DOAÇÃO COM ENCARGO E A EFICÁCIA CONTRA TERCEIROS E O REGISTRO DE IMÓVEIS.

DOAÇÃO COM ENCARGO E A EFICÁCIA CONTRA TERCEIROS E O REGISTRO DE IMÓVEIS.

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Carlos Eduardo Elias de Oliveira

(Professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na Universidade de Brasília – UnB –, no IDP/DF, na Fundação Escola Superior do MPDFT – FESMPDFT, no EBD-SP, na Atame do DF e de GO e em outras instituições.

Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Advogado/Parecerista, ex-Advogado da União e ex-assessor de ministro STJ.

Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiroE-mail: carloseliasdeoliveira@yahoo.com.br)

EMENTA

1. Deveres jurídicos lato sensu ou obrigação lato sensu podem ser divididos em: (1) dever jurídico stricto sensu, também chamado de obrigação stricto sensu, e (2) ônus, também chamado de encargo ou modo. (capítulo 2.1.).

2. Doação com encargo não se confunde com um contrato bilateral: o descumprimento do encargo não credencia execução forçada nem pleito de indenização, mas apenas a revogação. Isso vale mesmo para encargos em favor de terceiros ou do interesse geral, conforme interpretação ora defendida do art. 553 do CC (capítulos 2.1. e 2.2.).

3. Ao potencial do direito real de propriedade em ser comprimido ou elastecido dá-se o nome de princípio (ou de atributo, ou de característica) da plasticidade ou da elasticidade. Fala-se metaforicamente em “plasticidade” por enfatizar que a propriedade admite ser modelada de diversas formas (ex.: propriedade com condição resolutiva; propriedade onerada com usufruto; etc.) (capítulo 2.3.).

4. Os poderes inerentes à propriedade podem ser desmembrados por meio dos direitos reais sobre coisa alheia ou podem ser restringidos por intermédio dos elementos acidentais do negócio jurídico (capítulo 2.4.).

5. Em razão da elasticidade ou plasticidade do direito real de propriedade, é possível classificar a propriedade quanto à sua plenitude (capítulo 2.5.):

a) propriedade plena;

b) propriedade menos plena: pode ser subdividida em:

b.1) propriedade restrita;

b.2) propriedade temporária: pode ser subdivida em:

                        b.2.1.) propriedade revogável

                        b.2.2.) propriedade resolúvel

                        b.2.3.) propriedade fiduciária

6. Apesar de entendermos que a legislação deva ser modificada, o melhor entendimento é o de que o encargo, por si só, não tem eficácia real (eficácia contra terceiros) e, por isso, não deve ser noticiado na matrícula do imóvel, salvo se tiver sido pactuado expressamente como uma condição suspensiva ou resolutiva. Há, porém, controvérsia sobre o assunto. Diante da existência de controvérsias, a recomendação é que, na prática, os particulares prevejam expressamente o encargo como uma condição suspensiva ou resolutiva no instrumento contratual, pois, nessa hipótese, não haverá controvérsia sobre a viabilidade de ingresso disso na matrícula do imóvel quando se tratar de negócio imobiliário (capítulo 3).

No Brasil, sempre se adotou a solução do italiano Gabba (e não a do francês Roubier) em matéria de proteção do direito adquirido, da coisa julgada e do ato jurídico perfeito (capítulo 2.3.).

7. Normas que positivam regras anteriores baseada em princípios não podem ser aplicadas retroativamente diante de algum óbice constitucional. Todavia, o juiz, analisando o direito anterior, pode chegar ao mesmo resultado prático, de modo que a nova lei lhe pode ser um “estímulo hermenêutico”. É sob essa ótica que se deve analisar as leis emergenciais que tratam de regras de resolução de contratos, a exemplo da Medida Provisória nº 925/2020 bem como do vigente art. 8º e dos vetados arts. 6º e 7º da Lei do RJET (capítulos 3.3. e 4).

1. INTRODUÇÃO

O encargo previsto em uma escritura pública de doação deve ou não constar na matrícula do imóvel? Esse encargo tem eficácia contra terceiros? Essa é a questão principal sobre a qual ronda o presente artigo.

