A palavra código, usada para referir-se a um conjunto de normas jurídicas, sugere, em um primeiro giro, que se trata de um tipo de construção presente há tempos na História do Direito, bastando, para tanto, lembrar que os livros de História do Direito citam, entre outros, o seguintes “códigos”: Código de Hamurabi, Código de Ur-Nammu, Código Hitita, Lei das XII Tábuas, Codex Theodosiano, Corpus Juris Civilis.
Há em comum entre eles a circunstância de que nenhum se enquadra no sentido moderno de código, tal como empregado no campo jurídico. E aqui vale uma observação importante: posicionado em uma perspectiva histórica, o sentido de código, como, de resto, de qualquer criação humana, deve ser contextualizado, e, pois, desnaturalizado.
Em perspectiva moderna, o código […] “representa muito mais do que um conjunto de regras, mas um conjunto sistemático e unitário de normas jurídicas que enfeixam a disciplina fundamental de um determinado ramo do direito.” (p. 39) Há que se destacar que foi o Código Civil de Napoleão de 1804 aquele que inaugurou a nomeada era das grandes codificações, tendo refletido a ideologia revolucionária que rompeu com o ancién régime e, por isso, a jurisprudência, que era construída por magistrados e advogados representantes desse velho regime, tinha que ser banida.” (DELGADO, 2011, p. 24)
Ao refletir acerca do sentido histórico do código, sobretudo do código civil, enquanto nova modelagem das normas jurídicas em ambiente moderno, disse Orlando Gomes:
Um Código é, em sua noção histórica, um sistema de regras formuladas para reger, durável e plenamente, a conduta setorial de sujeitos de direito. O Código Civil foi o estatuto orgânico da vida privada, elaborado para dar solução a todos os problemas de vida de relação dos particulares. (…) O mundo dos Códigos foi o mundo da segurança, feliz observação de Natalino Irti, quando os valores do liberalismo podiam ser traduzidos numa sequência ordenada de artigos, para ‘proteção das liberdades civis do indivíduo na sua vida privada contra as indébitas ingerências do poder político’. Desta necessidade de garantia – assinala o autor citado – nasceu a ideia de imutabilidade da legislação civil e da perenidade dos institutos jurídicos, principalmente a propriedade e o contrato (GOMES, 2000, p. 68).
Como se pode ver, além de ser definido como uma lei instituída sob a marca da perfeição, da completude, uma espécie de constituição do direito privado, o código civil aparece também como uma lei criada para regular as mais diversas relações jurídico-civis dos sujeitos de direito, dada a sua vocação globalizante, monossistemática.
Portanto, o movimento de codificação instaurado no século XIX funda-se na perspectiva segundo a qual o código civil assume papel constitucional de regulação integral das relações jurídico-privadas, voltadas, fundamentalmente, para a proteção dos interesses individuais (propriedade, contrato), assumindo o indivíduo a condição de valor fundamental numa perspectiva jus filosófica individualista e voluntarista, com o Estado, num viés liberal de mero garante das referidas relações privadas, assim acobertadas pelo valor segurança. Pode-se, portanto, constatar que uma perspectiva de sujeito de direito iluminista referenciou todo o movimento de codificação do século XIX, a qual pode ser assim expressa:
O sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo “centro” consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo – contínuo ou “idêntico” a ele – ao longo da existência do indivíduo. O centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa (HALL, 1999, p. 10-11).
Além de se tratar de uma noção de sujeito de direito pensado fora de uma perspectiva histórica, autocentrado, essencial, a postura epistemológica e hermenêutica que emerge em torno do movimento de codificação, em seu alvorecer na França do início do séc. XIX, é bem captada pela denominada Escola da Exegese:
Enquanto escola hermenêutica de estrito legalismo ou dogmatismo, a Escola da Exegese adequou-se satisfatoriamente à então nova realidade jurídica instaurada a partir da codificação, haja vista que, sendo constituída pelos comentadores dos códigos de Napoleão, em especial o Code, tal escola apresentava como fundamento a crença na perfeição do sistema normativo, a qual estaria baseada na completude da lei e em sua consequente capacidade de solução de todos os problemas jurídicos, sendo a lei escrita a única fonte do Direito (expressão do Direito Natural), e tendo como método de interpretação o literal, voltado para descobrir-se a vontade do legislador – mens legislatoris” (HERKENHOFF, 2004, p.35).
Dentro desse contexto, o código representa estabilidade, segurança e completude, razão por que ganharam força perspectivas de interpretação que compartilham de tais certezas jurídicas, o que se harmoniza com o que propôs a Escola da Exegese, tal como acima representada.
Oportuno destacar que o Code de 1804, dado o seu caráter inaugural das grandes codificações, assumiu também um sentido de exemplaridade, sobretudo em relação ao seu conteúdo, aos seus fundamentos jurídicos, políticos e filosóficos, exercendo efetiva influência na modelagem do ordenamento jurídico tanto de países europeus, como de outras regiões do mundo, como o próprio Brasil. Mas essa é discussão para outro texto. Até lá.
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Referências
DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação e recodificação do direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2011.
GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomáz Tadeu da Silva. Rio de Janeiro: DP & A, 1999.
HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.