O INADIMPLEMENTO ANTECIPADO COMO INSTRUMENTO DE REALIZAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS

O INADIMPLEMENTO ANTECIPADO COMO INSTRUMENTO DE REALIZAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS

Ícaro Sol Almondes Santos*

Resumo: O estudo a seguir presta-se a investigar e compreender os fundamentos e as hipóteses de ocorrência do inadimplemento antecipado dos contratos e, bem assim, defender a ampla possibilidade de aplicação desse instituto no ordenamento jurídico privado brasileiro, como exercício legítimo dos direitos do credor e instrumento de realização da função social dos contratos. Por conseguinte, analisa-se a possibilidade de o credor buscar judicialmente a resolução do contrato, em momento anterior ao advento do termo, tanto por inadimplemento dos deveres anexos e acessórios, como pelo dever de diligência na mitigação dos próprios prejuízos.

Palavras-chave: Inadimplemento antecipado. Obrigações acessórias. Mitigação dos próprios prejuízos. Função social dos contratos. Direito Civil-constitucional.

1 Introdução

              Imagine-se que determinada rede de hotelaria, destinada a expandir suas atividades pelo litoral da cidade de Recife, tenha celebrado com uma sólida construtora/incorporadora da região um contrato de locação built to suit, que previsse a construção e o aluguel de imóvel edificado dentro do estrito padrão arquitetônico característico dos hotéis daquela empresa. O empreendimento deveria ser entregue três anos após a conclusão do contrato e seria explorado pelos trinta anos seguintes, quando, então, estaria à disposição da construtora/incorporadora.

Considere-se agora que, passados dois anos da celebração do negócio, a construtora sequer tenha finalizado a terraplanagem do local da construção, a despeito do regular dispêndio mensal da prestação locatícia convencionada, gerando na outra parte fundado receio de impossibilidade de cumprimento da prestação no tempo ajustado e, por conseguinte, o desejo de suspender o pagamento da prestação sem que incorra nos efeitos da mora.

Suponha-se, ainda, que perscrutando os motivos da inércia do locador em construir, a locatária tenha tomado conhecimento de que a obra houvera sido embargada pelas autoridades ambientais – fato que não lhe havia sido comunicado – em face de irregularidades relativas às licenças e à destinação de resíduos, e que estariam suspensas quaisquer construções no terreno objeto do contrato.

Estabelecida crise na relação negocial, proveniente do descompromisso da locadora, e diante da inevitável quebra de expectativa da locatária na concretização de seus interesses, deveria esta quedar-se inerte, em excruciante espera pelo advento do termo contratual, para que, só então, pudesse exigir a deflagração das consequências da mora ou do inadimplemento absoluto?

Pensa-se que não. Estendendo-se o raciocínio do caso fictício narrado acima a outros inúmeros casos passíveis de se imaginar, percebe-se forçoso analisar o instituto do termo contratual à luz da função social dos contratos, de sorte a interpretá-lo como elemento instrumental da relação obrigacional, capaz de, ladeado dos demais elementos essenciais e acidentais do contrato, definir sua utilidade de acordo com o interesse do credor.

É com o intuito de compreender e discutir os contornos teóricos desse e de casos análogos que se concebe o presente estudo.

2 A função social dos contratos sob a óptica civil-constitucional

O marco teórico central deste estudo é a doutrina do Direito Civil-constitucional, haja vista que se pretende admitir, adotar e defender a axiologia constitucional como balizadora das relações contratuais privadas. Essa moldura teórica, pensa-se, é a tendência civilista das três derradeiras décadas.

Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, passou a ser intenso o trabalho dos estudiosos do Direito Civil no sentido de interpretar seus institutos tradicionais sob a óptica do projeto constitucional. Para tanto, concebeu-se que os pilares do Direito Civil francês – a saber, a propriedade privada, a ampla autonomia negocial e a família clássica – não mais seriam satisfatoriamente capazes de informar as relações privadas das sociedades modernas. Com efeito, vislumbra-se que o Direito Civil contemporâneo encontra-se mais aberto à satisfação da justiça social e do solidarismo contratual, de sorte a desconstruir a polaridade outrora marcante entre direito privado e direito público[1].