Antes de enfrentar essa controversa questão, é fundamental delimitar o que é o encargo, tratar da doação com encargo e identificar a classificação da propriedade quanto à plenitude.

2. CONCEITOS IMPORTANTES

2.1. Diferença entre obrigação e ônus

Deveres jurídicos lato sensu ou obrigação lato sensu podem ser divididos em: (1) dever jurídico stricto sensu, também chamado de obrigação stricto sensu, e (2) ônus, também chamado de encargo ou modo. Na legislação, quando se emprega o verbete “obrigação” ou “dever”, geralmente está-se a referir ao sentido estrito dessas palavras.

O primeiro é aquele cujo descumprimento atrai dever de indenizar e enseja meios de execução forçada. Por exemplo, ter de respeitar a propriedade alheia ou de pagar o preço pactuado em contrato são exemplos de deveres (ou obrigações), por exporem o inadimplente a sanções jurídicas, com inclusão de meios de execução forçada, como astreintes, penhora etc.

O segundo é aquele cujo descumprimento apenas acarreta a perda de uma situação jurídica ou que impede sua aquisição. Ônus não acarreta execução forçada nem dever de indenizar, por ser apenas uma faculdade. Carnelutti foi quem deu a melhor definição do conceito de ônus, que representa uma faculdade deferida a um sujeito de, se quiser (é faculdade! – reitere-se o óbvio), exercê-la como condição para obter um benefício jurídico.

É o que sucede, por exemplo, no “dever” do credor de habilitar o seu crédito no inventário para receber. Se ele não habilitar o crédito, ele perde a oportunidade de fazê-lo naquele feito. O titular do ônus não pode ser compelido a praticar um ato, mas, se não o fizer, deixará de aproveitar-se de determinados resultados favoráveis (LUMIA, Giuseppe. Lineamenti di teori e ideologia del diritto. 3º ed. Milano: Giuffré, 1981 – Tradução em português, com adaptações e modificações pelo Professor Alcides Tomasetti Jr., Teoria da relação jurídica, 1999, mimeo, p. 14).

A caução para participar de licitação é outro exemplo de ônus. Ninguém é obrigado a participar de licitação, mas, se quiser, deve caucionar. Caso não o faça, o sujeito só sofrerá uma consequência: a não obtenção do direito de participar da licitação. Ele não estará exposto a indenização, a punições nem a qualquer meio de coerção.

No ônus, o sujeito está “livre de qualquer coação e também de qualquer dever de indenização na hipótese de não-cumprimento da exigência, contentando-se, em vez disso, com sanções mais amenas. Essa sanção mais amena geralmente consiste na perda de uma melhor posição jurídica ou em outra desvantagem jurídica qualquer” (GRAU, Eros Roberto. Nota sobre a distinção entre obrigação, dever e ônus. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. São Paulo, v. 77, jan. 1982, p. 177-183. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/66950). É diferente do que sucede no caso de “dever em sentido estrito” (ou de obrigação), pois, neste, o sujeito está sujeito a sanções no caso de descumprimento.

O domínio da nomenclatura técnico-jurídica permite entender as consequências das normas jurídicas.

Quando o Código Civil trata de situações jurídicas de ônus, não se poderá – salvo disposição em contrário – invocar qualquer meio de execução forçada, pois a única consequência negativa contra o sujeito é a não obtenção ou a perda de um direito. Ninguém, por exemplo, pode ser constrangido a fazer um testamento, pois esse direito envolve apenas um ônus, e não um dever: o seu titular apenas não obterá o direito de determinar a distribuição de seus bens após a morte se não fizer um testamento.

Ao se tratar, porém, de obrigações, o Direito Civil entrega o dever aos constrangimentos jurídicos destinados a forçar o adimplemento. Nesse sentido, quem se compromete a pagar uma quantia em um contrato de compra e venda assume um dever, de modo que o seu inadimplemento o exporá a um carrossel de sanções (indenização por perdas e danos, execução judicial forçada, cláusula penal etc.).

