CURATELA: PRESTAÇÃO DE CONTAS POR RESULTADO E LIMITES DO CONTROLE JURISDICIONAL DE MÉRITO A POSTERIORI

CURATELA: PRESTAÇÃO DE CONTAS POR RESULTADO E LIMITES DO CONTROLE JURISDICIONAL DE MÉRITO A POSTERIORI

Carlos E. Elias de Oliveira

Membro da Comissão de Reforma do Código Civil (Senado Federal, 2023/2024). Advogado, parecerista e árbitro. Pós-Doutorando em Direito Civil (USP). Doutor, mestre e bacharel em Direito (UnB). Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e Registral. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Ex-Advogado da União. Ex-Assessor de Ministro do STJ. Pós-graduado em Direito Notarial e Registral. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC). Membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Instagram: @profcarloselias. E-mail: carloseliasdeoliveira@yaho.com.br                                         

Resumo

Resumimos, em tópicos, as principais ideias deste artigo:

1) Os juristas sempre precisam tomar cuidado com reflexões abstratas realizadas do alto da Torre de Marfim, de escritórios confortáveis e distantes da realidade. Por vezes, essas cogitações impõem pesadíssimo peso sobre os ombros dos cidadãos, a ponto de os induzir a adotar condutas que frustram os objetivos dos juristas. O excesso de patrulhamento e de ameaça estatais pode gerar o que se conhece como chilling effect (efeito inibidor ou efeito amedrontador), desencorajando condutas que seriam salutares (capítulo 1 e 2.1.).

2) A prestação de contas deve ser por resultado até o limite mensal do valor de mercado para a contratação de serviço igual ao prestado pelo curador, desde que não se trate de nenhum curador profissional. O serviço prestado pelo curador consiste em, por 24 horas, gerir o patrimônio do curatelado, cuidar pessoalmente dele, levar para passear, trocar fraldas, dar apoio emocional etc (capítulo 2.3. e 2.4.).

3) Para fins de referência mais objetiva, arbitramos que esse valor atualmente deve corresponder a R$ 15.000,00. Essa quantia é, por equidade, aquela geralmente cobrada por casas de repouso de padrão razoável e, no padrão monetário de hoje, parece ser um parâmetro razoável para a definição da prestação de contas por resultado. Mas esse valor pode vir a ser maior a depender do caso concreto, especialmente se o preço de mercado de serviços de cuidado por 24 horas somado aos serviços de gestão de bens na localidade for maior ainda (capítulo 2.4.).

4) A prestação de contas deverá ser por contabilidade nestas três hipóteses: (a) curatela profissional; (b) rendimentos mensais superiores ao valor de mercado para a contratação de serviço igual ao prestado pelo curador com gastos efetivamente superiores a esse patamar; (c) despesas extraordinárias com recursos do ativo permanente (capítulo 2.5.).

5) Na segunda hipótese retrocitada, a prestação de contas por contabilidade terá de observar duas flexibilidades, que batizamos assim: (1) a zona discricionária de gastos; e (2) a flexibilidade formal da prestação de contas  (capítulo 2.5.).

6) Sempre se deve preferir o ambiente familiar à institucionalização da pessoa incapaz (capítulo 2.6.).

7) A tese acima fundamenta-se na necessidade de reconhecer a Economia do Cuidado no Direito de Família, no princípio da proteção simplificada do agraciado, no princípio da vontade presumível e no princípio do melhor interesse da pessoa vulnerável.

8) Naqueles casos em que há prestação de contas por contabilidade, o controle de mérito a posterior deverá observar três diretrizes: (a) a responsabilidade do curador depende de prova de dolo; (b) respeito à vontade presumível da pessoa incapaz; (c) é indevido controle jurisdicional do juízo de conveniência e oportunidade do curador, salvo caso de manifesta e ululante falta de razoabilidade (capítulo 3).

1. Introdução

Quando uma pessoa perde a lucidez e é submetida à curatela: a prestação periódica de contas pelo curador deve mesmo ser feita por contabilidade em qualquer hipótese em que a pessoa incapaz tiver rendimentos ou bens?

Neste artigo, defendemos que a prestação de contas por contabilidade só deve ser feita apenas em determinadas hipóteses, quando o rendimento mensal do curatelado for efetivamente elevado ou quando se tratar de curatela profissional.

Sustentamos que, nas hipóteses em que o rendimento do curatelado é inferior à justa remuneração dos trabalhos de cuidado realizados pelo curador, a regra será a prestação de contas por resultado.