Desse ocaso do individualismo contratual decorrem novos princípios a serem harmonizados com os cânones contratuais clássicos, da seguinte forma: a autonomia da vontade sofre influência e limitação por parte da boa-fé objetiva[2]; o pacta sunt servanda sujeita-se ao equilíbrio das prestações; e a relatividade dos contratos é repensada pelo viés da função social dos contratos.

Sob os ditames da referida advertência, que faz reverência a uma abordagem mais progressista do Direito das Obrigações, o estudo em voga constitui-se de uma análise crítica do inadimplemento contratual, que visa, ao cabo, à defesa da vasta aplicabilidade da resolução negocial por inadimplemento “antecipado” da obrigação contratada, como ferramenta de concreção do princípio da função social dos contratos.

Tal princípio encontra guarida expressa no caput do art. 421 do Código Civil – mesmo depois da alteração que lhe imprimiu a recente Lei nº 13.874/2019: “A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato” – e, na respeitável intelecção de Miguel Reale (1997, p.4), é corolário lógico da função social do direito de propriedade, prevista no art. 5º, inciso XXII, e art. 170 da Constituição de 1988, respectivamente, como garantia fundamental e princípio da ordem econômica.

De matriz constitucional, pois, a função social do contrato estatui que a exegese deste não pode servir como instrumento para práticas abusivas, que gerem prejuízos à parte contrária ou a terceiros. A negligência no trato desse preceito, portanto, implicaria o desprezo pelo papel da boa-fé nas tratativas, na conclusão e na execução dos negócios jurídicos.

Resta claro que o legislador de 2002, harmonizando-se com a hermenêutica constitucional, optou por combinar normas de ordem individual e social, de maneira complementar, utilizando-se de normas abertas, propícias a soluções equitativas e concretas, pensadas sob à óptica da eticidade que informa o Código Civil.

Vive-se, nas últimas três décadas, especial evidenciação e centralização da Constituição Federal no ordenamento jurídico nacional, de modo a urgir a necessidade de conformação da leitura dos institutos de Direito Privado às diretrizes e normas públicas. Dessa constitucionalização do Direito Civil, são prementes a ressignificação e o amadurecimento dos institutos de Direito Privado, de sorte a, ora limitar, ora exorbitar seus âmbitos de alcance. Por essa razão, embora milenar e extremamente solene, o estudo do Direito das Obrigações, domínio em que se insere a temática deste trabalho, não suscita qualquer esgotamento acadêmico.

É nesse contexto que se situa o estudo do inadimplemento das obrigações, especialmente no tocante ao “inadimplemento anterior ao termo contratual”. Com efeito, a presente pesquisa propõe-se a analisar tal instituto, com vistas a concluir que, apesar de não gozar de expressa previsão no Código Civil ou na legislação correlata, o “inadimplemento antecipado” está albergado pelo ordenamento jurídico brasileiro – tomado em sua integralidade – de modo que enseja a deflagração dos efeitos clássicos do inadimplemento.

É de franca importância, contudo, considerar como pano de fundo dessa análise a função social dos contratos, a fim de se aferir em que medida é razoável a relativização das formalidades inerentes ao negócio jurídico, em especial quanto ao critério temporal de exigibilidade da prestação principal.

3 Problematização do inadimplemento contratual

Clóvis Couto e Silva (2006) concebe a relação obrigacional como um processo[3], ou seja, um encadeamento de atos sucessivos com a finalidade de satisfazer o interesse do credor, de modo a dar menor valor à formalidade pactuada quando esta estiver na contramão da funcionalização dos interesses patrimoniais em serviço dos existenciais.