2.2. Doação onerosa, modal, com encargo ou gravada (donatione sub modo)

Sediada no art. 553 do CC, a doação onerosa é a que impõe ao donatário um encargo. Encargo pode ser um dever em benefício do doador, de terceiro ou do interesse geral. A questão é saber o seguinte: o que acontece se o donatário descumprir o encargo?

Entendemos que encargo não pode ser equiparado a uma obrigação. Doação com encargo não se confunde com um contrato bilateral. Dar um veículo com o encargo de que o donatário tenha de levar o filho do donatário à escola por um ano não é o mesmo que celebrar um contrato de transporte escolar por um ano pagando o preço pela entrega de um veículo. As consequências jurídicas têm de ser diferentes.

Temos que a diferença está exatamente nas consequências geradas pelo descumprimento.

No caso de encargo, ao contrário do que se dá com as obrigações em geral, o seu descumprimento não autoriza execuções forçadas nem indenizações, mas apenas a perda de um direito. Por isso, no caso de descumprimento do encargo, é cabível a revogação da doação como única sanção. Não é devido pleito algum de indenização ou de execução forçada.

O pedido de revogação pode ser feito, em qualquer caso, pelo doador, sem prejuízo do terceiro em proveito de quem se revertia o encargo.

Se o encargo for em prol do doador, só este pode pedir a revogação.

Se em prol de terceiro, o doador ou o terceiro podem pleitear a revogação.

Por fim, se o encargo for em prol do interesse geral, o Ministério Público pode pleitear a revogação, desde que o doador já tenha falecido sem tê-lo feito.

Essa é a interpretação que temos por adequada do art. 553 do CC, que, ao “mencionar expressões como “o donatário é obrigado a cumprir os encargos” ou  “o Ministério Público pode exigir sua execução”, está, na verdade, referindo-se à viabilidade de eles pleitearem a única sanção cabível no caso de descumprimento de um encargo: a revogação da doação.

Entendemos que a doação aí se reverterá em favor do doador ou do seu espólio.

Aliás, Clóvis Bevilaqua, ao lembrar que “a inexecução do encargo dá origem a uma condictio causa data, causa non secuta, acena favoravelmente a esse entendimento. Afinal de contas, essa condictio era a ação empregada no direito romano para a retomada de uma coisa no caso de frustração da finalidade com a qual ela havia sido transferida (Bevilaqua, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979, p. 282).

Interpretação diversa acabaria por equiparar a doação com encargo a um contrato bilateral qualquer, transformando o encargo em uma contraprestação, o que seria indevido[1].

De mais a mais, o encargo em benefício do próprio donatário (ex.: doação de dinheiro para que o donatário compre um imóvel para si) é mero conselho, não exigível judicialmente. O próprio art. 553 do CC não menciona o encargo a favor do donatário como exigível[2].

Ademais, a doação só será onerosa até o limite do valor do encargo. Se o bem doado for mais valioso do que as despesas decorrentes do encargo, o excedente é doação pura (art. 540, CC). A consequência prática disso é que, em relação à parte onerosa da doação, é cabível falar em efeitos próprios dos contratos onerosos, como a incidência dos vícios redibitórios (art. 441, parágrafo único, CC) e da evicção (art. 447, CC). Entendemos também que a doação onerosa não é suscetível de colação até o valor do encargo, pois só puras liberalidades são colacionáveis (arts. 544 e 2.002, CC).

2.3. Princípio da plasticidade ou da elasticidade do direito real de propriedade

O direito real de propriedade é o centro de todo o sistema dos direitos reais, pois os demais orbitam em torno dele. Ele é a matriz de todos os demais direitos reais, os quais acabam incidindo sobre a propriedade. Daí classificarem-se os direitos reais em duas categorias: os sobre coisa própria e os sobre coisa alheia.

O direito real de propriedade é o direito real sobre coisa própria por excelência. Embora o direito real de laje também seja um direito real sobre coisa própria no nosso entendimento[3], a laje não passa de uma variação do direito real de propriedade com um outro nome de batismo.