Trata-se de mais uma decorrência do reconhecimento da Economia do Cuidado no Direito de Família, tema sobre o qual nos debruçamos em outra ocasião[1].

No presente artigo, como as decisões em processos judiciais de interdição são sigilosas, muitas referências aqui feitas a casos concretos não virão acompanhadas de citação da fonte.

Desde logo, agradeço aos amigos civilistas e professores Rolf Madaleno, Pablo Malheiros da Cunha Frota, Pablo Stolze Gagliano, Hércules Alexandre da Costa Benício e Ricardo Calderón, amigos com os quais pude amadurecer a tese ora defendida neste artigo.

2. Problema atual: curador e tutor tratados como presumidamente bandidos

No dia do lançamento da obra “A Reforma do Código Civil”, no Salão Negro do Congresso Nacional, em 1º de abril de 2025, eu conversava com o amigo Rolf Madaleno sobre este artigo que já estava para ser publicado.

Dizia ao amigo civilista que a prática da fiscalização exercida sobre os tutores e os curadores estava desconectada da realidade.

O tutor ou o curador precisa guardar nota fiscal de “danoninhos” e, em alguns casos, ainda tem de motivar a compra.

Há casos, ainda, de despesas que são glosadas por “controle de mérito”.

Relatei-lhe um caso de uma glosa que ocorreu em um processo. O curador havia gastado R$ 150,00 em um restaurante de classe média. O Ministério Público, com a chancela do juiz, acusou o curador de “fazer banquete romano” com o dinheiro do vulnerável e determinou ao curador o reembolso.

Os exageros vão além disso.

Há casos em que o tutor ou o curador sujeitam-se a uma espécie de “responsabilidade objetiva com base na teoria do risco integral”. São, por exemplo, condenados a indenizar prejuízos por decisões tidas como erradas. Se o curador realiza uma despesa por ter caído em um golpe ou se ele compra um bem com um vício oculto, ele tem de indenizar.

Há, ainda, outros casos em que o curador é punido a indenizar por alguma suposta omissão: o juízo e o Ministério Público – em uma avaliação a posteriori e sem ter vivido “na pele” do curador – conjecturam que o curador poderia ter obtido um determinado proveito econômico à pessoa incapaz se tivesse adotado uma certa conduta.

O ditado popular é o de que é fácil ser engenheiro de obra já feita. É fácil o Ministério Público ou o juízo censurar uma despesa feita pelo curador sob o argumento de que “a compra deu errado”. Ou especular que o curador poderia ter tido uma determinada conduta para obter um proveito patrimonial.

Parte-se de uma premissa absolutamente romântica e irreal de que, se a pessoa vulnerável não fosse incapaz, ela não cometeria erro algum na vida, nem mesmo por culpa.

O peso que é colocado nos ombros do tutor ou do curador é quase que aterrorizante.

A praxe forense exige que o curador ou o tutor seja um super-homem nietzschiano, que nunca erre, que guarde notas fiscais e relatórios de picuinhas e que – em postura estoica – sacrifique a própria vida para se concentrar nos cuidados da pessoa vulnerável.

Eu continuava a expor os problemas atuais em preparação do terreno da tese que eu estava defender quando o nosso querido Rolf Madaleno me interrompeu e, com sua vasta experiência de um dos mais destacados advogados e civilistas, resumiu:

– “É por isso que ninguém quer assumir a curatela de ninguém.

Perfeita a colocação do grande civilista!

E acrescentamos mais.

Muitas pessoas, quando são encurraladas a assumir a curatela, ainda adotam uma forma de “fugir” ao dever de ficar guardando nota fiscal de “danoninhos” e de ficar fazendo relatórios justificando essas pequenas compras. Colocam o curatelado em alguma Clínica ou em alguma Casa de Repouso e “lavam as mãos”. Em algumas hipóteses, a escolha de uma clínica ou casa de repouso é feita com olhos no melhor interesse da pessoa incapaz. Mas não se pode ignorar que há outros casos em que a motivação do curatelado é escapar ao patrulhamento irracional dos bizantinismos do regime de prestação de contas por contabilidade.

  Com isso, as pessoas vulneráveis ficam mais ainda isoladas, longe do convívio familiar, tudo por conta da artilharia pesada e injustificada que a prática forense tem apontado contra a cabeça dos curadores.

A pretexto de proteger a pessoa vulnerável, esses exageros empurram-na mais ainda para o abismo da solidão e do ostracismo.

O pior em tudo isso é que, se o curador ousar reivindicar algum pro labore, muitas decisões judiciais fixam valores absolutamente irrisórios, de meio salário mínimo, em total desconexão com o mister assumido.

