerar o serviço dela em limpar o assento que será ocupado pelo consumidor. O jurista, ao se deparar com um caso como esse, deverá buscar a vontade presumível das partes, tudo em sintonia com outros princípios do ordenamento (como o da boa-fé, o da proteção à parte vulnerável etc.). Para identificar essa vontade presumível, o jurista poderá responder à seguinte pergunta:
– Levando-se em conta do padrão do homo medius, a vontade presumível das partes seria no sentido de concordar com a prática de cobrar “tarifas” surpresas no momento do check-in?
A resposta é um sonoro não. Ocultar tarifas no momento do contrato para, em verdadeira extorsão, cobrá-las em um momento tão sensível (como é o check-in de um voo) é conduta de manifesta má-fé. Com base no padrão do homo medius, as partes não teriam concordado com a supracitada prática se isso tivesse sido suscitado ao tempo da contratação. Elas, no mínimo, exigiriam que essa tarifa adicional tivesse sido, com clareza, informada ao consumidor no momento da compra da passagem. Aliás, à luz do ordenamento jurídico brasileiro, a cobrança de uma “tarifa de limpeza do assento” dificilmente seria tida como compatível com o homo medius. Afinal, é antiético cobrar por um serviço (limpeza do assento) inerente ao serviço de transporte aéreo ou submeter o consumidor a usar uma cadeira que está suja. Caberia à companhia aérea cobrar um valor único pela passagem aérea, ainda que fosse superior ao valor de R$ 1.000,00.
O terceiro parâmetro é atentar para a história do direito, com a necessária contextualização diante das particularidades socioeconômicas e culturais da atualidade (não apenas do nosso país, mas também de sistemas jurídicos estrangeiros).
Sobre esse último ponto, é fundamental que o jurista conheça a origem das normas e domine as lógicas de justiça inspiradoras de nosso ordenamento.
É igualmente inafastável que o jurista esteja conectado com o quotidiano do homem comum: saiba o que acontece nas ruas. Afinal, o direito não pode consistir em um exercício diletante de raciocínios vazios e descolado da realidade.
É, ainda, imperioso que o jurista conheça o que acontece além das fronteiras de seu país, pois, em um mundo inevitavelmente globalizado, a harmonização jurídica é um farol[15].
O quarto parâmetro é atentar para a velha lógica de inspiração kantiana: não fazer com outros o que não se quer para si[16]. Em alguns casos, deve-se perquirir a vontade presumível de uma pessoa caso ela fosse a vítima de um dano: o que ela haveria de querer caso estivesse na posição de vítima, levando-se em conta o padrão do homo medius?
De um modo geral, o que se aponta é que a busca da vontade presumível do homo medius tem de ser feita em consonância com o ordenamento jurídico como um todo, o que exige investigação normativa, social e cultural. De um modo mais aprofundado, essa busca da vontade presumível poderia ser feita em consonância com o que chamamos de “parâmetros analíticos do Direito Civil”[17].
4 Aplicação prática do princípio da vontade presumível
São diversas as aplicações práticas do princípio da vontade presumível. Passaremos a expor alguns casos com base no texto legal e na jurisprudência.
Há, porém, várias teses jurídicas novas que podem ser desenvolvidas a partir do princípio da vontade presumível em conciliação com outros princípios. Em futuro artigo, haveremos de expor, por exemplo, a necessidade de o tratamento jurídico das questões relativas à pessoa interditada ocorrer de acordo com a sua vontade presumível, tomando-se em consideração o seu comportamento durante o período de lucidez anterior à interdição. Com base nisso, algumas regras podem ser flexibilizadas, como a de proibição de doação prevista no art. 1.749, II, Código Civil (CC)[18].
4.1. regra de interpretação e de integração da vontade presumível
A vontade presumível é um guia para a interpretação ou a integração de negócios jurídicos, como um contrato. A ideia é que, diante de uma cláusula contratual dúbia ou de uma omissão contratual, o juiz procure adotar a solução compatível com a vontade presumível das partes. Em outras palavras, o juiz adotaria a solução condizente com a resposta a esta pergunta: “o que as partes teriam pactuado se tivessem previsto a dubiedade ou a lacuna contratual?”
Essa é a diretriz do nosso ordenamento, a qual é externada pelo legislador de diferentes formas.
No caso de
interpretação e integração contratual, o legislador exprime essa diretriz por
meio dos arts. 113, § 1º, e 114 do CC. Veja-os:
Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
§ 1º
A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido
que: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
I – for
confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do
negócio; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
II – corresponder
aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
III – corresponder
à boa-fé; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
IV – for
mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
V – corresponder
a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida,
inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das
partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
§ 2º
As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de
preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas
daquelas previstas em lei. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
Art. 114. Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente.
Sobre esses dispositivos, transcrevemos este excerto[19]:
Interpretar é extrair o sentido possível de um texto. Qualquer texto, seja legal, seja contratual, pode dar ensejo a mais de um sentido possível, de maneira que é necessário o intérprete seguir algumas regras para reduzir o campo de indeterminação do Direito.
Para interpretação de contratos, os arts. 113 e 421-A, I, do Código Civil – frutos da Lei da Liberdade Econômica – dão as regras para tornar mais previsível essa atividade hermenêutica. A rigor, não havia necessidade desses dispositivos legais, pois essas regras de interpretação contratual já decorrem do ordenamento jurídico, mas a previsão legal expressa é didática.
Há dois tipos de regras de interpretação contratual: as voluntárias e as legais.
As regras voluntárias são as pactuadas pelas partes e, em princípio, devem prevalecer sobre as regras legais de interpretação por força dos arts. 113, § 2o, e 421-A, § 1o, CC. Por exemplo, poderiam as partes pactuar que, no caso de dúvida interpretativa, prevalecerá aquela mais lucrativa economicamente para uma das partes. Poderiam, até mesmo, num exemplo cerebrino, pactuar que, havendo dúvidas interpretativas, as partes decidirão com base na sorte (como por meio do jogo da “cara ou coroa”) a interpretação a prevalecer. Podem também estabelecer que deve prevalecer o sentido literal das palavras em detrimento da busca pela intenção das partes, tudo de modo a afastar a regra legal interpretativa da primazia da intenção prevista no art. 112 do CC.
As regras legais são as que
decorrem de lei e só podem ser utilizadas quando não houver regra voluntária
de interpretação contratual em contrário. Em suma, elas estão nos incisos do
§ 1º do art. 113 do CC em conjunto com o art. 112, e devem ser aplicadas
cumulativamente e podem ser assim listadas:
a) Regra do contra proferentem (art. 113, § 1o, IV): na dúvida, prevalece interpretação favorável a quem não redigiu a cláusula contratual, ou seja, prevalece a interpretação contrária a quem a redigiu, ou seja, contrária a quem a proferiu (daí o nome doutrinário “regra do contra proferentem”).
b) Regra da vontade presumível (art. 113, § 1o, V): na dúvida, deve-se adotar a interpretação compatível com a vontade presumível das partes, levando em conta a racionalidade econômica, a coerência lógica com as demais cláusulas do negócio e o contexto da época (“informações disponíveis no momento” da celebração do contrato). Essa regra está conectada com o inciso II do art. 421-A do CC, que prevê o respeito à alocação de riscos definida pelas partes de um contrato.
c) Regra da confirmação posterior (art. 113, § 1o, I): a conduta das partes posteriormente ao contrato deve ser levada em conta como compatível com a interpretação adequada do negócio.
d) Regra da boa-fé́ e dos costumes (art. 113, § 1o, II e III): deve-se preferir a interpretação mais condizente com uma postura de boa-fé das partes e com os costumes relativos ao tipo de negócio.
e) Regra da primazia da intenção (art. 112): deve-se priorizar a intenção das partes em detrimento do sentido literal das palavras no momento da interpretação de um negócio jurídico.
Apesar de uma das regras interpretativas ser batizada de “regra da vontade presumível”, o fato é que as demais acabam sendo desdobramentos (diretos ou indiretos) do princípio da vontade presumível. Afinal, o ordenamento guia-se pela necessidade de garantir uma solução jurídica compatível com aquela que o homo medius esposaria no caso concreto.
4.2. Ordem preferencial para curadores
Quando uma pessoa se torna incapaz ou desaparece, o ordenamento jurídico prevê a curatela como um instituto de amparo a essa pessoa. O curador haverá de velar pelos direitos e deveres dessa pessoa em situação de vulnerabilidade.
Preocupado em definir quem será nomeado curador, o legislador indica uma ordem preferencial baseada na vontade presumível da pessoa, levando em conta o padrão do homo medius.
Os primeiros lugares são ocupados pelos familiares privilegiados, assim entendidos o cônjuge (ou o companheiro), os ascendentes e os descendentes. São batizados de “familiares privilegiados” por serem aqueles que presumidamente guardam maior proximidade e vínculo de confiança com a pessoa, tudo conforme o princípio do prestígio aos familiares privilegiados[20].
Entre esses familiares privilegiados, a ordem preferencial é esta: cônjuge, ascendentes e descendentes.
Os demais familiares ficam para depois.