Os demais direitos reais (usufruto, servidão, hipoteca etc.) são direitos reais sobre coisa alheia exatamente por serem meras compressões temporárias do direito real de propriedade, desdobrando ou restringindo os poderes inerentes. O usufruto, por exemplo, desdobra os poderes de usar e fruir em favor do usufrutuário. Ao se onerar a propriedade com um direito real sobre coisa alheia, a propriedade é contraída. Quando o direito real sobre coisa alheia se extingue, a propriedade se dilata.

As compressões sobre a propriedade não decorrem apenas de direitos reais sobre coisa alheia. Os elementos acidentais do negócio jurídico (termo, condição e encargo) também podem fazer essa compressão, desde que tenham sido pactuados no ato de aquisição da propriedade. Não pode o proprietário, sozinho, gravar a própria propriedade com um desses elementos por falta de previsão legal.

Enfim, o direito real de propriedade, ao ser comprimido (tornando-se uma propriedade menos plena), sempre tende a retornar ao seu estado de plenitude, ou seja, sempre tende a voltar a ser uma propriedade plena, à semelhança do que acontece com uma liga elástica (a famosa “liguinha”), que sempre tende a voltar ao seu estado primitivo após ser esticada. A esse potencial do direito real de propriedade em ser comprimido ou elastecido dá-se o nome de princípio (ou de atributo, ou de característica) da plasticidade ou da elasticidade. Fala-se metaforicamente em “plasticidade” por enfatizar que a propriedade admite ser modelada de diversas formas (ex.: propriedade com condição resolutiva; propriedade onerada com usufruto; etc.).

2.4. Poderes inerentes à propriedade e a plasticidade

A plasticidade diz respeito a flexibilizações que podem ser feitas nos poderes inerentes à propriedade: o poder de usar (ius utendi), o poder de fruir (ius fruendi), o poder de dispor (ius abutendi) e o poder de perseguir a coisa nas mãos de terceiro (ius persequendi). Eles estão previstos no art. 1.228, CC. Quem é titular do direito real de propriedade tem esses poderes (ou faculdades) sobre a coisa. Essas flexibilizações podem ocorrer especialmente por meio: (1) dos direitos reais sobre coisa alheia ou (2) elementos acidentais do negócio jurídico (termo, condição e encargo).

De um lado, por intermédio dos direitos reais sobre coisa alheia, esses poderes inerentes à propriedade podem ser desmembrados (destacados, arrancados) das mãos do proprietário em favor do titular desse direito real sobre coisa alheia.

Por exemplo, ao se instituir um direito real de usufruto sobre um imóvel, os poderes de usar, fruir e parcialmente o de perseguir a coisa são destacados da propriedade e revertidos em favor do usufrutuário. Só sobrará ao proprietário o poder de dispor e parcialmente o de perseguir a coisa. O usufrutuário ficará com os poderes desmembrados[4] de usar, de fruir e, parcialmente, de dispor. O direito real de propriedade, assim, ficou limitado, ficou amassado, ficou comprimido. Ele, todavia, tenderá a voltar ao seu estado inicial de plenitude quando, no futuro, o direito real de usufruto se extinguir. Outro exemplo é o direito real de hipoteca, que desmembra parcialmente o poder de dispor da coisa: o proprietário ainda poderá vender o imóvel hipotecado, mas o adquirente estará exposto aos efeitos de uma execução hipotecária no caso de inadimplemento da dívida garantida.

Em regra, os direitos reais sobre coisa alheia recaem apenas sobre o direito real de propriedade, pois, além de essa ser a natureza desses direitos reais, a legislação os disciplina sobre esse pressuposto. Assim, não se pode falar em usufruto sobre outro usufruto. Todavia, excepcionalmente, quando a lei autorizar, é possível que um direito real sobre coisa alheia recai sobre um outro congênere, como na hipótese do direito real de hipoteca, que pode recair sobre o direito real de superfície por força do art. 1.473, X, CC.