Em termos de valores, a experiência demonstra que é muito caro contratar serviços de cuidado.

Cuidadores cobram R$ 200,00 por turno de 12 horas, o que significaria que, para manter um cuidador ininterruptamente com a pessoa incapaz, o custo mensal passaria de R$ 12.000,00. Não se inclui aí alimentação, deslocamentos, gestão patrimonial etc. Esse valor é apenas para cuidadores dedicados às necessidades básicas da pessoa incapaz, como trocar fraldas, ministrar remédios etc. Se se fossem contratar outros funcionários para essas outras atividades, esse custo mensal dobraria facilmente.

Se se fosse “internar” a pessoa em casas de repouso, a média do mercado oscila entre R$ 10.000,00 a R$ 20.000,00, levando-se em conta um padrão de classe média.

Mesmo diante desse cenário, o que se verifica é que curadores que querem cuidar pessoalmente da pessoa vulnerável acabam sendo constrangidos a terem de apresentar “notas fiscais de danoninhos”, com relatório individualizado de cada despesa. E são ainda injustiçados com condenações a reembolsar despesas tidas por indevidas em controle meritório posterior.

   A verdade é que os curadores – que geralmente são pessoas movidas por amor e forte ímpeto de solidariedade – são desonrados pela praxe forense, ao serem tratados como “presumidamente bandidos”.

Há algo de podre no Reino da Dinamarca, diria Shakespeare.

Qual seria a correta interpretação da legislação?

Passamos a expor a nossa tese.

2. Prestação de contas por resultado vs prestação de contas por contabilidade

2.1. Espécies de prestação de contas pelo curador

Os juristas sempre precisam tomar cuidado com reflexões abstratas realizadas do alto da Torre de Marfim, de escritórios confortáveis e distantes da realidade.

Por vezes, essas cogitações impõem pesadíssimo peso sobre os ombros dos cidadãos, a ponto de os induzir a adotar condutas que frustram os objetivos dos juristas. O excesso de patrulhamento e de ameaça estatais pode gerar o que se conhece como chilling effect (efeito inibidor ou efeito amedrontador), desencorajando condutas que seriam salutares.

E isso tem ocorrido na prática do Direito Protetivo de Família, especificamente no tocante ao regime de prestação de contas imposto aos curadores.

Quem atua na prática forense nesse ramo sabe que, com exceção de alguns juízos, a tendência é que o curador seja, ao prestar contas, submetido a um patrulhamento detalhista e meticuloso, como se ele fosse algum bandido ardiloso. E o pior é que esse curador, na prática, realiza elevadíssimos sacrifícios pessoais por mero sentimento de amor ou de filantropia. Quando recebe algum pro labore, é algum valor absolutamente irrisório pelo qual nenhum profissional assumiria igual serviço.

É preciso corrigir os rumos.

Com a interdição de uma pessoa, o juiz nomeia um curador, o qual é obrigado à prestação periódica de contas, conforme arts. 1.755 a 1.757 e 1.774 do CC[2].

A legislação não detalha, porém, como deverá ser feita essa prestação de contas, razão por que entendemos que há dois tipos de prestação de contas juridicamente possíveis: (1) a prestação de contas por contabilidade e (2) a prestação de contas por resultado.

2.2. Definição da prestação de contas por contabilidade

A praxe forense é exigir o que chamamos de prestação de contas por contabilidade, assim entendida aquela que exige a individualização minuciosa de cada despesa acompanhada da respectiva prova escrita. Exige-se, ainda, eventual motivação individualizada do porquê de cada despesa. Aliás, há casos em que se exige provas escritas em total desconexão com a prática informal de grande parte das despesas quotidianas. Há casos de rejeição de faturas de cartão de crédito, de conversas de whatsapp etc[3].

Em tese, até mesmo para comprovar a compra de um “danoninho”, o curador precisa ter a nota fiscal específica, mesmo se tiver comprado o produto de um vendedor de rua que não costuma emitir recibos.

Esse tipo de prestação de contas é absolutamente meticuloso e trabalhoso. Um curador perderá muito, muito, muito tempo e energia para ficar coletando notas fiscais de cada despesa, para estruturar as informações em planilhas, para vincular cada despesa a uma nota fiscal, para eventualmente motivar cada despesa etc.

Esse trabalho exagerado, na prática, acaba sendo prestado “de graça” pelo curador, sem qualquer remuneração específica.

Em muitos casos, a prestação de contas por contabilidade será glosada por alguma picuinha relacionada à prova apresentada da despesa do “danoninho” ou por algum juízo a posterior de inconveniência da despesa.