No caso de tutela, a lógica é a mesma, com o detalhe de que, por conta da idade do tutelado, não se fala em cônjuge.
Veja estes dispositivos do Código Civil e do Código de Processo Civil, respectivamente:
Código Civil
Art. 25. O cônjuge do ausente, sempre que não esteja separado judicialmente, ou de fato por mais de dois anos antes da declaração da ausência, será o seu legítimo curador.
§ 1º Em falta
do cônjuge, a curadoria dos bens do ausente incumbe aos pais ou aos
descendentes, nesta ordem, não havendo impedimento que os iniba de exercer o
cargo.
§ 2º Entre os
descendentes, os mais próximos precedem os mais remotos.
§ 3º Na falta
das pessoas mencionadas, compete ao juiz a escolha do curador.
Art. 1.731. Em falta de tutor nomeado pelos pais incumbe a tutela aos parentes consanguíneos do menor, por esta ordem:
I – aos ascendentes, preferindo o de grau mais próximo ao mais remoto;
II – aos colaterais até o terceiro grau, preferindo os mais próximos aos mais remotos, e, no mesmo grau, os mais velhos aos mais moços; em qualquer dos casos, o juiz escolherá entre eles o mais apto a exercer a tutela em benefício do menor.
Código de Processo Civil
Art. 747. A interdição pode ser promovida:
I – pelo cônjuge ou companheiro;
II – pelos parentes ou tutores;
III – pelo representante da entidade em que se encontra abrigado o interditando;
IV – pelo Ministério Público.
Parágrafo único. A legitimidade deverá ser comprovada por documentação que acompanhe a petição inicial.
O cônjuge ou o companheiro ocupam o primeiro lugar pela presunção de que ele é a pessoa mais próxima, com forte interesse no bem-estar da pessoa vulnerável e com acesso ao campo das confidências e da intimidade.
O segundo lugar não ficou para os descendentes, e sim para os ascendentes. O motivo é a presunção de que estes, por conta da idade, possuem mais experiência para administrar os interesses da pessoa desaparecida. Os descendentes, em princípio, são menos experientes, por serem mais novos: colocá-los na gestão do patrimônio e dos interesses da pessoa vulnerável seria menos recomendável.
É claro que a ordem preferencial acima pode ser flexibilizada no caso concreto, por dois motivos. O primeiro é que as presunções acima podem não corresponder à realidade do caso concreto. Os ascendentes podem, no caso concreto, ser as pessoas menos recomendáveis para assumir a curatela, por conta de alguma inimizade existente com a pessoa vulnerável. O segundo motivo é que, ao se falar em institutos de amparo à pessoa vulnerável, o princípio da vontade presumível precisa dialogar com outro princípio: o do melhor interesse da pessoa vulnerável.
4.3. Conservação do negócio jurídico: Conversão substancial, conversão formal, redução e substituição de fundamento do ato de vontade
No caso de vícios de existência, validade ou eficácia em negócios jurídicos, o ordenamento jurídico busca, ao máximo, conservar o acordo de vontades. Trata-se do princípio da conservação do negócio jurídico, do qual decorrem, entre outras, as seguintes figuras:
a) conversão substancial do negócio jurídico (art. 170, CC);
b) conversão formal do negócio jurídico (art. 183, CC);
c) redução do negócio jurídico (art. 184, CC);
d) substituição de fundamento do ato de vontade[21].
Essas figuras – cada qual a seu modo – decorrem da busca pelo respeito à vontade presumível das partes.
No caso da conversão substancial, a ideia é, no caso de invalidade de um negócio, manter o acordo de vontades sob um outro negócio jurídico presumível. Preserva-se, assim, o efeito prático do negócio, vinculando as partes de acordo com a vontade presumível delas. O art. 170 do CC faz menção expressa à vontade presumível, in litteris:
Art. 170. Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade.
No caso da conversão formal, a ideia é, diante da invalidade da forma do negócio jurídico, manter o acordo de vontade sob uma outra forma presumível, que as partes teriam escolhido se tivessem previsto o vício (art. 183, CC). Veja-o:
Art. 183. A invalidade do instrumento não induz a do negócio jurídico sempre que este puder provar-se por outro meio.
No caso da redução do negócio jurídico, mantém-se o negócio jurídico apenas com as cláusulas válidas, expungindo as inválidas, tudo de acordo com a vontade presumível das partes. A redução, porém, não será admitida quando a parte inválida não for separável, tudo à luz da vontade presumível das partes no caso concreto. A intenção das partes (a vontade presumível) é o farol. Veja o art. 184 do CC:
Art. 184. Respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta for separável; a invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal.
Em relação à substituição de fundamento do ato de vontade, sua aplicação é ampla. A ideia é que o acordo de vontades subsista com base em um fundamento jurídico substituto, condizente com a vontade presumível das partes. Por exemplo, diante da invalidade do registro decorrente da adoção à brasileira, pode-se manter o vínculo de filiação sobre outro fundamento: a parentalidade socioafetiva. Nessa situação, a parentalidade socioafetiva é instituto que, entre outras origens, condiz com a vontade presumível do homo medius.
4.4. Gestão de negócios: atuar de acordo com a vontade presumível do dono do negócio
Quando alguém, sem autorização, administra interesse alheio, é seu dever agir de acordo com a vontade presumível do dono do negócio. Não o fazendo, pode ser responsabilizado. É o que está nos arts. 861 e 862 do CC, os quais coadunam com o princípio da vontade presumível:
Art. 861. Aquele que, sem autorização do interessado, intervém na gestão de negócio alheio, dirigi-lo-á segundo o interesse e a vontade presumível de seu dono, ficando responsável a este e às pessoas com que tratar.
Art. 862. Se a gestão foi iniciada contra a vontade manifesta ou presumível do interessado, responderá o gestor até pelos casos fortuitos, não provando que teriam sobrevindo, ainda quando se houvesse abatido.
4.5. Res perit domino no caso de empréstimo de bens
Havendo o empréstimo de um bem, é intuitivo que o beneficiário usará a coisa de modo prudente, de modo a restituí-la ao dono com os desgastes naturais e toleráveis. Por isso, nos casos de empréstimos, o dono não pode exigir a indenização pelos desgastes naturais do bem. Afinal de contas, é óbvio que a coisa sofrerá desgastes naturais em razão do seu uso.
Ao celebrar um contrato de empréstimo, o dono da coisa não espera receber uma coisa nova de volta, e sim a mesma coisa com o seu desgaste natural decorrente do uso.
Aliás, desgastes
naturais devem ser suportados financeiramente pelo dono da coisa, o que
justifica regras como a de impor-lhes o ônus financeiro por benfeitorias
necessárias (ex.: art. 35, Lei nº 8.245/1991) ou pela redução do valor
do aluguel (art. 567, CC).
Essa regra é representada pela lógica do res perit domino (a coisa perece para o dono) e condiz com a vontade presumível das partes na celebração do contrato de empréstimo.
Nesse sentido, confira-se estes dispositivos:
Lei nº 8.245/1991
Art. 35. Salvo expressa disposição contratual em contrário, as benfeitorias necessárias introduzidas pelo locatário, ainda que não autorizadas pelo locador, bem como as úteis, desde que autorizadas, serão indenizáveis e permitem o exercício do direito de retenção.
Código Civil
Art. 567. Se, durante a locação, se deteriorar a coisa alugada, sem culpa do locatário, a este caberá pedir redução proporcional do aluguel, ou resolver o contrato, caso já não sirva a coisa para o fim a que se destinava.
Art.
1.358-J. São obrigações do multiproprietário, além
daquelas previstas no instrumento de instituição e na convenção de condomínio
em multipropriedade: (Incluído pela Lei nº 13.777, de
2018) (Vigência)
(…)
§ 2º
A responsabilidade pelas despesas referentes a reparos no imóvel, bem
como suas instalações, equipamentos e mobiliário,
será: (Incluído pela Lei nº
13.777, de 2018) (Vigência)
I – de
todos os multiproprietários, quando decorrentes do uso normal e do desgaste
natural do imóvel; (Incluído pela Lei nº 13.777, de
2018) (Vigência)
II – exclusivamente
do multiproprietário responsável pelo uso anormal, sem prejuízo de multa,
quando decorrentes de uso anormal do imóvel. (Incluído pela Lei nº 13.777, de
2018) (Vigência)
4.6. Responsabilidade civil do generoso
O generoso é quem, sem
proveito econômico, beneficia terceiros. É presumido que o generoso seria
intimidado se fosse submetido a um regime de responsabilidade civil rigoroso e
oneroso. Por essa razão, o art. 392 do CC fixa um regime mais brando, limitando
a responsabilidade do generoso a comprovação de dolo. O STJ – com as ressalvas
deste autor[22] –
equipara o dolo à culpa grave (Súmula nº 145/STJ[23]).
Essas regras condizem com o princípio da vontade presumível. Problemas concretos envolvendo generosos devem sempre levar em conta a vontade presumível deste. As soluções devem ser buscadas respondendo a perguntas como esta: “O generoso haveria de realizar a liberalidade se soubesse que seria submetido a determinada consequência?”
Deve-se respeitar a vontade presumível das partes na resolução dos casos concretos.