De outro lado, por meio dos elementos acidentais do negócio jurídico, os poderes inerentes à propriedade podem ser flexibilizados também. Nesse caso, não se trata de um desmembramento, pois esses poderes inerentes não estão sendo revertidos em prol de um terceiro. Trata-se apenas de restrições ao direito real de propriedade. Assim, quando alguém adquire um imóvel sob condição resolutiva, ele terá uma propriedade que se extinguirá com o advento da condição resolutiva. Os seus poderes inerentes à propriedade são temporários. Igualmente, quem adquire um imóvel por meio de uma doação com encargo poderá vir a perder a propriedade se descumprir o encargo.

Essas outras restrições podem recair também sobre direitos reais sobre cosia alheia, salvo se houver proibição expressa ou se for contrário à natureza do direito real. Por exemplo, o direito real de usufruto pode estar sujeito a um termo ou a uma condição resolutivos. Pode também está restrito por um encargo. Não há proibição legal nem contrariedade com a natureza do direito real de usufruto.

2.5. Classificação da propriedade quanto à plenitude

Em razão da elasticidade ou plasticidade do direito real de propriedade, é possível classificar a propriedade quanto à sua plenitude:

a) propriedade plena;

b) propriedade menos plena: pode ser subdividida em:

b.1) propriedade restrita;

b.2) propriedade temporária: pode ser subdivida em:

         b.2.1.) propriedade revogável

         b.2.2.) propriedade resolúvel

         b.2.3.) propriedade fiduciária

Propriedade plena ou ilimitada é aquela cujo titular exercer plenamente todos os poderes inerentes à propriedade, sem qualquer limitação, nem mesmo temporal. Também pode ser chamada de propriedade alodial. A regra geral é a que a propriedade é plena, conforme art. 1.231 do CC, que afirma que “a propriedade presume-se plena e exclusiva, até prova em contrário”. Portanto, a propriedade menos plena é exceção.

Propriedade menos plena é aquela cujo titular tem limitações substanciais ou temporais para exercer os poderes inerentes à propriedade em razão de um fato jurídico. As faculdades de usar, fruir ou dispor está com alguma restrição: ou foi desmembrada em favor de terceiros, ou se extinguirá com algum evento futuro, ou seu exercício está condicionado a alguma conduta prévia etc. Metaforicamente, é um direito real de propriedade aleijado ou, para se lembrar dos romanos antigos, com uma lepra. A propriedade menos plena pode ser restrita ou temporária.

A propriedade é restrita quando o titular do direito sofre limitações substanciais para exercer os poderes inerentes à propriedade. Isso ocorre quando há o desmembramento de poderes inerentes à propriedade, o que pode ocorrer por conta de direitos reais sobre coisa alheia, de direitos obrigacionais com eficácia real ou de constrições judiciais. Assim, um imóvel gravado por um direito real de hipoteca, de usufruto ou de servidão é exemplo de propriedade restrita. Também o são um imóvel penhorado. Nesse caso, a regra geral é que se aplique o princípio da prevalência, resumido no brocardo prior in tempore, potio in iure: o ônus ou o gravame real anterior prevalece sobre o posterior. Assim, uma penhora averbada na matrícula prevalecerá sobre posterior registro de compra e venda.

A propriedade é temporária quando ela poderá a vir se extinguir no futuro por conta do advento de um fato jurídico resolutivo. A propriedade temporária pode ser revogável ou resolúvel.

A propriedade resolúvel é aquela que se extingue pelo advento de um termo resolutivo ou pelo implemento de uma condição resolutiva. No caso, por exemplo, de uma doação sob condição resolutiva, o donatário terá uma propriedade resolúvel: se a condição resolutiva se implementar, a propriedade se extingue.

Esses elementos acidentais (termo e condição) já são previamente conhecidos por estarem previstos no negócio que gerou o direito real de propriedade. No exemplo acima, a condição resolutiva estará noticiada na matrícula do imóvel para terceiros tomarem ciência. Por isso, o art. 1.359 do CC estabelece que, no caso da propriedade resolúvel, a extinção da propriedade é retroativa até a data da instituição da cláusula resolutiva apenas para o efeito de extinguir direitos reais contraditórios. Trata-se do que chamamos de “efeito dominó”. Assim, ainda no exemplo acima da doação sob condição suspensiva, se o donatário vender o imóvel para um terceiro e se a condição resolutiva posteriormente se implementar, haverá o “efeito dominó”: a doação se extinguirá e, em consequência, a posterior venda também. O terceiro perderá o imóvel. Não há injustiça nisso, pois o terceiro adquirente já sabia que estava a comprar uma propriedade menos plena, ou seja, uma propriedade leprosa: a matrícula do imóvel já noticiava a existência da condição resolutiva.