A prestação de contas por contabilidade submete o curador a um verdadeiro inferno dantesco de formalidades absolutamente injustificáveis em grande parte dos casos concretos.

Além disso, a prestação de contas por contabilidade acaba, por vezes, exigindo a realização de despesas com profissionais da contabilidade, impondo um gasto adicional com uma burocracia que, em muitos casos concretos, revela-se totalmente injusto.

2.3. Definição da prestação de contas por resultado

A prestação de contas por resultado é aquela em que não se exige uma demonstração minuciosa e contábil de cada despesa, mas se contenta com uma avaliação equitativa e global do resultado prático alcançado.

No caso de pessoas incapazes sob curatela, essa avaliação equitativa e global poderá ser realizada por fotos, por depoimentos ou por equipe interdisciplinar que avaliará, in loco, se a pessoa incapaz está sendo “bem cuidada”.

Assim, no caso de um curador que administra um rendimento mensal de R$ 4.000,00, ele não terá necessidade de prestar contas de “compras de danoninhos”, com a meticulosidade de um contador. Ele poderá ir realizando as despesas que reputar conveniente para o bem-estar do curatelado, comprando alimentos, pagando boletos etc.

Ao final, quando do momento da prestação de contas, o curador deverá apresentar provas de que o curatelado está sendo bem tratado, facultado ao juízo, se quiser, determinar uma inspeção in loco da equipe interdisciplinar. Essas provas podem ser fotos, depoimentos de testemunhas etc.

E qual seria o momento da prestação de contas? Entendemos que, em regra, ela deverá ser anual por aplicação analógica do art. 1.756 do Código Civil. Todavia, quando o curador possuir forte vínculo de afinidade e afetividade com a pessoa incapaz, o juízo deverá afastar essa periodicidade automática para a prestação de contas e estabelecer que a prestação de contas por resultado só acontecerá mediante determinação judicial específica. Essa determinação judicial específica dar-se-á, na prática, quando houver alguma denúncia ou algum fato que levante suspeita de maus tratos à pessoa incapaz.

2.4. Quando a prestação de contas deve ser por resultado?

Indaga-se: quais são os critérios a serem observados pelo juízo para determinar a prestação de contas por resultado ou a prestação de contas por contabilidade?

Entendemos que a prestação de contas deve ser por resultado até o limite mensal do valor de mercado para a contratação de serviço igual ao prestado pelo curador, desde que não se trate de nenhum curador profissional. O serviço prestado pelo curador consiste em, por 24 horas, gerir o patrimônio do curatelado, cuidar pessoalmente dele, levar para passear, trocar fraldas, dar apoio emocional etc.

E qual seria esse limite mensal?

Para fins de referência mais objetiva, arbitramos, por equidade, que esse valor atualmente deve corresponder a R$ 15.000,00. Essa quantia é aquela geralmente cobrada por casas de repouso de padrão razoável e, no padrão monetário de hoje, parece ser um parâmetro razoável para a definição da prestação de contas por resultado. Mas esse valor pode vir a ser maior a depender do caso concreto, especialmente se o preço de mercado de serviços de cuidado por 24 horas somado aos serviços de gestão de bens na localidade for maior ainda.

Assim, suponha que uma pessoa tenha perdido totalmente a lucidez e sequer consiga expressar a vontade. Imagine que essa pessoa tenha um rendimento mensal de R$ 2.000,00. Uma filha, uma amiga ou alguém próximo a ela decidem assumir a curatela.

Não é razoável que essa pessoa – que, inclusive, assumiu o pesadíssimo (mas nobre) ato de cuidar de outrem – seja submetida a um patrulhamento excêntrico de prestação de contas e seja obrigada a guarda notas fiscais de “danoninhos”. Afinal de contas, o valor mensal de R$ 2.000,00 nem de longe remuneraria o trabalho de cuidado exercido por esse curador.

Nessa hipótese, o juízo deverá sujeitar esse curador a um regime de prestação de contas por resultado.

Igual resultado ocorreria em relação a uma pessoa incapaz que tenha um rendimento mensal de até R$ 15.000,00. Esse seu rendimento mensal não é suficiente, sequer, para remunerar o trabalho de cuidado exercido pelo curador. E, por isso, não há motivos para apontar “a arma” para a cabeça do curador com a imposição do burocrático e extenuante regime da prestação de contas por contabilidade.