4.7. Teste da vontade presumível para resolução contratual por fato superveniente
Nem sempre as partes conseguem disciplinar, nos contratos, a consequência jurídica diante de fatos supervenientes. Por isso, o ordenamento prevê institutos para suprir essas lacunas, como a teoria da imprevisão (art. 478, CC), a teoria da quebra da base do contrato, a teoria da quebra antecipada do contrato e a exceção de inseguridade (art. 477, CC). Por esses institutos, os contratos podem ser revisados ou resolvidos por conta dos impactos causados por fatos supervenientes. Trata-se de institutos que arrimam as exceções de pré-vencimento[24].
O princípio da vontade presumível é um farol para a aplicação desses institutos, por meio do “teste da vontade presumível”. A ideia é a seguinte: o magistrado, antes de revisar ou resolver o contrato por fato superveniente, deve verificar se a solução condiz com a vontade que as partes teriam expressado se tivessem previsto o fato superveniente[25]. Confira-se:
No período compreendido entre a data do nascimento do contrato e o vencimento da prestação, não há um “vazio prestacional” (como se o devedor não tivesse nenhuma prestação a cumprir antes do vencimento), ao contrário do que se pensava antigamente com base em uma concepção tradicional e estática das obrigações.
Com a moderna concepção de obrigação como processo – visão mais dinâmica e finalística da obrigação –, tanto o devedor quanto o credor têm de, desde o nascimento do contrato, praticar vários atos necessários a garantir, ao final, o cumprimento adequado da prestação, tudo à luz da boa-fé objetiva. Entre esses vários atos, estão todos aqueles decorrentes dos deveres anexos.
Se, durante a relação contratual, o devedor adotar condutas que possam ameaçar o êxito futuro do cumprimento da obrigação, poderá o credor adotar medidas prévias ao vencimento da obrigação, mais especificamente estas duas: a exceção de inseguridade (art. 477 do Código Civil – CC) ou a quebra antecipada do contrato (doutrina e aplicação analógica dos arts. 395, parágrafo único, 475 e 477 do CC).
Chamamos essas duas hipóteses de “exceções pré-vencimento”, pois são espécies de defesas (= exceções) utilizadas precocemente, antes do vencimento da obrigação.
Trataremos aqui, com brevidade, apenas da quebra antecipada do contrato.
É preciso ter cuidado com a nomenclatura. Apesar de a maior parte da doutrina não fazer a distinção, consideramos haver uma categoria geral chamada “quebra antecipada do contrato lato sensu”, da qual estas são espécies
(1) quebra antecipada stricto sensu, também chamada de “quebra antecipada culposa do contrato”, “inadimplemento antecipado” ou “inadimplemento antes do termo”: é uma espécie de inadimplemento por decorrer de culpa do devedor. É a quebra antecipada culposa.
(2) Quebra antecipada não culposa do contrato: é uma espécie de resolução do contrato por caso fortuito.
É que a quebra antecipada pode decorrer de um fato superveniente causado por culpa da parte ou não.
Se decorrer de culpa, aí é adequado chamar essa quebra antecipada de “inadimplemento antecipado” ou de “inadimplemento antes do termo”.
Se, porém, não houver culpa da parte, não há falar em “inadimplemento antecipado” ou de “inadimplemento antes do termo”, pois aí não há inadimplemento! A ruptura precoce do contrato aí deve ser chamada apenas de “quebra antecipada do contrato lato sensu”.
Reconhecemos que grande parte da doutrina não faz a distinção acima e prefere utilizar a expressão quebra antecipada do contrato apenas para as hipóteses de haver culpa da parte, ao passo que a resolução prematura do contrato por fato superveniente fortuito é tratada como um fenômeno em apartado.
O pressuposto da quebra antecipada do contrato é o de que, antes do vencimento, por um fato superveniente, o objeto do contrato, na sua exata dimensão, tenha-se tornado impossível ou inútil. Quando se afirma “sua exata dimensão”, está-se referir também ao cumprimento dos deveres anexos, como o de proteção, o de segurança e o de conforto.
(…)
A quebra antecipada do contrato pode decorrer da violação de deveres anexos, mas é preciso analisar o caso concreto para verificar a razoabilidade dessa medida. Esse juízo abre um espaço não cartesiano para o intérprete. O jurista terá de valer-se de um juízo de razoabilidade que avalie a legítima expectativa do indivíduo médio. E, para tanto, sugerimos o que designamos de teste da vontade presumível.
Por esse teste, o jurista deverá responder a esta pergunta:
– à luz do contexto da celebração do contrato, se as partes tivessem, de antemão, previsto um problema que surgiria por uma futura conduta de uma das partes, elas teriam, no próprio instrumento, autorizado a ruptura do contrato?
Se a resposta for sim, é cabível a quebra antecipada do contrato. Se a resposta for negativa, não há nenhum dever anexo violado.
A resposta deverá ser feita à luz da
regra da vontade presumível, que é extraída do contexto do negócio e da
racionalidade econômica, conforme art. 113, § 1º, V, do CC.
A título ilustrativo, se um pai matricula um filho menor em uma escola que, posteriormente, vem a ser envolvida em graves escândalos de assédios sexuais praticados por professores contra alunos dentro do estabelecimento, é cabível a quebra antecipada do contrato. O teste da vontade presumível chancela isso, pois a resposta certamente seria positiva a esta indagação “o pai, se tivesse previsto esse problema futuro, teria colocado, no contrato, uma cláusula permitindo a resolução contratual no caso de envolvimento da escola em um escândalo como esse?”
O teste da vontade presumível é uma ferramenta que auxilia o jurista a decidir se é ou não cabível a quebra antecipada do contrato.
Aliás, esse teste pode ser útil para o preenchimento de outras lacunas contratuais. Com efeito, por conta da racionalidade limitada imposta a todas as obras humanas, é inviável que as partes, de antemão, consigam disciplinar, no instrumento contratual, as infinitas variações do casuísmo futuro, de maneira que todo contrato tem lacunas (ainda que pequenas) e precisa de meios de integração. Além do mais, se fosse viável o exercício perfeito de uma futurologia, os instrumentos contratuais seriam volumosíssimos “livros”, os quais, de tão grandes, seriam insondáveis na prática, o que seria um despropósito. Por isso, em todo e em qualquer contrato, há necessidade de preencher suas lacunas por meio de meios de integração. O teste da vontade presumível é uma ferramenta útil para preencher essas lacunas, inclusive as relativas à admissibilidade da quebra antecipada do contrato.
4.8. Evicção
Nos contratos onerosos de transferência de coisas, o transferente tem de garantir a higidez do direito de propriedade sobre a coisa. O adquirente não pode ficar no prejuízo se um terceiro exitosamente reivindicar a coisa. Ainda que o contrato seja silente, essa é a vontade presumível das partes nos contratos onerosos.
Como se vê, o princípio da vontade presumível das partes está na base dos arts. 447 e seguintes do CC, que garantem aos adquirentes os direitos decorrentes da evicção no caso de contratos onerosos.
Não se dá o mesmo em contratos gratuitos. Seria incompatível com a vontade presumível colocar, sobre os ombros do generoso, o ônus financeiro de responder por eventual evicção. Isso desestimularia a prática da generosidade. O princípio da vontade presumível é um farol nessa escolha legislativa.
4.9. Vícios redibitórios
À semelhança do que se dá com a evicção, os contratos onerosos de transferência de coisa envolvem o dever de o transferente garantir a higidez da coisa transferida. Havendo vícios na coisa, o transferente responde pelos vícios redibitórios na forma dos arts. 441 e seguintes do CC.
A base de justificação dessa escolha legislativa é, entre outros, o princípio da vontade presumível.
Por exemplo, no caso de venda de um veículo, é presumível que o comprador espera que o bem não possua nenhum vício oculto. Se houvesse vício, ele não faria o contrato ou, ao menos, pagaria um preço menor. É presumível que o vendedor garante que a coisa não possui vício oculto. Caso haja algum vício oculto, aplicam-se as regras de vícios redibitórios: o adquirente pode escolher entre resolver o contrato ou pleitear o abatimento proporcional do preço.
4.10. Direito de vizinhança
Os arts. 1.277 e seguintes do CC estabelecem regras de Direito de Vizinhança. Censuram usos anormais da propriedade, garantem direito à passagem forçada etc.
Essas regras, entre outros motivos, decorrem do princípio da vontade presumível. São normas condizentes com o comportamento que o homo medius teria na sua relação com a vizinhança.
Por exemplo, os vizinhos presumidamente concordam que nenhum deles deve ouvir música em altura elevadíssima, ainda mais de madrugada. Pode até haver um ou outro vizinho que não se importaria com isso, mas não se trata do padrão do homo medius. Sob essa ótica, o art. 1.277 do CC condena condutas de vizinhos que atinjam o sossego dos demais.
A importância em entender essa base de justificação das regras não é apenas didática. Colabora também para que o juiz, diante de um caso novo, ofereça uma solução harmônica com o ordenamento jurídico.