A propriedade revogável ou ad tempus é aquela que se extingue por outra causa superveniente que não seja o implemento de uma condição ou termo resolutivos. Nesse caso, a extinção não tem efeito retroativo. O efeito é ex nunc. Não há extinção de direitos anteriores. Só sobrará ao beneficiário da extinção o direito de pleitear uma coisa similar ou o valor equivalente, tudo conforme art. 1.360, CC. Por exemplo, se João doa um imóvel a Manoel, que, a seu turno, vende o imóvel a Artur, e se, após isso, Manoel pratica um ato de ingratidão contra João a autorizar a revogação da doação na forma do art. 555 do CC, não haverá o “efeito dominó”: Artur continuará como dono do imóvel. Não havia aí uma condição ou termo resolutivo expressos na matrícula do imóvel. A propriedade é revogável. Só sobrará ao João o direito de exigir que Manoel pague-lhe o valor do imóvel.

Em poucas palavras, a diferença prática entre a propriedade resolúvel e a revogável é a de que só naquela há o “efeito dominó”.

A propriedade fiduciária nada mais é do que uma espécie de propriedade resolúvel com a particularidade de decorrer de uma alienação fiduciária em garantia. A alienação fiduciária em garantia é a transferência de uma coisa sob a condição resolutiva consistente no adimplemento de uma dívida. Assim, se, como garantia de um empréstimo que tomei, posso transferir ao banco a propriedade do meu veículo até que eu pague integralmente as prestações. O banco se torna proprietário do bem, mas sob uma condição resolutiva: o pagamento integral das prestações dos empréstimos. A propriedade fiduciária está genericamente disciplinada nos arts. 1.361 e seguintes do Código Civil. Todavia, quando se tratar de imóvel, a regência será dada, de modo principal, pela Lei nº 9.514/97, caso em que, nesse ponto, o Código Civil terá aplicação subsidiária (art. 1.367, CC). Quando se tratar de móvel, além do CC, deve-se aplicar também o Decreto-Lei nº 911/69 e, no caso de a dívida garantida ter sido contraída no âmbito do mercado financeiro e de capitais, deve-se aplicar também o art. 66-B da Lei de Mercado de Capitais (Lei nº 4.728/65)[5].

3. DOAÇÃO COM ENCARGO: PROPRIEDADE RESOLÚVEL OU REVOGÁVEL

De posse de todos os conceitos acima, podemos finalmente enfrentar a questão central deste artigo: no caso de doação com encargo, a propriedade adquirida pelo donatário é resolúvel ou revogável? O tema não é pacífico[6].

De um lado, como o art. 1.359 do CC não faz alusão ao encargo, numa interpretação literal conduziria a entender que a doação com encargo geraria uma propriedade revogável (art. 1.360, CC). É que a propriedade resolúvel não abrange propriedade com encargo, salvo se o encargo tiver sido previsto como condição resolutiva expressamente, caso em que ele se enquadrará no art. 1.359 do CC. Encargo sem ser citado como condição resolutiva não ingressaria na matrícula. Ele geraria apenas uma propriedade ad tempus (art. 1.360 do CC). Um dos motivos para tanto é que os arts. 121 e 137, não prevê o encargo como condição resolutiva expressamente. Sob essa ótica, se o donatário descumprir o encargo e se ele já tiver vendido o imóvel a terceiro, esse terceiro não perderia a propriedade por não haver “efeito dominó”. O outro motivo é que o encargo não teria eficácia real por não estar contemplado no art. 1.359 do CC, salvo se ele tiver sido previsto expressamente como uma condição resolutiva. O “efeito dominó” depende de previsão legal expressa por ser uma limitação ao direito real de propriedade, tudo em consonância com o princípio da taxatividade dos direitos reais. Essa é a primeira corrente, que, pelo que se infere[7], conta com a adesão de Marco Aurélio Bezerra de Melo (2020, p. 1031), Francisco Eduardo Loureiro (2012, p. 1.410) e Laffayette Rodrigues Pereira (2013-A, p. 103). Trata-se da corrente majoritária.