Em poucas palavras, a tese acima é reforçada pelo seguinte raciocínio. Se a pessoa incapaz fosse submetida a profissionais (casas de repouso e profissionais de cuidado) por 24 horas, isso custaria mais do que o valor acima. Logo, se a pessoa incapaz ficar sob a curatela não profissional em um ambiente familiar (o que é muito melhor em nome do princípio do melhor interesse da pessoa incapaz), não há razão alguma para transformar o curador em “escravo” ou em “presumidamente bandido” e submetê-lo a um patrulhamento detalhista e formalista de ter de guardar nota fiscal de “danoninhos”: o regime de prestação de contas por contabilidade é iníquo nessas hipóteses, ao menos até o valor supracitado.

Deixamos claro que não haverá qualquer irregularidade se o curador tomar, para si, parte dos valores dos rendimentos mensais, porque a ideia é que o pro labore dele está embutido nesses rendimentos mensais. Todavia, é dever do curador prover ao curatelado o bem-estar proporcionalmente à condição socioeconômica proporcionada pelo rendimento mensal.

2.5. Quando a prestação de contas por contabilidade?

Daí se indaga: quando a prestação de contas deverá ser por contabilidade?

Há três hipóteses: (1) a de curatela profissional; (2) a de rendimentos mensais superiores ao valor de mercado para a contratação de serviço igual ao prestado pelo curador; (3) despesas extraordinárias com recursos do ativo permanente.

A primeira hipótese de prestação de contas por contabilidade é quando se trata de curador profissional. O profissionalismo da relação justifica a prestação de contas por contabilidade.

A segunda hipótese de prestação de contas por contabilidade é quando, além de o rendimento mensal do curatelado exceder o valor de mercado para a contratação de serviço igual ao prestado pelo curador, o gasto total efetivamente superar esse limite. Lembramos que, para fins atuais e objetivos, arbitramos esse valor de mercado dos serviços do curador como sendo de R$ 15.000,00, admitida quantia superior a depender da localidade e das particularidades.

Isso significa que, se o gasto mensal não ultrapassar R$ 15.000,00, a prestação de contas será por resultado. A ideia é que o curador terá de motivar eventuais gastos acima de R$ 15.000,00, o que deverá ser realizado por prestação de contas por contabilidade.

Mas a prestação de contas por contabilidade aí deverá ser realizada com duas flexibilidades, que assim batizamos: (1) a zona discricionária de gastos; (2) a flexibilidade formal da prestação de contas.

Em relação à zona discricionária de gastos, estamos a nos referir à dispensa de prestação de contas até o valor que seria devido a título de justo pro labore. Explicamos.

O juízo deverá considerar, como comprovado, um valor razoável que deva corresponder a um justo pro labore que seria devido ao curador.

Se o curador usou esse valor de pro labore com o curatelado ou se ele “embolsou” a quantia, isso é irrelevante. O que importa é que não há motivo algum para submeter o curador ao constrangimento e ao transtorno de uma prestação de contas por contabilidade até o limite do justo pro labore. Afinal de contas, muitos curadores sequer querem embolsar qualquer valor a título de pro labore, até porque nenhum dinheiro pagaria efetivamente o trabalho que eles exercem.

E é importante que o juízo seja razoável no arbitramento desse valor, porque o Direito de Família precisa reconhecer e valorizar a Economia do Cuidado. Já tivemos a oportunidade de, em outro artigo, apontar que o pro labore fixado ao curador deveria ser mais compatível com a efetiva expressão econômica desses extenuantes trabalhos de cuidado. Transcrevemos aqui nossa advertência[4]:

“Este artigo levanta reflexões práticas para combater um grave problema observado na prática forense do Direito de Família brasileiro: a desvalorização dos trabalhos de cuidado (costumeiramente referenciado na mídia como um tipo de trabalho invisível1 pelo pouco reconhecimento do Direito) dentro das relações familiares2. Na conclusão, resumiremos, em tópicos, as ideias desenvolvidas neste artigo. O leitor que tenha mais urgência pode ir diretamente à conclusão para extrair, em tópicos, o que defendemos.

(…)

De fato, a prática forense do Direito de Família nem sempre dá o devido valor ao que se conhece como Economia do Cuidado ou, nos textos ingleses, como care economy ou care work. Trata-se de um problema que agrava a posição ainda vulnerável da mulher, que, dentro da estrutura sociológica brasileira, ainda é principal incumbida em exercer atividades de cuidado.

