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ANDERSON SCHREIBER
Professor Titular de Direito Civil da UERJ. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ (Mestrado e Doutorado). Doutor em Direito Privado Comparado pela Università degli studi del Molise, Itália.
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Texto publicado originalmente no Blog Fumus Boni Iuris do “O Globo”.
Nesta quarta-feira (6), quando os Estados Unidos deveriam acompanhar a chegada à Casa Branca de um novo Presidente, o prédio do Capitólio foi invadido por apoiadores de Donald Trump, que entraram em confronto com a polícia, resultando em quatro mortes confirmadas até o momento. Sede do legislativo e símbolo da democracia americana, o Capitólio escapou aos ataques de 11 de setembro de 2001 – quando passageiros do vôo 93 da United Airlines evitaram que a aeronave atingisse o provável alvo –, mas não resistiu a um discurso de Trump que, horas antes, incitou seus apoiadores a rumar para o Capitólio, dizendo-lhes: “vocês nunca retomarão nosso país com fraqueza; vocês precisam mostrar força e vocês precisam ser fortes”.
Após a invasão do prédio, enquanto as cenas de vandalismo e violência eram veiculadas em cadeia nacional, Donald Trump postou em sua conta no Twitter um vídeo no qual afirmava: “tivemos uma eleição que foi roubada de nós. Foi uma vitória esmagadora e todos sabem disso, especialmente o outro lado.” Após restrições ao compartilhamento desta postagem, o Twitter informou que a conta do ex-presidente “ficará bloqueada por 12 horas, à espera da exclusão das postagens. Se os tuítes não forem apagados, a conta permanecerá trancada. Futuras violações das regras do Twitter, incluindo de nossas políticas de Integridade Cívica ou Ameaças Violentas, resultarão na suspensão permanente do perfil”. Logo em seguida, o bloqueio temporário às contas de Trump foi realizado também por Facebook e Instagram, pelo período de 24 horas.
Não foi a primeira vez que Donald Trump teve sua fala interrompida. Em agosto de 2020, Twitter e Facebook excluíram a postagem de um vídeo em que ele afirmava que as crianças seriam “quase imunes” ao coronavírus. Em novembro do mesmo ano, enquanto transcorria a apuração dos votos na eleição americana, três das maiores emissoras de TV do país – ABC, CBS e NBC – cortaram a transmissão ao vivo de um pronunciamento do então Presidente dos Estados Unidos enquanto ele dizia ao povo americano que, se fossem contabilizados “os votos ilegais”, seus adversários poderiam “tentar roubar a eleição de nós”. A interrupção do discurso pelas três emissoras praticamente no mesmo momento foi vista por muitos como uma mudança de papel da imprensa americana. Estaria o país que é considerado uma espécie de campeão mundial da liberdade de expressão revendo sua posição em tempos de tanta desinformação? Haveria nessas interrupções e bloqueios uma forma de censura?
Quando se fala em censura, pensa-se normalmente no Estado. A ditadura militar, vivida no Brasil entre 1964 e 1985, forneceu inúmeros exemplos de censura oficial, que vão desde o veto de canções à proibição de circulação de notícias que contrariavam o regime ou a visão que se queria transmitir do Brasil – dados sobre a epidemia de meningite em 1974 foram, por exemplo, censurados em diversos jornais. Mais recentemente, pode-se recordar o exemplo da censura ao humor veiculada pelo artigo 45, II e III, da Lei Geral das Eleições (Lei 9.504/1997), que proibia emissoras de rádio e televisão de “usar trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido ou coligação, ou produzir ou veicular programa com esse efeito” durante o período eleitoral – dispositivo que, em 2018, foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 4.451). A imprensa, como se vê, não está, ainda hoje, imune à censura, mas o que dizer das redes sociais? A exploração de redes sociais não é, como se sabe, uma atividade decorrente de concessão ou permissão do Poder Público, mas sim uma atividade exclusivamente privada, conduzida normalmente por empresas de caráter multinacional, que estabelecem seus próprios “termos de uso”, ou seja, as regras para sua utilização.
Assim, redes sociais podem, em teoria, excluir, suspender ou bloquear qualquer espécie de manifestação que entendam contrária às regras que estabeleceram. Do mesmo modo, não estão obrigadas a excluir manifestação alguma. No Brasil, esta característica é reforçada pelo artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei 12.695/2014), que institui uma espécie de imunidade para as redes sociais, ao afirmar que, em regra, somente poderão ser responsabilizadas por danos decorrentes de conteúdo gerado pelos seus usuários se deixarem de excluir tal conteúdo após uma “ordem judicial específica” – o artigo 19, registre-se, terá sua constitucionalidade examinada pelo Supremo Tribunal Federal (RE 1.037.396).