4.11. Poder familiar com menos “desconfiança”: usufruto legal e ausência de prestação periódica de contas
Levando em conta o padrão do homo medius, o legislador presume que os pais se comportam de modo favorável aos interesses do filho com idade inferior a 18 anos. Pressupõe que o genitor faria qualquer sacrifício para o bem-estar do filho infante.
Não há a mesma presunção para terceiros que estejam com a tutela de uma criança ou um adolescente. O legislador já supõe que esses terceiros tenderão a ser menos confiáveis no cuidado dos mirins postos sob sua tutela.
É dentro dessa presunção (decorrente do princípio da vontade presumível) que o legislador estabelece um regime mais benevolente para o poder familiar comparativamente com o regime da tutela.
Os pais, no exercício do poder familiar, são titulares do direito real de usufruto legal sobre os bens do filho (art. 1.689, I, CC). Além disso, só tem dever de prestar contas se forem demandados a tanto.
É diferente do que se dá com os tutores. Estes precisam prestar contas bienalmente (além do balanço anual) e não possuem usufruto dos bens do tutelado (arts. 1.756 e 1.757, CC).
Todas essas regras baseiam-se no princípio da vontade presumível.
Uma das consequências práticas é que, com base nisso, é viável defender a flexibilização do regime da tutela no caso de o tutor guardar, no caso concreto, uma proximidade afetiva comparável a de um pai. É também viável defender um endurecimento do regime do poder familiar para pais que, no caso concreto, revelem um distanciamento afetivo em relação ao filho. Trataremos desse assunto em outra oportunidade.
4.12. Redução equitativa da indenização no caso de dano manifestamente desproporcional à culpa (art. 944, parágrafo único, CC)
Em regra, a responsabilidade civil volta-se a garantir a reparação integral do dano. O valor da indenização correspondente à extensão do dano.
Há, porém, exceções. Uma delas é quando há manifesta desproporção entre o grau de culpa e o dano (art. 944, parágrafo único, CC). Nessas hipóteses, o juiz pode reduzir o valor da indenização equitativamente. Veja este exemplo:
Suponha que um motorista, por um simples lapso (culpa leve), abalroe uma Ferrari. O conserto custará a expressiva cifra de R$ 100 mil. Uma lesão similar em um veículo de porte médio custaria apenas R$ 1 mil. Nesse caso, o juiz poderá reduzir equitativamente a indenização (art. 944, parágrafo único, CC). Na prática, a redução não é comum. Mas a previsão legal existe.
Consideramos ser equitativo o valor correspondente ao conserto de uma avaria similar em um veículo de padrão médio. Ou seja: no exemplo mencionado, o dono da Ferrari só deveria receber R$ 1 mil a título de indenização.
Entre outros motivos, essa regra da redução equitativa justifica-se pelo princípio da vontade presumível. O homo medius não pode esperar do sistema de responsabilidade civil indenizações por danos muito acima da média, especialmente quando o grau de culpa for pequeno. Cabe ao homo medius socorrer-se de outros departamentos do Direito Civil para a tutela desses riscos acima da média, como do direito contratual, por meio da contratação de seguros.
É claro que o conceito de dano manifestamente desproporcional à culpa depende das circunstâncias do caso concreto. O exemplo supracitado, da Ferrari, provavelmente não valeria em Mônaco, cidade-estado na qual a média dos valores dos veículos que trafegam nas ruas está brutalmente acima da média do valor dos veículos que circulam no Brasil.
O princípio da vontade presumível, que toma por base a figura do homo medius, ajuda a compreender a regra do art. 944, parágrafo único, do CC e a contextualizá-lo.
4.13. União estável
O princípio da vontade presumível é útil para compreender a própria figura da união estável no Brasil. A análise parte do padrão do homo medius, que representa o indivíduo de boa-fé, ético e racional, conforme os parâmetros indicados no capítulo 3.
Se duas pessoas passam a viver como se fossem casados (more uxorio), a presunção é de que ambas querem os efeitos jurídicos de um casamento. Isso é o que se extrai do padrão do homo medius dentro do contexto brasileiro. A não formalização do casamento deve ser vista como um desdobramento da cultura de informalidade da sociedade brasileira ou das dificuldades financeiras ou operacionais dos indivíduos em realizar os procedimentos do casamento.
Sob essa ótica, o legislador brasileiro reconhece a união estável como entidade familiar com efeitos jurídicos praticamente idênticos ao do casamento, tudo em respeito ao padrão do homo medius brasileiro[26].
4.14. Alimentos entre familiares
Tomando-se em conta o padrão do homo medius, há de presumir-se que familiares muito próximos auxiliar-se-ão mutuamente no caso de necessidades financeiras. A motivação é não apenas o vínculo afetivo em si, mas também uma espécie de dever moral como compensação por outras generosidades recebidas ao longo da vida.
Os familiares muito próximos são os familiares privilegiados (ascendentes, descendentes e cônjuge ou companheiro), bem como os irmãos. A ideia é que esses familiares, pela grande proximidade, ajudam-se mutuamente do ponto de vista financeiro. O pai, por exemplo, sacrifica-se o quanto for necessário para dar o maior conforto material possível ao filho menor. O filho, por outro lado, quando for maior de 18 anos, haverá de ajudar seu pai caso este seja idoso e esteja em situação de necessidade. Igual raciocínio deve ser estendido aos irmãos.
Além disso, do ponto de vista sucessório, esses familiares ocupam posições de destaque na ordem de vocação hereditária. Há grandes chances de um herdar bem do outro. Diante disso, ainda que por uma espécie de dever moral, esses familiares não podem ser sovinas diante de uma situação de necessidade do outro em vida.
A vontade presumível do homo medius, portanto, é a de que ele ajudará financeiramente esses familiares mais próximos no caso de necessidade.
Não se dá o mesmo em relação aos familiares mais distantes, como tios, sobrinhos ou primos. Não há, dentro do padrão do homo medius, essa mesma aproximação de ajuda patrimonial mútua ao longo da vida. Além disso, a probabilidade de esses familiares mais distantes serem herdeiros um dos outros é mais remota, haja vista a sua posição refratária na ordem de vocação hereditária.
É dentro desse jogo de vontades presumíveis que o legislador estabelece o dever de alimentos apenas entre irmãos ou entre os familiares privilegiados (ascendentes, descendentes e consorte), conforme arts. 1.566, IV, 1.696, 1.697 e 1.724 do CC.
Enxergar essa escolha legislativa sob a ótica do princípio da vontade presumível dá não apenas maior clareza didática ao estudioso, mas também permite sustentar teses jurídicas para casos concretos que discrepam olimpicamente do padrão do homo medius.
Pode-se, por exemplo, discutir se deveria ou não admitir alimentos em favor de um pai que nunca (nunca mesmo) despendeu sequer um segundo ou um centavo próprio em favor do filho desde o nascimento deste. Essa discussão é plenamente válida, seja para o juiz (que poderia eventualmente adotar uma interpretação restritiva da legislação para negar os alimentos), seja para o legislador (que poderá cogitar em promover alterações legislativas nesse sentido). Despachamos o aprofundamento dessa questão para futuro artigo.
4.15. A ordem de vocação hereditária e a legítima
O princípio da vontade presumível colabora para explicar regras sucessórias, como a da ordem de vocação hereditária (art. 1.829, CC) e a da legítima (arts. 1.789, 1.845 e 1.846, CC).
A ordem de vocação hereditária é feita, entre outros motivos, com base na vontade presumível de uma pessoa que morreu sem testamento. Ela é uma espécie de “testamento legal” para quem morreu ab intestato. A escolha legislativa leva em conta o padrão do homo medius e responde à seguinte pergunta: a quem o falecido – se pudesse fazer um testamento – gostaria de contemplar hereditariamente?
A resposta centra-se em priorizar aqueles familiares mais próximos. Isso explica o porquê de os familiares privilegiados liderarem a lista da ordem de vocação hereditária e o porquê de os familiares mais distantes estarem no final, conforme o art. 1.829 do CC:
Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III – ao cônjuge sobrevivente;
IV – aos colaterais.
Essa proximidade dos familiares é avaliada não apenas sob o aspecto afetivo. Para efeito sucessório, ela é também calculada considerando o fluxo financeiro ocorrido ao longo da vida, ao menos sob a ótica de um padrão do homo medius. Afinal, o direito sucessório só tem razão de ser se o falecido tiver deixado bens. Quem morre sem patrimônio algum não é alvo do direito sucessório (salvo para questões mais periféricas, como a de resguardar os herdeiros de responder além da força da herança). Direito sucessório gira em torno, portanto, de bens.
Assim, de um lado, é certo que a proximidade afetiva é um vetor para avaliar a vontade presumível do homo medius na escolha dos sucessores mortis causa. Por exemplo, pais costumam querer deixar o máximo de bens para seus filhos, especialmente se forem menores.
De outro lado, porém, o legislador leva em conta também aspectos financeiros, numa ideia de o direito sucessório ser uma compensação patrimonial pelos dispêndios feitos gratuita ou forçosamente ao longo da vida entre os familiares. A própria irrepetibilidade dos alimentos entra nesse cenário.
A solidariedade voluntária e a solidariedade compulsória do Direito de Família encontram, no Direito Sucessório, uma potencial compensação financeira. Frise-se o adjetivo potencial: a compensação financeira com a atribuição patrimonial sucessória não necessariamente existirá e, se existir, não necessariamente será na mesma medida.