Por Economia do Cuidado, entendem-se os serviços prestados em favor de uma pessoa para seu cuidado pessoal. Abrangem trabalhos domésticos (ex.: cozinhar, limpar casa etc.) e operacionais (ex.: transporte de filhos para escola, gerenciamento do patrimônio de terceiros, etc.). Vários trabalhos de cuidado são remunerados, como os de empregados domésticos, os de casa de repouso, os de assistência médica etc. Outros são exercidos sem remuneração alguma, como os desempenhados no âmbito familiar. (…)

(…)

Outras aplicações práticas da Economia do Cuidado devem ser realizadas no âmbito do Direito de Família, como em hipóteses de dedicação no cuidado de um familiar que seja uma pessoa idosa ou uma pessoa sob curatela. Nesses casos, é importante que os juristas se preocupem em reconhecer a expressão econômica dos trabalhos de cuidado exercidos pelo familiar generoso. No caso de curatelas, por exemplo, os juízes deveriam ser menos incontinentes na fixação do pro labore (arts. 1.752 e 1.774, CC), especialmente quando inexistir qualquer Diretiva de Curatela sobre o tema[5]. É claro que se deve atentar para a capacidade financeira da pessoa sob curatela. Mas, em havendo capacidade financeira adequada, o valor do pro labore tem de ser adequado, tendo em vista, inclusive, a média dos preços cobrados por profissionais do cuidado. Soa, por exemplo, absurdo a fixação de pro labore de um salário mínimo, quando o curatelado possui patrimônio considerável e quando se lembra que os estabelecimentos de repouso – para prestar serviço muito menos personalizado – costumam cobrar valores muitas vezes superior. Por exemplo, temos ciência de casas de repouso que cobram mensalidades de R$ 15.000,00 (quinze mil reais) para o acolhimento de pessoas idosas.

Fixar valores irrisórios de pro labore, em situações de alta capacidade econômica da curatela, seria chancelar um vampirismo afetivo indevido: a pessoa vulnerável (e, por reflexo, os seus futuros herdeiros) enriquece-se ao deixar de contratar profissionais para se servir – quase que gratuitamente – do trabalho pessoal do curador. E é importante lembrar que o curador geralmente assume o munus por conta de sua proximidade afetiva com a pessoa vulnerável. Em grande parte dos casos, esse curador prestaria os trabalhos mesmo sem compensação financeira alguma, por conta do forte vínculo afetivo. Não podemos permitir a prática oportunista de explorar essa proximidade afetiva, impondo ao curador um sacrifício patrimonial que, na prática, se reverterá patrimonialmente em favor da pessoa vulnerável (e, por tabela, aos seus futuros herdeiros). O Direito não pode chancelar vampirismos afetivos, repita-se.”

No tocante à flexibilidade formal da prestação de contas, estamos a defender que o juízo deverá ter certa flexibilidade e tolerância com eventuais inconsistências ou fragilidades probatórias quando disserem respeito a despesas que a experiência demonstre ser comum acontecer. Não há motivos para o juízo “glosar” a compra de um lanche por falta de nota fiscal. Afinal de contas, as máximas da experiência comum são provas também (art. 375, CC[6]).

Além disso, o curador é alguém que está a agir por amor (quase que por generosidade), e não por profissionalismo: não é razoável impor-lhe um peso exagerado de burocracia. Tal contrariaria o princípio da proteção simplificada do agraciado[7].

Por fim, a terceira hipótese de prestação de contas por contabilidade é quando se tratar de despesas extraordinárias que venham a ser custeadas com aplicações financeiras ou com outros bens que integram o que chamamos de ativo permanente da pessoa incapaz (como imóveis). Nesses casos, o curador deverá comprovar, de forma contábil, o endereçamento dos recursos ao custeio das despesas extraordinárias.

2.6. Preferência pela convivência familiar

Em matéria de Direito Protetivo de Família, o reinado é do princípio do melhor interesse da pessoa incapaz.

E, sob a ótica desse princípio, deve-se sempre prestigiar a convivência familiar em detrimento da institucionalização.

Por essa razão, quando familiares – na condição de curadores – manifestarem a disponibilidade e as condições de acolherem a pessoa incapaz em um ambiente familiar, o juízo deverá prestigiar essa solução e deverá “baixar a guarda” do regime castrense da prestação de contas por contabilidade, conforme mencionamos acima.

Em suma, não faz sentido o juízo, em uma visão puramente patrimonialista do Direito Protetivo de Família, acabar submetendo a pessoa incapaz a uma curatela profissional ou a uma institucionalização pelo mero fato de isso ser financeiramente mais demonstrável e controlável.

Aliás, temos de lembrar que uma pessoa comum costuma preferir ficar com sua família e gastar seus recursos com esse convívio familiar. Até mesmo doações são feitas. O Direito precisa dialogar com o padrão do homo medius, conforme já defendemos ao tratar do princípio da vontade presumível, o qual deve ser levado em conta também em matéria de curatela de pessoas incapazes[8].