A favor dessa corrente, pode-se registrar que, ao conceituar encargo como uma restrição imposta a uma vantagem criada em um negócio jurídico, Clóvis Bevilaqua afirma que ele não necessariamente assumirá a forma de uma condição, salvo se “essa for a vontade do estipulante” e que, na dúvida “se se trata de condição ou encargo, supor-se-á de preferência que a modalidade do negócio jurídico é um encargo”[8].

De outro lado, há uma segunda corrente, segundo a qual a doação com encargo gera propriedade resolúvel, de modo que, com o descumprimento do encargo, poderá haver o “efeito dominó” nos termos do art. 1.359 do CC. São quatro os motivos: (1) assim como se dá com o advento do termo e o implemento da condição resolutiva, o descumprimento do encargo resolve o negócio jurídico, pois isso está implícito na disciplina dada aos elementos acidentais do negócio jurídico nos arts. 121 ao 137 do CC; (2) quando se trata de doação de imóvel, os elementos acidentais – termo, condição e encargo – têm de ser noticiados na matrícula do imóvel, de maneira que o terceiro adquirente tem ciência da restrição e, por isso, está a assumir o risco de adquirir um imóvel onerado por um encargo; (3) se a doação com encargo caracterizar uma propriedade revogável, o donatário poderá “burlar” facilmente o encargo, vendendo a coisa a terceiro, que não sofreria nenhum “efeito dominó” com o posterior descumprimento do encargo; (4) o encargo, com a particularidade de estar relacionado a um dever imposto à parte, deve ser equiparado a uma condição resolutiva, salvo quando, nos termos do art. 136 do CC, for “expressamente imposto no negócio jurídico, pelo disponente, como condição suspensiva”, razão por que o encargo pode ser tido como abrangido pelo texto do art. 1.359 do CC.

O fato de os arts. 121 ao 136 do CC não preverem textualmente o efeito resolutivo do encargo seria irrelevante, pois o que importaria é que esses preceitos disciplinam os elementos acidentais do negócio jurídico. Se o encargo se relacionar a imóvel, ele teria de ser noticiado na matrícula, à semelhança de qualquer outro elemento acidental dos negócios jurídicos, salvo pacto expresso em sentido contrário pelas partes. Não fosse assim, e o termo resolutivo também não poderia ser noticiado na matrícula, pois também inexiste previsão textual nos arts. 121 ao 136 do CC contemplando o efeito resolutivo desse tipo de termo. O legislador não afirma o óbvio. Além do mais, assentado na obviedade de que o descumprimento do encargo tem um efeito resolutivo, foi explícito em dizer que o encargo só poderia ter um efeito suspensivo se ele tivesse sido previsto expressamente como tal no negócio (art. 136, CC).

O tema, porém, é controverso.

No âmbito da CGJ/SP, inclinou-se a favor da segundo corrente ao se entender que faltou boa técnica a um oficial de Registro de Imóveis que deixou de noticiar na matrícula a existência de um encargo aposto em uma doação, embora tal imperfeição não seja capaz de gerar uma punição disciplinar, tudo conforme parecer do Juiz Alberto Gentil Pedroso de Almeida, acolhido pelo Corregedor-Geral da Justiça Ricardo Anafe[9].

Ao nosso sentir, apesar de entendermos que o mais adequado seria que a segunda corrente prevalecesse, infelizmente o legislador a rejeitou, pois não contemplou o encargo como apto a ensejar o “efeito dominó” do art. 1.359 do CC. Pensamos que o legislador deveria passar a incluí-lo aí, com a ressalva de que as partes podem, se quiser, afastar essa eficácia contra terceiros (afastar a eficácia real).

Portanto, o encargo, se não tiver sido previsto como condição resolutiva expressamente, não pode ingressar na matrícula do imóvel no Cartório por não ter eficácia contra terceiro.