De fato, quando o legislador obriga, por exemplo, os pais a terem de pagar alimentos aos filhos menores, ele move-se essencialmente por razões existenciais de direito de família. O filho não terá de devolver o dinheiro que recebeu do pai a título de alimentos, dada a irrepetibilidade dos alimentos. Todavia, numa verdadeira espécie de compensação pecuniária, inspirado por razões de justiça, o legislador estabelece regras sucessórias em favor dos pais no caso de morte do filho. Esses ascendentes terão uma posição privilegiada na ordem de vocação hereditária.
O legislador vai além quando se trata dos familiares privilegiados (ascendentes, descendentes e cônjuge). Ele estabelece a legítima como um limite a liberdade de testar. Quem tem um familiar privilegiado é proibido de dispor de mais de 50% do seu patrimônio por meio de testamento. A razão dessa regra é não apenas de ordem existencial, mas, sobretudo, de ordem patrimonial: o legislador quer garantir uma espécie de compensação financeira pelos dispêndios financeiros (ainda que potenciais) dos familiares privilegiados entre si.
É preciso ser direto. Direito sucessório não é um ramo do direito civil baseado apenas em reflexões existenciais ou afetivas. É ramo substancialmente patrimonial. Objetiva partilhar bens. Sem bens, não há transmissão hereditária. É romântico sublinhar aspectos afetivos ou existenciais ao se tratar do direito sucessório, pois, se o falecido não tiver deixado bens, nada haverá a partilhar. Aliás, é por conta desse ambiente mais patrimonializado que o direito sucessório acomoda o princípio da vontade soberana do testador[27]. Enfim, no direito sucessório, reflexões extrapatrimoniais são importantes, mas em menor escala do que as de índole patrimonial.
Logo, é evidente que o legislador precisa fazer reflexões de índole pecuniária para identificar a vontade presumível do falecido, tudo como forma de compensar pecuniariamente os familiares mais próximos.
Por exemplo, os genitores investem valores elevadíssimos na criação dos seus filhos menores. O consorte (cônjuge ou companheiro) renuncia a projetos profissionais ou pessoais e investe seu tempo dedicando-se ao bem-estar do outro. O filho, ao adquirir autonomia profissional, tende a ajudar os pais que estejam em situação de necessidade. Além disso, o próprio legislador torna obrigatório esse auxílio financeiro por meio dos alimentos no caso de necessidade de um desses familiares próximos. Em contrapartida, esses familiares privilegiados são prestigiados pelas regras de direito sucessório.
Entender o tema sob a ótica do princípio da vontade presumível é ferramenta poderosa não apenas para o juiz enfrentar os casos concretos, mas também para o legislador reavaliar constantemente a atualidade das regras de direito sucessório.
4.16. Exclusão do herdeiro por indignidade: hipóteses, modo e reabilitação tácita
O princípio da vontade presumível é um dos guias da exclusão do herdeiro por indignidade.
Atos de indignidade previstos em lei, como a tentativa de homicídio contra o autor da herança, podem excluir o herdeiro da sucessão causa mortis. A exclusão não é automática: depende de provocação do legitimado no prazo decadencial de 4 anos. Além disso, caso tenha havido reabilitação expressa ou tácita do herdeiro indigno, não haverá sua exclusão. A reabilitação tácita dá-se quando o testador, mesmo conhecendo a causa da indignidade, contempla o indigno no testamento. Essa hipótese de reabilitação tácita é parcial: restringe-se aos limites do testamento; não afasta a exclusão por indignidade quanto ao restante da herança (arts. 1.814, 1.815 e 1.818 CC).
A base dessa escolha legislativa é, entre outros fundamentos, a vontade presumível do autor da herança.
A ideia é complexa. De um lado, os atos de indignidade são tão torpes que, em princípio, o familiar indigno deveria ser excluído da sucessão. De outro lado, não dá para presumir que, de acordo com a média moral do brasileiro, a vontade presumível do autor da herança seria a de excluir esse familiar.
Pense em um filho que caluniou em juízo a madrasta. Trata-se de uma hipótese de indignidade (art. 1.814, II, CC). Se, hipoteticamente, consultássemos todos os brasileiros, é certo que haveria opiniões diferentes: alguns diriam que gostariam que esse filho indigno fosse excluído da sucessão mortis causa; outros relevariam esse ato de indignidade por diversos motivos. Há pais que tolerariam esse ato de grande desrespeito por conta de traumas ocorridos no histórico familiar do filho indigno. Há filhos que mantêm inimizade capital contra a madrasta, acusando-a, por exemplo, de ter sido o pivô do fim do casamento do pai com a mãe. O pai, por vezes, sente-se culpado pela situação e, por isso, toleraria atos de indignidade.
Igual raciocínio dá-se para as demais hipóteses de indignidade.
Até mesmo a hipótese de homicídio doloso (tentado ou consumado) entra dentro dessa lógica. Pense em um pai que se sentia culpado pelo fato de um filho ter ingressado no mundo do vício por drogas. Suponha que esse filho, para custear o vício, chegue a assassinar o pai. Talvez esse pai, se pudesse ser consultado da tumba, haveria de preferir que esse filho recebesse a herança mesmo assim, torcendo pela recuperação desse filho problemático. O fato é que, nessa hipótese, o Ministério Público é legitimado para pleitear a exclusão do herdeiro indigno no prazo de 4 anos, sob pena de decadência.
Enfim, a vontade presumível do homo medius oscila entre a exclusão do herdeiro indigno e o perdão dele. Por isso, o legislador chegou a uma solução intermediária. Previu a regra de que o ato de indignidade exclui o herdeiro, mas estabeleceu um prazo decadencial para que legitimados proponham a ação de exclusão do herdeiro por indignidade.
É interessante que, para atos desrespeitosos e imorais de menor gravidade sem previsão no art. 1.814 do CC, o legislador não admita a exclusão por indignidade.
No máximo, ele haverá de admitir a deserdação, a qual depende de manifestação expressa de vontade do testador, além da propositura de ação de exclusão no prazo decadencial de 4 anos. O ato, porém, terá de estar listado no rol legal autorizador da deserdação (arts. 1.961 a 1.965, CC).
Essa exigência de manifestação expressa do autor da herança para deserdação decorre também do princípio da vontade presumível. O homo medius não necessariamente haveria de querer a exclusão hereditária de seu familiar por atos imorais menos grave, listados como autorizadores da deserdação nos arts. 1.962 e 1.963, CC.
Atos imorais ou desrespeitosos não catalogados pelo rol de indignidade ou de deserdação são irrelevantes do ponto de vista do direito sucessório. Não são considerados, pelo legislador, tão graves a ponto de afastar o direito desse herdeiro imoral a ser beneficiado patrimonialmente com a sucessão mortis causa. Afinal, esse herdeiro imoral, ainda que potencialmente, encontra nas regras sucessórias uma espécie de compensação financeira pelos dispêndios que teve com a solidariedade voluntária ou forçada do direito de família.
Enxergar o assunto sob a ótica do princípio da vontade presumível abre as portas a aprofundamentos.
Por exemplo, seria ou não adequado admitir a exclusão hereditária do pai que abandonou afetivamente o filho? A vontade presumível do homo medius seria a de beneficiar hereditariamente um pai que nunca (nem por um segundo, nem com um centavo sequer) tenha participado da vida do filho? Parece-nos que não. Entendemos que esse pai ausente deveria ser excluído da sucessão em respeito ao princípio da vontade presumível. A questão, porém, é discutir se haveria ou não necessidade de edição de lei. Deixamos esse debate para outra oportunidade. O objetivo aqui é apenas ilustrar as vantagens do princípio da vontade presumível para os debates do assunto da exclusão da sucessão, seja sob a ótica da aplicação da lei, seja sob a de mudanças legislativas.
Outro exemplo de aplicação prática é discutir se seria ou não viável que alguém, de antemão, afastasse a aplicação do instituto da exclusão do herdeiro por indignidade. Poderia um pai, por exemplo, determinar que o filho nunca poderia ser excluído da sucessão, ainda que venha a cometer um parricídio? Entendemos que sim. Isso, porque a vontade presumível sobre a qual se baseia tem de ser afastada pela vontade expressa em um caso concreto.
4.17. Rompimento do testamento
O rompimento do testamento é uma hipótese clara de aplicação do princípio da vontade presumível. Consiste na perda da eficácia do testamento diante da existência de um herdeiro necessário ignorado pelo testador ou diante da superveniência de um descendente sucessível (arts. 1.973 e 1.974, CC).
A ideia é a de que, presumivelmente, o testador não faria o testamento se soubesse que tinha um filho ou um outro herdeiro necessário. É a vontade presumível dele. Tanto é assim que, antes do CC/2002, o rompimento do testamento era conhecido como hipótese de revogação presumida.