Lembramos, nesse ponto, que, decorre do princípio da vontade presumível a regra do respeito à vontade da pessoa vulnerável ao tempo da sua lucidez. Daí decorrem diversas consequências práticas, até mesmo a de, a depender do caso concreto, autorizar doações da pessoa incapaz, como na hipótese de uma doação feita por uma pessoa incapaz rica para ajudar no custeio do tratamento de saúde de um irmão. Sobre essa interpretação teleológica do art. 1.748, II, e 1.781 do CC), reportamo-nos a outro artigo que escrevemos[9].

3. Os limites do controle de mérito a posteriori das despesas feitas pelo curador

Naqueles casos em que há prestação de contas por contabilidade, é possível discutir se o juízo poderá ou não realizar controle de mérito a posterior.

Entendemos haver três diretrizes a serem levadas em conta no controle de mérito a posteriori realizada pelo juízo quando da prestação de contas pelo curador. O controle de mérito a posteriori consiste em o juízo avaliar se a despesa realizada pelo curador foi ou não adequada, a partir de uma análise de conveniência e oportunidade.

A primeira diretriz diz respeito ao regime de responsabilidade civil do curador. Se o curador não é profissional, a sua responsabilidade civil por danos causados à pessoa incapaz no exercício do munus só deve dar-se no caso de dolo por força do art. 392 do Código Civil. A jurisprudência tende a equiparar o dolo à culpa grave para tal efeito, tese contra a qual já nos manifestamos[10].

Seja como for, não é devido condenar o curador por falhas na gestão patrimonial da pessoa incapaz sem que haja dolo ou culpa grave.

Isso significa que jamais o juízo poderá condenar o curador a reembolsar a pessoa incapaz por eventual despesa tida por inconveniente, salvo no caso de dolo ou culpa grave. O controle de mérito a posteriori das despesas feitas pelo curador tem de levar em conta isso.

A segunda diretriz a ser levada em conta no controle de mérito a posteriori é a de respeitar a vontade presumível da pessoa curatelada.

Já vimos casos de juízos que “glosaram” uma despesa de R$ 150,00 feita em um restaurante. Considerou que não havia motivos para o curatelado pagar a conta do almoço ocorrido em um domingo para seus familiares comerem, apesar de o curatelado ter alto rendimento mensal. Isso contraria manifestamente a vontade presumível da pessoa incapaz: se ela não fosse incapaz e tivesse a gestão do dinheiro, é intuitivo que ela provavelmente convidaria a família para um almoço dominical eventual, ainda mais se ela dispusesse de recursos financeiros para tanto.

Aliás, até mesmo despesas com viagens. Se o curatelado dispõe de recursos elevados, não faz sentido vetar-lhe o prazer de conhecer novos lugares, custeando, inclusive, o curador (que, na prática, atua como um verdadeiro “cuidador). Ora, a experiência demonstra que pessoas com patrimônio elevado viajam e, por vezes, até custeiam empregados domésticos e até mesmo amigos nessas viagens.

Na prática forense, tem-se observado que os curadores, por medo de glosas fundadas em controles meritórios a posteriori indevidos, receiam fugir das despesas básicas do “feijão com arroz”, mesmo quando o curatelado possui elevados recursos.

Trata-se de algo péssimo ao próprio curatelado, que, mesmo dispondo de muito dinheiro, não desfruta – nem mesmo ocasionalmente – de viagens, de refinada gastronomia ou de outros prazeres da vida.

Cuida-se de uma situação absurda causada pela excentricidade burocrática dos controles meritórios a posteriori realizados em muitos casos concretos.

Aliás, a vontade presumível deve ser levada em conta até mesmo quando o juízo é instado a autorizar despesas extraordinárias. Se, por exemplo, o curatelado possui um elevadíssimo valor de aplicação financeira, é presumível que ele compraria um veículo de maior qualidade para se deslocar. Assim, se, por exemplo, o curador solicitar autorização judicial para a compra de um veículo de maior qualidade (em nome do curatelado, é óbvio), isso deve ser autorizado. Não faz sentido sujeitar o curatelado abastado financeiramente a se deslocar em meios de transportes desconfortáveis, tudo sob o argumento tacanho de que o curador também acabará, por tabela, usufruindo do conforto de um novo veículo.

A terceira diretriz a ser levada em conta no controle de mérito a posteriori é o de que, em regra, não cabe ao magistrado adentrar o juízo de conveniência e oportunidade realizado pelo curador, salvo no caso de manifesta e gritante falta de razoabilidade.

