Carlos E. Elias de Oliveira
Professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na Universidade de Brasília – UnB –, no IDP/DF, na Fundação Escola Superior do MPDFT – FESMPDFT, no EBD-SP, na Atame do DF e de GO e em outras instituições.
Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil (único aprovado no concurso de 2012).
Advogado/Parecerista.
Ex-Advogado da União.
Ex-assessor de ministro STJ.
Doutorando, mestre e bacharel em Direito pela UnB (1º lugar no vestibular de 1º/2002).
Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro
E-mail: carloseliasdeoliveira@yahoo.com.br
1. Introdução
O objetivo desse artigo é discutir algumas figuras com grande aplicação prática e que integram o Direito Civil: o patrimônio de afetação, o regime fiduciário e o escrow account.
Trata-se de conceitos importantes para a prática forense, a prática contratual e a prática notarial e registral diante da presença dessas figuras no quotidiano do Direito Civil.
2. Patrimônio de afetação, patrimônio separado ou patrimonial especial
Patrimônio de afetação[1], também chamado de patrimônio separado ou patrimônio especial, não é um direito real, e sim um regime jurídico incidente sobre um conjunto de bens de uma pessoa para destiná-lo prioritariamente à satisfação de determinada obrigação. É, pois, um regime jurídico que recai sobre o direito de propriedade de um bem ou de um conjunto de bens para “afetá-los” à satisfação preferencial de uma dívida específica. Em outras palavras, os bens sujeitos ao regime de patrimônio de afetação não se comunicam com os demais bens da pessoa, mas permanecem confinados juridicamente.
Os bens que integram o patrimônio de afetação bem como as dívidas a cuja satisfação prioritária esses bens estão afetados podem ser presentes ou futuros, tudo depende da lei específica que autoriza a instituição do regime de patrimônio de afetação.
Em uma metáfora, se uma pessoa possui uma parcela do seu patrimônio em regime de patrimônio de afetação, é como se essa parcela estivesse ilhada só pode ser alcançada pelos credores em favor dos quais o regime foi instituído.
Se, por exemplo, for decretada a falência de uma sociedade que possuam bens sob regime de patrimônio de afetação, somente os credores em favor dos quais se instituiu esse regime poderão fatiar a parcela do patrimônio afetado. No caso de todos terem sido satisfeitos, extingue-se o regime de patrimônio de afetação sobre eventual sobra patrimonial, a qual poderá ser excutida por outros credores.
Como o patrimônio de afetação flexibiliza o princípio da patrimonialidade, segundo o qual, salvo lei, todos os bens do devedor respondem por suas dívidas (art. 789, CPC), ele só é admitido se houver lei expressa admitindo-o.
O regime do patrimônio de afetação tem duas utilidades principais na prática: ser garantia de dívida ou viabilizar a administração de bens próprios em interesse alheio.
A primeira é a de que servir como uma espécie de garantia do pagamento de determinada dívida. Sob essa utilidade, temos os seguintes casos de patrimônio de afetação na legislação:
1) Constituição de capital (art. 533, § 1º, CPC): está sob regime de patrimônio de afetação o capital que o responsável civilmente tem de manter segregado a fim de garantir o pagamento de pensão alimentícia indenizatória, como nos casos de alguém que matou outrem e, assim, foi condenado a pagar alimentos indenizatórios para os dependentes econômicos do falecido. Os bens móveis e imóveis que constituíram esse capital continuarão sob a propriedade do responsável civilmente, mas não poderão ser penhorados por seus credores pessoais por estarem afetados à satisfação das pensões alimentícias devidas à vítima.
2) Incorporação imobiliária (arts. 31-A a 31-F, Lei nº 4.591/64): é facultado ao incorporador instituir regime de patrimônio de afetação a fim de que o terreno, as acessões e os demais bens vinculados a uma determinada incorporação (como os créditos frutos das vendas de imóveis “na planta”) sejam afetados à satisfação prioritária dos credores dessa específica incorporação.
3) Fundo Garantidor de Parceria Público-Privada – FGP (art. 21, Lei nº 11.079/2004): é facultativa a instituição de patrimônio de afetação sobre bens do FGP para a satisfação de determinada parceria público-privada em específico.
4) Sistema de Pagamentos Brasileiro – SPB (arts. 5º e 6º, da Lei º 10.214/2001): as câmaras e os prestadores de serviços de compensação e liquidação no âmbito do SPB devem separar bens como patrimônio de afetação a fim de garantir o cumprimento de suas obrigações, observada regulamentação do Banco Central do Brasil.