A própria jurisprudência tende a restringir a aplicação prática do dispositivo, tudo com base em raciocínios baseados na vontade presumível do testador. Caminha no sentido de afirmar que o rompimento do testamento não ocorrerá se, à época do testamento, o testador sabia da existência de, ao menos, um herdeiro necessário. A ignorância acerca de outro herdeiro necessário ou a superveniência de um descendente seria irrelevante aí. Isso, porque a vontade presumível é que o testador quis lançar mão de sua parte disponível, deixando apenas a legítima aos herdeiros necessários.
Além disso, o entendimento mais adequado é admitir que o testador possa expressamente afastar o rompimento do testamento. Afinal, a vontade expressa deve, em regra, prevalecer sobre a vontade presumível.
Sobre o assunto, veja[28]:
De fato, o fundamento do instituto do rompimento do testamento é o de que o legislador presumiu que a vontade do testador seria outra. Isso, caso soubesse da existência de descendente ou de outros herdeiros necessários. Entende-se que, nessas hipóteses, o testador não haveria de fazer testamento algum: ele não iria querer prejudicar esses familiares privilegiados. Considera-se que o testador não deixaria “um centavo sequer” a terceiros se soubesse da existência de herdeiro necessário, pois não iria desprestigiar patrimonialmente este em proveito de terceiros.
É por essa razão que o rompimento do testamento gera ineficácia total do testamento.
Não se trata de um instituto de proteção à legítima! Ainda que o testador só tenha disposto de metade do seu patrimônio, a ignorância dele acerca da existência de herdeiro necessário implicará o rompimento do testamento. É irrelevante que a legítima desses herdeiros necessários não tenha sido atingida. O rompimento do testamento decorre da presunção de que o testador não teria deixado “um centavo sequer” a terceiros em detrimento do herdeiro necessário desconhecido.
A proteção da legítima é objeto de preocupação de outros institutos, como a redução testamentária (arts. 1.966 ao 1.968, CC).
Há, porém, doutrinadores que justificam o instituto do rompimento sob outra perspectiva, o que gera a mesma repercussão prática. Há quem diga que não está em jogo aqui nenhuma presunção de proximidade familiar ou afetiva que levaria o testador a prestigiar o herdeiro necessário desconhecido. O que está em jogo é a presunção de que a vontade mortuária seria diferente se a parte disponível não fosse a integralidade dos bens, e sim apenas metade. Clovis Beviláqua (1959, pp. 964-965) era certeiro, in verbis:
“(…) se o indivíduo faz o seu testamento, quando não tem descendente sucessível, ou não o conhece, distribuirá seus bens de um certo modo; e, se, depois, se reduzirem as suas liberalidades à metade, já o testamento não exprime a sua vontade. Muitos legados deixariam de ter sido feito, muitas determinações teriam calado, se soubesse que apenas disporia da metade de seus bens. É, pois, justo que se considere roto o seu testamento, deixando-lhe a liberdade de fazer outro, se quiser. A situação não é a mesma do que, sabendo que tem herdeiros necessários, redige o seu testamento, como se os não tivesse. O que assim procede infringe conscientemente a lei, contra a qual ergue a sua vontade; a lei não lhe consente o excesso, mas lhe respeita o direito. Aquele a quem aparece descendência antes inexistente ou ignorada, não violou lei alguma, dispondo da totalidade de seu patrimônio, usou de um direito reconhecido; as circunstâncias é que mudaram, e, com elas, mudou o seu estado de espírito em relação ao destino de seus bens para depois da morte.”
Carlos Maximiliano (1952, p. 191), igualmente, in litteris:
“1.343 – Rompe-se o ato de última vontade, em havendo descendente sucessível, se o disponente no momento de testar ignorava que ele existisse, ou o julgava morto. Nada prevalece: nem a instituição de herdeiros nem os legados, ainda mesmo que as liberalidades caibam na metade disponível. A lei estabelece a presunção juris et de jure de que o falecido não contemplaria com a sua herança a terceiros, se soubesse da existência, atual ou em futuro próximo, de pessoa ligada a ele pelos mais estreitos vínculos de sangue. Na verdade, o de cujus, ante a certeza de ter sucessores imediatos, pelos menos diminuiria o número e a importância dos legados, e, na impossibilidade de saber qual ele preferiria e a quanto reduziria os benefícios, parece justo não manter nenhum, sobretudo, porque, em regra, nada transmite espontaneamente a estranhos nem a parentes remotos, quem possui prole viva”
O rompimento do testamento reflete, na verdade, uma hipótese de revogação presumida ou legal do testamento. Era por essa razão que o próprio CC/1916 disciplinava a ruptura do testamento dentro do capítulo de revogação do testamento. A expressão “rompimento do testamento” representa novidade do CC/2002.
3.12.3.3.6. Irrelevância da superveniência de descendente se já havia, ao menos um outro conhecido, no momento do testamento
É certo que, se o testador não tinha nenhum herdeiro necessário conhecido no momento da elaboração do testamento, a superveniência ou a descoberta de um herdeiro necessário acarreta rompimento do testamento (art. 1.973, CC).
O problema se dá quando o testador tinha, ao menos, um herdeiro necessário conhecido. Nesse caso, indaga-se: se o testador sabia de descendentes ou de outros herdeiros necessários no momento de testar, a superveniência de outros (ex.: nasceu um novo filho ou um novo neto) causaria o rompimento do testamento?
O STJ entende que não. Apenas há ruptura do testamento se, no ato de testar, o disponente não tinha herdeiro necessário algum ou ignorava a existência de qualquer um. É que, se o disponente tinha e sabia de, ao menos, um herdeiro necessário, ele já tinha consciência da existência da legítima como parte indisponível no testamento. É irrelevante se ele vier a ter, reconhecer ou descobrir novo descendente ou herdeiro necessário: o seu estado de espírito não mudaria diante da consciência de que a parte disponível era apenas de metade do patrimônio (REsp 1273684/RS, 3ª Turma, Rel. Ministro Sidnei Beneti, DJe 08/09/2014; REsp 594.535/SP, 4ª Turma, Rel. Ministro Hélio Quaglia Barbosa, DJ 28/05/2007; AgRg no REsp 1273684/RS, 3ª Turma, Rel. Ministro Sidnei Beneti, DJe 04/05/2012; REsp 240.720/SP, 4ª Turma, Rel. Ministro Aldir Passarinho Junior, DJ 06/10/2003).
O entendimento do STJ deve ser aplicado em qualquer hipótese em que o testador já tinha, ao menos, um herdeiro necessário: a razão de ser do instituto do rompimento do testamento é a presunção de que, se o testador soubesse que só poderia dispor de metade dos bens, ele teria outro estado de espírito na confecção do testamento. A razão de ser não é proteger a legítima. Para tanto, existe o instituto da “redução testamentária” (art. 1.967, CC).
3.12.3.3.7. Cabimento de cláusula afastando o rompimento de testamento?
Indaga-se: seria possível o testador afastar o rompimento do testamento ao dizer ser irrelevante o aparecimento de algum descendente ou outro herdeiro necessário?
Apesar do silêncio legal, temos por plenamente viável essa cláusula para afastar o rompimento testamentário (arts. 1.973 e 1.974, CC). A finalidade desse instituto não é outra senão proteger a vontade presumida do testador. Ora, se o testador textualmente externou sua vontade, não há motivos para presumir que sua vontade seria diferente.
Nessa hipótese, a única consequência do aparecimento do herdeiro necessário desconhecido será a redução testamentária para lhe assegurar a proteção da legítima (art. 1.967, CC).
4.18. Abusividade de cláusulas contratuais
O homo medius é ético; não atua sob abuso de direito. Por isso, cláusulas contratuais abusivas devem ser consideradas nulas. Se as partes tivessem o padrão do homo medius, não as teriam pactuado. Como se vê, o princípio da vontade presumível é também uma das justificativas da invalidade de cláusulas abusivas com fundamento na vedação ao abuso de direito (art. 187, CC; art. 51, CDC).
4.19. Modulação de efeitos de mudança de jurisprudência
A modulação dos efeitos de precedentes (art. 927, § 3º,
CPC) deve ser feita levando em conta a vontade presumível dos cidadãos.
É que as pessoas se comportam de acordo com a legítima expectativa que possuem em relação à correta interpretação da legislação. Se a interpretação dominante da legislação muda, deve-se evitar punir essas pessoas, num ato de verdadeiro “justiçamento de transição”[29]. Há de modularem-se os efeitos da nova interpretação, como regra geral, a fim de evitar frustrar a legítima expectativa dos cidadãos.
O princípio da vontade presumível é um dos faróis para as hipóteses de modulação de efeitos da jurisprudência.
4.20. Dúvida jurídica razoável como excludente
O princípio da vontade presumível é uma das bases da tese de que a dúvida jurídica razoável deve ser considerada uma excludente (total ou parcial) de efeitos jurídicos desproporcionais, como a responsabilidade civil[30].
A ideia é a que o homo medius, diante de um cenário de dúvida jurídica razoável, haverá de adotar uma interpretação razoável da norma. É injusto, posteriormente, puni-lo desproporcionalmente caso a sua interpretação não venha a prevalecer na jurisprudência.
4.21. Responsabilidade civil da agência de viagens por serviços turísticos
O princípio da vontade presumível é oportuno para discutir diversas normas de caráter aberto, a exemplo das regras consumeristas de solidarismo legal entre os fornecedores.