De qualquer forma, diante da existência de controvérsias, a recomendação é que, na prática, os particulares prevejam expressamente o encargo como uma condição suspensiva ou resolutiva no instrumento contratual, pois, nessa hipótese, não haverá controvérsia sobre a viabilidade de ingresso disso na matrícula do imóvel quando se tratar de negócio imobiliário.

O tabelião de notas, ao lavrar as escrituras de doações de imóveis com encargo, deve atentar para esse fato e, assim, deve deixar expresso se o encargo será ou não uma condição resolutiva com eficácia real.


Agradecemos aos Professores Fernando Campos Scaff, Cláudio Luiz Bueno de Godoy, Marco Fábio Morsello, Marcel Simões e Rodrigo de Lima Vaz pela condução da disciplina “Temas Atuais de Direitos Reais” na USP, da qual tenho a honra de participar como ouvinte em complemento ao doutorado que tenho realizado na UnB. Deixo também especial agradecimentos a todos os alunos dessa disciplina, com destaque aos amigos Francisco José de Almeida P. F. Costa Júnior, Isabela Canesin e Leonardo Relvas por provocado os debates sobre o assunto tratado no presente artigo.

[1] Realçamos que há respeitados doutrinadores a admitirem apenas o doador como idôneo a pleitear a revogação da doação, de maneira que terceiros em favor dos quais tenham sido estipulado o encargo poderiam valer-se dos meios de execução forçada. Nesse sentido é Carlos Roberto Gonçalves (Direito Civil, volume 3: contratos e atos unilaterais. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 285).

[2] Nesse sentido é Carlos Roberto Gonçalves (Direito Civil, volume 3: contratos e atos unilaterais. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 285).

[3] _______________. O que é o direito real de laje à luz da lei 13.465/2017 (parte 1). Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-set-18/direito-civil-atual-direito-real-laje-luz-lei-134652017-parte. Data de publicação: 18 de setembro de 2017.

[4] É atécnico afirmar que o usufrutário tem alguns poderes INERENTES à propriedade, pois ele não é proprietário. Ele, na verdade, tem alguns poderes DESMEMBRADOS da propriedade.

[5] Para uma visão panorâmica, reportamo-nos a este artigo nosso: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Alienação Fiduciária em Garantia: reflexões sobre a (in)suficiência do cenário normativo e jurisprudencial atual. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, ago/2013 (Texto para Discussão nº 132). Disponível em: www.senado.leg.br/nepleg. Acesso em 5 de agosto de 2013.

[6] Em respeitadas obras, não encontramos enfrentamento direto à questão. Clóvis Bevilaqua, ao comentar o art. 648 do CC/1916 (que corresponde ao art. 1.360 do CC), estabelece que a propriedade “ad tempus” se refere a casos em que a propriedade “se resolve por causa superveniente, isto é, que não está no próprio título” (Bevilaqua, 1979, p. 1110) e, ao citar exemplo, limita-se à revogação da doação por ingratidão. Ele não faz menção à hipótese de revogação de doação por descumprimento de encargo. Igual silêncio encontramos na obra de Washington de Barros Monteiro e de Carlos Alberto Dabus Maluf (2012, pp. 334-339) bem como na obra de Virgilio de Sá Pereira, que escreveu um dos volumes de uma das mais prestigiosas coleções de Direito Civil do século XX, coordenada por Paulo de Lacerda. Virgilio de Sá Pereira, ao citar exemplos de propriedade ad tempus, não arrola a doação com encargo, mas apenas fatos resolutivos que não estavam consignados no título, como a revogação por ingratidão, a resolução por ação redibitória e a resolução por ação de petição de herança (1924, p. 456).

[7] Diz-se infere, porque os autores citam a doação com encargo como exemplo de propriedade ad tempus sem fazer maiores aprofundamentos.

[8] BEVILAQUA, Clovis. Teoria Geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Paulo de Azevedo Ltda, 1955, p. 223.

[9] CGJSP, Processo Administrativo Disciplinar nº 0027775-47.2019.8.26.0576, Rel. Ricardo Mair Anafe, DJ 17/09/2020.