O magistrado não pode arvorar-se a “engenheiro de obra já feita” e passar a censurar as avaliações de conveniência e oportunidade realizadas por quem estava efetivamente no chão da fábrica: o curador.

É o curador que vive o calor dos problemas, que enfrenta os imprevistos dos momentos, que lê os sentimentos quotidianos da pessoa incapaz. É ele quem tem condições de decidir o que é mais conveniente e oportuno à pessoa incapaz. O juízo só deve censurar essas despesas nos casos de manifesta e ululante desproporcionalidade.

Assim, se o curador compra uma camisa profissional do Flamengo de R$ 800,00 à pessoa incapaz torcedora desse time Mais Querido do Planeta, essa despesa não deve ser glosada por eventual acusação do juiz de superfluidade, porque é o curador quem foi ungido para interpretar aquilo que fará a pessoa incapaz mais feliz. Não cabe ao juiz glosar essa conta. A exceção é se essa compra se afigurar manifesta e ululantemente desproporcional, o que, em tese, poderia acontecer se o curatelado fosse pobre e dispusesse de um rendimento mensal de R$ 500,00.


[1] OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Economia do Cuidado e Direito de Família: alimentos, guarda, regime de bens, curatela e cuidados voluntários. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Maio 2024, Disponível em: https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td329. Acesso em 7 de maio de 2024.

[2] Art. 1.755. Os tutores, embora o contrário tivessem disposto os pais dos tutelados, são obrigados a prestar contas da sua administração.

Art. 1.756. No fim de cada ano de administração, os tutores submeterão ao juiz o balanço respectivo, que, depois de aprovado, se anexará aos autos do inventário.

Art. 1.757. Os tutores prestarão contas de dois em dois anos, e também quando, por qualquer motivo, deixarem o exercício da tutela ou toda vez que o juiz achar conveniente.

Parágrafo único. As contas serão prestadas em juízo, e julgadas depois da audiência dos interessados, recolhendo o tutor imediatamente a estabelecimento bancário oficial os saldos, ou adquirindo bens imóveis, ou títulos, obrigações ou letras, na forma do § 1 do art. 1.753.

Art. 1.774. Aplicam-se à curatela as disposições concernentes à tutela, com as modificações dos artigos seguintes.

[3] Há alguns manuais ou cartilhas destinados a curadores produzidos por entidades públicas, a exemplo da Cartilha de Orientação aos Curadores de Ministérios Públicos. Citamos, por exemplo, o manual de prestação de contas do MPMG (https://www.mpmg.mp.br/data/files/B7/43/E0/C1/E210081089C6EFF7760849A8/Manual_prestacao_contas_curadores_MPMG.pdf) e do MPDFT (https://www.mpdft.mp.br/portal/pdf/unidades/promotorias/profam/Cartilha_orientacao_curadores_MPDFT.pdf).

[4] OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Economia do Cuidado e Direito de Família: alimentos, guarda, regime de bens, curatela e cuidados voluntários. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Maio 2024, Disponível em: https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td329. Acesso em 7 de maio de 2024.

[5] Sobre a Diretiva de Curatela, reportamo-nos a este artigo: OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Diretiva Antecipada de Vontade lato sensu: o que deve acontecer com a vida, o corpo e o patrimônio no caso de perda de lucidez? Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/Conleg/Senado, agosto 2023 (Texto para Discussão nº 320). Disponível em: . Acesso em: 11 ago. 2023.

[6]  Art. 375. O juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e, ainda, as regras de experiência técnica, ressalvado, quanto a estas, o exame pericial.

[7] OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. O princípio da proteção simplificada do luxo, o princípio da

[8] (1) OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. O princípio da vontade presumível no Direito Civil: fundamento e desdobramentos práticos. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, janeiro 2023 (Texto para Discussão nº 314). Disponível em: www.senado.leg.br/estudos. Acesso 18 jan. 2023. (2) OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Curatela de Pessoas Vulneráveis e as Diretivas de Curatela: fragilidades legais e sugestões de aprimoramento à luz do princípio da vontade presumível. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, abril 2023 (Texto para Discussão nº 316). Disponível em: www.senado.leg.br/estudos. Acesso 18 abr. 2023

[9] OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Curatela de Pessoas Vulneráveis e as Diretivas de Curatela: fragilidades legais e sugestões de aprimoramento à luz do princípio da vontade presumível. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, abril 2023 (Texto para Discussão nº 316). Disponível em: www.senado.leg.br/estudos. Acesso 18 abr. 2023

[10] OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. O princípio da proteção simplificada do luxo, o princípio da