Uma questão interessantíssima é definir se a agência de viagens deve ou não responder solidariamente com a companhia aérea no caso de danos causados aos consumidores. A busca pela vontade presumível das partes é uma das bússolas para enfrentar esse tema, respondendo a perguntas como estas:
– O homo medius, se fosse comprar uma passagem aérea por uma agência, espera que esta responda solidariamente pelos danos causados pela companhia aérea, mesmo sem ter pagado o prêmio de um seguro específico para tanto?
– As agências de viagens, mesmo ganhando um percentual pequeno a título de remuneração, haveriam de funcionar se soubessem que seriam solidariamente responsáveis por todos os danos causados pelos prestadores de serviço turísticos? Será que elas cobrariam o mesmo percentual de comissão? Será que elas iriam embutir, no preço, uma espécie de seguro para fazer frente a esse risco? Será que esse aumento do preço não iria reduzir o número de clientes e, por consequência, ameaçaria a própria viabilidade econômica de agências de viagens?
O Ministro Moura Ribeiro, em belíssimo julgado, capitaneou uma reformulação da tendência jurisprudencial, conforme este excerto[31]:
1.15.4.4. Agência de turismo e serviços turísticos
Agência de turismo deve ou não responder por danos causados ao consumidor pelos prestadores de serviço que foram contratados por sua intermediação, como a companhia aérea, a seguradora (pelo seguro-saúde) etc.?
A discussão
gira em definir o alcance da cadeia de fornecedores alcançada pela
responsabilidade civil solidária prevista no art. 7º do CDC por danos
causados aos consumidores.
A jurisprudência do STJ está em amadurecimento sobre o tema.
A tendência é excluir a responsabilidade da agência de turismo quando sua atuação tiver se limitado à venda da passagem aérea, caso em que a companhia aérea responderia, sozinha, pelos danos causados ao consumidor durante o transporte aéreo. A responsabilidade solidária da agência de turismo dar-se-ia apenas na hipótese de venda de pacote de turismo (STJ, REsp n. 1.994.563/MG, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel. p/ Acórdão Moura Ribeiro, DJe de 30/11/2022; AgRg no REsp n. 1.453.920/CE, 3ª Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe de 15/12/2014; REsp n. 758.184/RR, 4ª Turma, Rel. Min. Jorge Scartezzini, DJ de 6/11/2006).
Nesse sentido, há precedente a negar a responsabilidade solidária por extravio de bagagem em voo doméstico contra o agente de turismo cuja atividade se limitou à venda da passagem aérea. Por maioria, a 3ª Turma do STJ entendeu que o mero comerciante não pode ser responsabilizado por dano causado pela prestação de serviço de transporte aéreo. Com base nisso, a empresa Maxmilhas (cuja atividade restringe-se a intermediar a venda de passagens aéreas) foi exonerada da responsabilidade civil pelos danos que a companhia aérea Gol Linhas Aérea S/A havia causado a um consumidor pelo extravio de sua mala. O Ministro Moura Ribeiro, no seu voto, afirmou: “responsabilizar a vendedora da passagem pelo extravio da mala seria rigor extremo, com o devido respeito, pois consistiria em imputação por fato independente e autônomo, que de modo algum poderia ter sido controlado ou evitado por ela, porém unicamente pela transportadora aérea, que aliás tem responsabilidade objetiva pela bagagem que lhe é entregue (art. 734 do Código Civil)” (excerto do voto do Ministro Moura Ribeiro; STJ, REsp n. 1.994.563/MG, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel. p/ Acórdão Moura Ribeiro, DJe de 30/11/2022).
O tema, porém, não está pacificado. Esse último precedente citado, por exemplo, veicula substancioso voto vencido da Ministra Nancy Andrighi em sentido contrário. De fato, outros precedentes caminham no sentido da ampla responsabilização solidária das agências de turismo com os prestadores de serviços turísticos que foram contratados por sua intermediação, sem distinguir claramente quando há ou não venda de “pacote de turismo”. As agências respondem, portanto, por danos decorrentes de falta de segurança no hotel, de atrasos de voos, de negativa indevida de seguradora que fornece seguro-saúde durante a viagem etc. (STJ, REsp 1102849/RS, 3ª Turma, Rel. Ministro Sidnei Beneti, DJe 26/04/2012; REsp 888.751/BA, 4ª Turma, Rel. Min. Raul Araújo, DJe 27/10/2011; REsp 291.384/RJ, 4ª Turma, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, DJ 17/09/2001; REsp 287849/SP, 4ª Turma, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, DJ 13/08/2001; AgRg no REsp 850.768/SC, 3ª Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, DJe 23/11/2009).
Entendemos que a ampla cadeia de responsabilização
solidária dos fornecedores com base no art. 7º do CDC precisa ser
analisada casuisticamente, observando se a agência de turismo possui ou não
efetiva participação causal no dano causado ao consumidor pelo prestador de
serviço turístico. É preciso um mínimo de nexo causal, tomando-se por base
a teoria da causalidade adequada. Por esta teoria, só há nexo causal em
circunstância que, à luz do bom senso, seja adequada a causar o dano. Essa
solução vale-se de uma aplicação analógica do art. 13 do CDC, que condiciona a
responsabilidade do comerciante por fato do produto a hipóteses indicativas da
existência de um mínimo de nexo de causalidade. O mero fato de se tratar
de um pacote turístico é irrelevante. Pacote turístico é apenas uma
reunião de diferentes serviços turísticos conexos por um preço mais amigável. O
que importa para a definição da responsabilidade é se há ou não nexo causal com
a agência de turismo. É para esse sentido que o Ministro Moura Ribeiro parece
acenar no seu voto em importante julgado sobre a matéria (STJ, REsp n. 1.994.563/MG, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel.
p/ Acórdão Moura Ribeiro, DJe de 30/11/2022).
Assim, em regra, agências que se limitam a intermediar a venda de passagens aéreas, seguros ou outros serviços turísticos não podem ser responsabilizadas solidariamente por danos causados ao consumidor pelos prestadores desses serviços. A exceção ocorre quando tiverem vínculo causal com o dano.
Suponha-se que haja fundadas notícias de que um determinado prestador de serviço turístico está causando sérios danos aos consumidores. Se essas notícias deveriam ser conhecidas pela agência de turismo (levando em conta o padrão de diligência média exigida de uma agência de turismo) e o prestador não advertiu expressamente o consumidor acerca do risco, há nexo de causalidade a justificar a responsabilidade solidária da agência de turismo. Afinal de contas, há violação à legítima expectativa do consumidor: uma agência de turismo tem de, no mínimo, munir o consumidor das informações especializadas adequadas para a tomada de decisões.
Também há vínculo causal quando a agência de turismo integra o mesmo grupo econômico do prestador do serviço turístico. É que, nesse caso, a prestação do serviço turístico está, ainda que indiretamente, sob o comando da agência de turismo. Se, por exemplo, um consumidor compra a passagem aérea na agência de turismo da própria companhia aérea, há responsabilidade solidária da agência com a companhia por danos causados pelo serviço de transporte.
Entendimento contrário levaria à absurda criação de uma cadeia infinita de fornecedores solidariamente responsáveis. Até mesmo a empresa de limpeza dos escritórios do prestador de serviço turístico poderia ser alcançada: afinal, sem ela, talvez o consumidor não tivesse contratado o serviço.
O consumidor não ficará desguarnecido. Caso a responsabilidade civil do prestador do serviço turístico seja insuficiente, há outro caminho para o consumidor: a contratação de um seguro. Basta o consumidor pagar o prêmio para obter um seguro para o caso de dano sofrido por fato do serviço. O que não é adequado é imputar responsabilidade civil solidária à agência de turismo por danos causados pelo prestador do serviço sem haver o mínimo de nexo causal efetivo.
5 Conclusão
O princípio da vontade presumível é uma das bases do Direito Civil. Justifica diversas escolhas legislativas. Serve como farol para a atividade não apenas do aplicador da lei, mas também do legislador. Afinal de contas, as normas de Direito Civil devem, em regra, corresponder ao padrão do homo medius, dentro da milenar definição de Direito de Ulpiano: Juris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere (tais são os preceitos do direito: viver honestamente, não ofender ninguém, dar a cada um o que lhe pertence).
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Acesso em: 12 jan. 2023.
[1] Referimo-nos aqui ao conceito de topoi desenvolvido por um dos precursores da teoria standard da argumentação jurídica contemporânea, Theodor Viehweg, com sua obra “Tópica e Jurisprudência” (VIEHWEG, Theodor. Topik und Jurisprudenz. 5. ed. München: Beck, 1974. Edição Brasileira: VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Trad. de Tercio S. Ferraz Jr. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979).
[2] OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. O princípio
da proteção simplificada do luxo, o princípio da proteção simplificada do
agraciado e a responsabilidade civil do generoso. Brasília: Núcleo de
Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Dezembro/2018 (Texto para Discussão nº
254). Disponível em: <www.senado.leg.br/nepleg>. Acesso em: 4 dez. 2018.