5) Contas de pagamento em instituições de pagamento integrante do Sistema de Pagamentos Brasileiro – SGP (arts. 6º e 12, Lei nº 12.685/2013): os ativos constantes das contas de pagamento estão em regime de patrimônio de afetação como forma de impedir que credores pessoais da instituição gestora da conta de pagamento penhorem os ativos dessas contas, tudo em proteção do cliente.
6) Fundo de investimento com previsão expressa de patrimônio de afetação para cada classe de quota (art. 1.368-D, III, Código Civil): os bens vinculados a determinada classe de quotas de fundos de investimento ficam prioritariamente vinculados à satisfação dos créditos dos quotistas dessa classe.
7) Patrimônio rural em afetação (arts. 7º ao 16 da Lei do Agro – Lei nº 13.986/2020): o imóvel rural, total ou parcialmente, tornam-se prioritariamente destinados à satisfação de dívida contida em CIR (Cédula Imobiliária Rural) ou CPR (Cédula de Produto Rural). A CIR é fruto de alguma operação de crédito (art. 17, Lei do Agro), ao passo que a CPR decorrente da promessa de entregar um produto rural (Lei nº 8.929/1994). Como garantia do pagamento desses títulos de crédito, o emitente pode instituir um regime de patrimônio de afetação sobre todo ou parte do seu imóvel rural.
A segunda é a de que viabilizar uma espécie de segregação patrimonial de um ente que assumiu o direito de propriedade sobre bens apenas para administrá-lo e guardá-lo no interesse de outrem. As principais hipóteses legais nesse sentido são estas:
1) Grupo de consórcio privado (art. 5º, Lei nº 11.795/2008): os bens vinculados a um Grupo de Consórcio – que é um ente despersonalizado – ficam na titularidade da administrador do consórcio em regime de patrimônio de afetação em favor das obrigações decorrentes desse grupo de consórcio, de modo que credores pessoais do administrador não poderão penhorar esses bens.
2) Fundo de investimento imobiliário (art. 7º, Lei nº 8.668/1993): os bens vinculados de um Fundo de Investimento – que é um ente despersonalizado – ficam sob a propriedade fiduciária da instituição administradora em regime de patrimônio de afetação.
3) Regime fiduciário no caso de securitização de recebíveis imobiliários por meio da emissão de Certificados de Recebíveis Imobiliários – CRI (art. 11, I, Lei nº 9.514/97): os créditos que lastreiam a emissão de CRI (títulos que são vendidos a investidores na Bolsa de Valores) ficam em regime de patrimônio de afetação em nome da companhia securitizadora, que deve conservá-los em favor dos adquirentes da CRI. Haverá um agente fiduciário, que é uma instituição financeira incumbida de fiscalizar a atuação da companhia securitizadora em proteção dos adquirentes de CRI, conforme art. 13 da Lei nº 9.514/97.
4) Regime fiduciário no caso de cessão fiduciária de quota de fundos de investimento (art. 88, § 3º, da Lei nº 11.196/2005): havendo a cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento pelo inquilino em favor do locador, forma-se um regime fiduciário sobre as quotas, de modo que a instituição financeira administradora do fundo ficará como agente fiduciário das quotas para as administrar em proveito do locador. O texto legal nos parece atécnico por falar em um regime fiduciário e por falar em indisponibilidade das quotas, como se o agente fiduciário fosse o proprietário das quotas e, assim, fosse necessária a segregação patrimonial. É que, nesse caso, a propriedade, ainda que resolúvel, das quotas é do locador, conforme expressamente assentado no § 1º do art. 88 da Lei nº 11.196/2005. Para nós, não há propriamente um regime fiduciário, e sim meramente uma administração feita sobre uma quota de fundo pertencente ao credor fiduciário. Não há, pois, patrimônio de afetação, embora a lei insinue o contrário.
5) Regime fiduciário no caso de emissão de Letra Imobiliária Garantida – LIG (art. 69, II, e 70 da Lei nº 13.097/2015): a instituição emissora de LIG fica com a propriedade dos créditos sobre os quais se lastreiam esse título em patrimônio de afetação e sob a fiscalização de um agente fiduciário, que é uma instituição financeira. Trata-se de um regime fiduciário.
3. Regime fiduciário
Regime fiduciário é um arranjo jurídico-real em razão do qual um bem ou um conjunto de bens fica sob a propriedade de uma pessoa (= o fiduciário) em regime de patrimônio de afetação com o objetivo de que ela administre a coisa em proveito de terceiros (= os beneficiários). Diz-se “fiduciário”, porque esse regime decorre de forte confiança (fidúcia) na pessoa incumbida da gestão dos bens.
A propriedade do fiduciário está sujeita a uma condição resolutiva, cujo implemento fará reverter os bens em favor dos beneficiários.