O autocontrole das redes sociais tem se mostrado, para muitos, insuficiente, seja por deixar de bloquear a propagação de conteúdo falso que lesa direitos fundamentais de terceiros – como se vê no exemplo dos conhecidos perfis falsos nas redes e também do fenômeno mais recente das fake news, cujo perigo se amplia em tempos de pandemia –, seja por bloquear indevidamente certas manifestações que exprimem legítimo exercício da liberdade de expressão. Alguns episódios tornaram-se célebres, como a supressão da postagem de um escritor norueguês que reproduzia a imagem histórica da jovem Kim Phuc, fotografada enquanto fugia de um ataque por napalm na Guerra do Vietnam, ou, ainda, o bloqueio à imagem da capa de Nevermind, da banda Nirvana, que expunha um bebê nu em uma piscina, logo após a imagem ser postada no perfil da própria banda em comemoração pelos vinte anos do lançamento do icônico álbum. Em ambos os casos, a atitude parece ter sido voltada a impedir a difusão de nudez infantil, mas o excesso foi evidente, como constatado pela própria rede social, que restabeleceu a exibição das imagens dias depois da exclusão.
Estes e outros episódios têm suscitado, por toda a parte, exigências de maior clareza nos termos de uso das redes sociais – evitando-se exclusões ou bloqueios com base em afirmações vagas como houve “tentativa de manipular a integridade do nosso serviço” ou o “conteúdo é indesejado”. Além disso, tem-se clamado por respeito ao contraditório, com algum procedimento que assegure que o potencial excluído ou bloqueado seja ouvido antes de sofrer a exclusão ou bloqueio ou, ao menos, no momento imediatamente seguinte. Tais cautelas são especialmente importantes quando se verifica que, diante do volume de conteúdo despejado diariamente nas redes sociais, o controle do respeito aos termos de uso é realizado normalmente por meios mecânicos ou robóticos, com a identificação de elementos que sugerem pornografia, pedofilia ou apologia ao crime. Tais sugestões podem, contudo, estar erradas: a publicação da capa do disco Catch a Fire, em que Bob Marley aparece fumando um imenso cigarro, não significa necessariamente que se esteja defendendo a liberação da maconha – o que, de resto, seria, entre nós, um exercício igualmente legítimo da liberdade de expressão, como já decidiu o STF (ADPF 187).
O que diferencia, contudo, Bob Marley de Donald Trump? Um oceano de coisas, naturalmente, mas, para fins de bloqueio nas redes sociais, há uma diferença fundamental: as mensagens de Trump implicavam uma incitação direta e atual à violência. É o que se extrai do próprio conteúdo de seus tweets que, naquele momento de turbulência nacional, disparavam frases como: “essas são as coisas e eventos que acontecem quando uma esmagadora vitória eleitoral sagrada é retirada, de modo tão sem cerimônia e feroz, dos grandes patriotas que foram tratados mal e injustamente por tanto tempo” ou, ainda, “Mike Pence não teve a coragem de fazer o que deveria ter sido feito para proteger nosso país e nossa Constituição, dando aos Estados uma chance de certificar um conjunto corrigido de fatos, não os fraudulentos ou inacurados que eles haviam sido anteriormente chamados a certificar”, ambas postadas por Trump e posteriormente suspensas pelo Twitter. Se não chega a se qualificar como “hate speech” – expressão que a maior parte dos autores reserva ao discurso de ódio dirigido especificamente contra minorias – qualifica-se inegavelmente como incitação à violência no exato momento em que havia uma convulsão nas ruas e um ataque em curso ao Capitólio, embora seja de se registrar que o próprio Trump, horas após o início da invasão ao prédio, chega a pedir: “Vão para casa com amor & em paz”.
Em suma, há limites à liberdade de expressão? Não há razão para imaginar que qualquer direito possa ser exercido de modo ilimitado. Mesmo nos Estados Unidos, em que se reserva à liberdade de expressão uma posição privilegiada, isso não significa que se trate de um direito absoluto. O que se exige, em atenção ao risco de censura, é que os limites à liberdade de expressão não sejam vagos e imprecisos, de modo a permitir abusos ou refreamentos indevidos pela lei, pelo Poder Judiciário ou pelos próprios agentes de mercado. O discurso de ódio contra minorias é, por exemplo, um limite já reconhecido pelos países mais deferentes à liberdade de expressão, incluindo os Estados Unidos. A propagação de fake news – assim entendidas as notícias deliberadamente falsas que são difundidas pela internet para influenciar o público ou simplesmente confundi-lo – também vão se qualificando como um limite. E as próprias redes sociais, que vinham sendo criticadas por “lavarem as mãos” diante desses fenômenos, parecem ter começado a adotar uma postura mais proativa, como se viu na invasão do Capitólio. O tema é extremamente importante para o Brasil, onde o Presidente da República já declarou que, “se tivermos voto eletrônico em 2022, vai ser a mesma coisa.”
ANDERSON SCHREIBER