[3] OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. O princípio
da proteção simplificada do luxo, o princípio da proteção simplificada do
agraciado e a responsabilidade civil do generoso. Brasília: Núcleo de
Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Dezembro/2018 (Texto para Discussão nº
254). Disponível em: <www.senado.leg.br/nepleg>. Acesso em: 4 dez. 2018.
[4] OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. O Princípio
do Aviso Prévio a uma Sanção no Direito Civil Brasileiro. Brasília: Núcleo
de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Maio/2019 (Texto para Discussão nº
259). Disponível em: <www.senado.leg.br/nepleg>. Acesso em: 30 mai. 2019.
[5] OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Princípio do prestígio aos familiares privilegiados e o dano moral reflexo. Revista Consultor Jurídico, 26 out. 2020. Direito Civil Atual. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-out-26/direito-civil-atual-principio-prestigio-aos-familiares-privilegidos-dano-moral-reflexo>. Acesso em: 12 jan. 2023.
[6] OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Princípio do prestígio aos familiares privilegiados e o dano moral reflexo. Revista Consultor Jurídico, 26 out. 2020. Direito Civil Atual. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-out-26/direito-civil-atual-principio-prestigio-aos-familiares-privilegidos-dano-moral-reflexo>. Acesso em: 12 jan. 2023.
[7] OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Princípio da vontade soberana do testador e o censurável “testamento magistral”. Revista Consultor Jurídico, 21 set. 2020. Direito Civil Atual. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-set-21/direito-civil-atual-principio-vontade-soberana-testador-censuravel-testamento-magistral>. Acesso em: 12 jan. 2023.
[8] OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. O princípio da harmonização internacional dos direitos reais: fundamento, adaptação de direitos reais estrangeiros, lex rei sitae, numerus clausus e outros desdobramentos. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília. Brasília, 2022. Disponível em: <https://repositorio.unb.br/handle/10482/44703#:~:text=Com%20base%20nesse%20princ%C3%ADpio%2C%20trata,dessacraliza%C3%A7%C3%A3o%20do%20lex%20rei%20sitae>.
[9] “Figuras são indivíduos idealizados que servem de parâmetro jurídico para a avaliação de uma conduta (Del Mar, 2020, pp. 330-386). O principal caso é o denominado “homem médio” (homo medius) ou, em expressão melhor, a “pessoa média”[9]. Essa figura inspira-se no “bom pai de família” do Direito Romano (bonus pater familias). É a “pessoa razoável”. Ou seja: para verificar se um indivíduo agiu com culpa, imagina-se o que uma pessoa média faria ou deveria fazer em seu lugar. É essa a raiz do conceito de diligência média (Kaser, 1955, pp. 310, 423)”. (OLIVEIRA, Carlos E. Elias; COSTA-NETO, João. Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense/Método, 2022, p. 59).
[10] Art. 170. Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade.
[11] Art. 862. Se a gestão foi iniciada contra a vontade manifesta ou presumível do interessado, responderá o gestor até pelos casos fortuitos, não provando que teriam sobrevindo, ainda quando se houvesse abatido.
[12] OLIVEIRA, Carlos E. Elias; COSTA-NETO, João. Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense/Método, 2022, p. 97.
[13] O juiz Hércules é uma figura ideal metafórica criada por Dworkin, com a capacidade de decidir os casos com uma imparcialidade e técnica sobre-humanas, tudo de acordo com a teoria da argumentação jurídica dworkiniana (MEDEIROS, Marcus Vinícius de. A decisão judicial e o problema da discricionariedade. Disponível em: <https://repositorio.ufrn.br/bitstream/123456789/28149/1/Decis%c3%a3ojudicialproblema_Medeiros_2019.pdf>. Acesso em: 12 jan. 2023.
[14] Sobre o tema, ver: OLIVEIRA, Carlos E. Elias
de. O princípio da proteção simplificada do luxo, o princípio da proteção
simplificada do agraciado e a responsabilidade civil do generoso. Brasília:
Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Dezembro/2018 (Texto para
Discussão nº 254). Disponível em: <www.senado.leg.br/nepleg>. Acesso em: 4 dez. 2018.
[15] Para aprofundamento sobre esse aspecto, ver: OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. O princípio da harmonização internacional dos direitos reais: fundamento, adaptação de direitos reais estrangeiros, lex rei sitae, numerus clausus e outros desdobramentos. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília. Brasília, 2022. Disponível em: <https://repositorio.unb.br/handle/10482/44703#:~:text=Com%20base%20nesse%20princ%C3%ADpio%2C%20trata,dessacraliza%C3%A7%C3%A3o%20do%20lex%20rei%20sitae>.
[16] Essa frase é extraível de uma das fórmulas do imperativo categórico de Kant: “O imperativo categórico é portanto só um único, que é este: Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes Tradução: Paulo Quintela. Lisboa/Portugal: Edições 70, 2007, p. 59).
[17] Para aprofundamento: (1) OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Parâmetros Analíticos do Direito Civil Constitucional: por um equilíbrio entre os discursos de Direito, Estado, Economia e Sociedade.Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília. Brasília, 2016. Disponível em: <http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/23903/1/2016_CarlosEduardoEliasdeOliveira.pdf>. Acesso em 30 de novembro de 2017; (2) OLIVEIRA, Carlos E. Elias; COSTA-NETO, João. Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense/Método, 2022, p. 105.
[18] Art. 1.749. Ainda com a autorização judicial, não pode o tutor, sob pena de nulidade:
(…)
II – dispor dos bens do menor a título gratuito;
[19] OLIVEIRA, Carlos E. Elias; COSTA-NETO, João. Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense/Método, 2022, p. 255.
[20] OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Princípio do prestígio aos familiares privilegiados e o dano moral reflexo. Revista Consultor Jurídico, 26 out. 2020. Direito Civil Atual. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-out-26/direito-civil-atual-principio-prestigio-aos-familiares-privilegidos-dano-moral-reflexo>. Acesso em: 12 jan. 2023.
[21] Para aprofundamento, ver: (1) OLIVEIRA, Carlos
E. Elias de. Considerações sobre os planos dos fatos jurídicos e a
“substituição do fundamento do ato de vontade”. Brasília: Núcleo de Estudos
e Pesquisas/CONLEG/Senado, fev./2020 (Texto para Discussão nº 270).
Disponível em: <www.senado.leg.br/nepleg>. Acesso em: 13 fev. 2020; (2) OLIVEIRA, Carlos
E. Elias; COSTA-NETO, João. Direito Civil. Rio de Janeiro:
Forense/Método, 2022, p. 288.
[22] Para aprofundamento, ver: OLIVEIRA, Carlos E.
Elias de. O princípio da proteção simplificada do luxo, o princípio da
proteção simplificada do agraciado e a responsabilidade civil do generoso.
Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Dezembro/2018 (Texto
para Discussão nº 254). Disponível em: <www.senado.leg.br/nepleg>. Acesso em: 4 dez. 2018.
[23] Súmula nº 145/STJ: “No transporte
desinteressado, de simples cortesia, o transportador só será civilmente
responsável por danos causados ao transportado quando incorrer em dolo ou culpa
grave”.
[24] Para aprofundamento: OLIVEIRA, Carlos E. Elias
de. O coronavírus, a quebra antecipada não culposa de contratos e a revisão
contratual: o teste da vontade presumível.
In: Revista Direito UNIFACS,
nº 240, 2020. Disponível em: <https://revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/view/6772/4090>.
Acesso em: 12 jan. 2023.
[25] Para aprofundamento: OLIVEIRA, Carlos E. Elias
de. O coronavírus, a quebra antecipada não culposa de contratos e a revisão
contratual: o teste da vontade presumível.
In: Revista Direito UNIFACS,
nº 240, 2020, pp. 7-11.Disponível em: <https://revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/view/6772/4090>.
Acesso em: 12 jan. 2023.
[26] Para uma visão crítica da união estável, ver: OLIVEIRA, Carlos E. Elias de Oliveira. Breves reflexões críticas à união estável. Disponível em: <http://profcarloselias.blogspot.com/2021/>. Acesso em: 12 jan. 2023.
[27] OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Princípio da vontade soberana do testador e o censurável “testamento magistral”. Revista Consultor Jurídico, 21 set. 2020. Direito Civil Atual. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-set-21/direito-civil-atual-principio-vontade-soberana-testador-censuravel-testamento-magistral>.
[28] OLIVEIRA, Carlos E. Elias; COSTA-NETO, João. Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense/Método, 2022, p. 1.525-1.528.
[29] OLIVEIRA, Carlos E. Elias de Oliveira. Entendendo a formação das leis: A interação entre os Três Poderes, o “boicote hermenêutico” e o “justiçamento de transição”. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/arquivos/2022/9/0A1AA07B7B3541_leis.pdf>. Acesso em: 12 jan. 2023.
[30] Para aprofundamento, ver: OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Coronavírus, responsabilidade civil e honorários sucumbenciais. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-abr-10/direito-civil-atual-coronavirus-responsabilidade-civil-honorarios-sucumbenciais>. Acesso em: 12 jan. 2023.
[31] OLIVEIRA, Carlos E. Elias; COSTA-NETO, João. Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense/Método, 2023, p. 793.
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