Especialmente nas hipóteses em que os beneficiários do regime fiduciário ficam difusos, é conveniente a existência de um “agente fiduciário”, que é uma pessoa incumbida de fiscalizar o fiduciário no interesse dos beneficiários e que possui mandato legal para praticar atos em favor destes.
Entendemos que a instituição de um regime fiduciário depende de lei específica apenas pelo fato de ele envolver um regime de patrimônio de afetação instituído por vontade do próprio proprietário: os bens ficam em nome do fiduciário nesse regime, cuja instituição depende de lei específica por conta do princípio da patrimonialidade (art. 789, CPC). Ninguém pode, sem lei específica, segregar uma parcela do patrimônio.
O principal exemplo de regime fiduciário é o envolvendo emissão de Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI) para venda a investidores. Nesse caso, os investidores serão os “beneficiários”, a companhia securitizadora que emitiu os títulos será o “fiduciário” e titularizará os créditos sobre os quais se lastreiam esses títulos em regime de patrimônio de afetação e uma instituição financeira será o “agente fiduciário”, tudo conforme arts. 9º ao 16 da Lei nº 9.514/97.
Também é utilizado o regime fiduciário no caso de cessão fiduciária de quota de fundo de investimento, embora, conforme já expusemos anteriormente, entendemos que houve atecnia no art. 88, § 3º, da Lei nº 11.196/2005 ao regular a matéria.
Igualmente a emissão de Letra Imobiliária Garantida – LIG é submetida a regime fiduciário em que os adquirentes da LIG são os “beneficiários”, a instituição emissora da LIG é o “fiduciário” e uma instituição financeira é o “agente fiduciário” (art. 63 e ss, Lei nº 13.097/2015).
Outrossim as companhias securitizadoras de direitos creditórios do agronegócio podem instituir regime fiduciário sobre esses créditos a fim de proteger os investidores, caso em que serão observadas, no que couber, as regras do regime fiduciário próprio dos Certificados de Recebíveis Imobiliários (art. 39, Lei nº 11.076/2004).
4. Escrow account vs patrimônio de afetação vs penhora: o exemplo dos contratos administrativos de serviços de mãos-de-obras terceirizadas
A escrow account (traduzido, “conta-garantia”) é uma conta bancária em que se depositou uma quantia com finalidade de servir de garantia à satisfação de determinada obrigação. A ideia é segregar uma quantia pecuniária para ser liberada apenas para garantir o pagamento de uma obrigação.
Os bancos atualmente disponibilizam um produto conhecido como “conta vinculada”, na qual pode ser depositado um valor que só poderá ser levantado mediante autorização conjunta dos interessados ou ordem judicial. Essas contas vinculadas podem ser utilizadas como uma escrow account.
Em contratos administrativos destinados a contratar empresas de terceirização de mão de obra, a União costuma valer-se de contas vinculadas para depositar valores destinados a garantir o pagamento das verbas trabalhistas dos empregados da empresa de terceirização. Essas contas ficam em nome das empresas terceirizadas, mas só podem ser movimentadas com autorização expressa tanto da União quanto das empresas terceirizadas. Nesses casos, há o grave risco de credores pessoais da empresa terceirizada penhorarem os valores depositados nessa conta por meio do famoso sistema Bacenjud.
De fato, sob uma dogmática fria, no direito brasileiro, por falta de previsão legal, a escrow account não pode ser considerada submetida ao regime de patrimônio de afetação. Assim, se a conta bancária estiver no nome de uma pessoa, credores pessoais dela podem acabar penhorando o dinheiro contido na conta-vinculada. A legislação, portanto, não dá o respaldo adequado ao escrow account, que acaba sendo formalizado por meio de contratos e, portanto, acabam tendo natureza obrigacional. Seria até possível instituir um penhor ou uma alienação fiduciária sobre esses valores depositados, mas, na prática, a dinâmica dos negócios não chancela essa prática.
Entretanto,
em nome da doutrina do terceiro cúmplice, que se lastreia na boa-fé objetiva e
na função social, convém admitir que os valores depositados em uma escrow account sejam protegidos de
penhoras de credores pessoais do titular da conta bancária se a obrigação
garantida ainda não tiver sido satisfeita. A jurisprudência tende a proteger as
partes de um contrato diante de terceiros credores que realizar penhoras que
frustrariam aquele contrato, como nos casos de promessas de compra e venda de
imóveis sem registro (Súmula nº 84/STJ) e de aquisição de imóveis “na planta”
(Súmula nº 308/STJ).
[1] Em riquíssima obra sobre o trust – obra que é de visita obrigatória para aprofundamentos sobre o tema –, o jurista português Antonio Barreto Menezes Cordeiro (2014, pp. 1097-1101) lembra que a segregação patrimonial já estava presente desde o Direito Romano antigo, com a figura do peculium profecticium.