O fim precípuo do contrato, portanto, não é tão somente a execução dos deveres de prestação (principal e secundários), mas a satisfação dos interesses dos sujeitos da relação, que não se realizam a qualquer custo, nem sob qualquer forma. Nesse sentido, quando, no caso concreto, verifica-se, honestamente, que o termo deixou de ser o prazo para o devedor adimplir perfeitamente sua obrigação, satisfazendo o credor, e passou a ser o prazo até o qual o devedor pode postergar a inexigibilidade da prestação, tem-se claro desvio de função do instituto.

Numa perspectiva de funcionalização dos institutos do Direito Civil, é esse desvio de função, aliado a uma abusividade de prerrogativa por parte do contratante, que a nova doutrina civil-constitucional visa a extirpar do ordenamento jurídico pátrio.

Nessa acepção, leciona Gabriel Rocha Furtado (2014, p. 52):

[…] nenhuma situação jurídica subjetiva tem um espaço de existência absoluto e inteiramente imune a limitações, refreamentos e relativizações. Mesmo no âmbito dos negócios jurídicos, exige-se que o exercício de determinado direito seja – mais do que estruturalmente lícito – não abusivo e que promova os valores do ordenamento jurídico. Assim, embora alta expressão da autonomia privada, o exercício de posições contratuais não está isento de um controle de merecimento de tutela.

Nesse diapasão, defende-se a relativização do instituto do termo contratual, de sorte a alargar a aplicabilidade do inadimplemento antecipado e do exercício das prerrogativas de proteção patrimonial pelo credor no ordenamento jurídico privado brasileiro.

Desse modo, mesmo inexistindo dispositivo que preveja a ocorrência do referido instituto de maneira explícita, a verdade é que, em razão da concepção funcionalizada da obrigação, do princípio da boa-fé objetiva e da confiança entre as partes, a antecipação do termo, como forma de proteção do credor frente aos abusos comportamentais do devedor, mostra-se plenamente admissível no Direito pátrio.

Essa perspectiva funcional, enraizada no princípio da boa-fé objetiva, impõe aos contratantes uma série de deveres de conduta que extrapolam as meras disposições contratuais[4] e exigem do devedor comportamentos que não se aperfeiçoam com o mero cumprimento a qualquer modo.

Assim, o formalismo de, em todo e qualquer caso, o credor ter que aguardar silente o advento do termo contratual para, então, poder reclamar a resolução do contrato por inadimplemento da outra parte, não realizaria as novas tendências do Direito Civil.

4 Notas propedêuticas sobre contratos a termo

O Direito Civil brasileiro utiliza-se da expressão termo tanto para designar o elemento acidental do negócio jurídico que subordina seus efeitos a evento futuro e certo, como para a cláusula que estipula prazo de vencimento de uma obrigação. A segunda acepção é a que, de fato, interessa aos propósitos deste trabalho. Trata-se de um marco temporal, o instante em que o tempo deixa de ser óbice à exigibilidade da prestação principal pelo credor.

Nos negócios instantâneos, em que a constituição e a extinção da relação obrigacional coincidem, dado o cumprimento imediato da prestação, não tem sentido a fixação de termo contratual. Em outra banda, nos casos em que se estipula certo lapso temporal entre a conclusão do contrato e sua extinção por adimplemento da prestação principal, resta fixado o termo final da relação obrigacional, com consequências geradas tanto ao devedor (a entrega da prestação), quanto ao credor (a exigibilidade da prestação).

De regra, nos contratos com termo avençado, a condição estrutural de exigibilidade da prestação é o advento desse termo. Eis a tônica do princípio da pontualidade, que se depreende de interpretação contrario sensu do art. 333[5] do Código Civil, já que este traz como excepcional a faculdade do credor de cobrar a dívida antes de vencido o prazo fixado em lei ou convencionado pelas partes.

O dispositivo supra autoriza o vencimento antecipado da dívida – a fim de tutelar o direito do credor – nos casos de falência do devedor, concurso de credores ou insuficiência das garantias oferecidas. Ressalte-se: em nenhum dos casos há, ainda, violação da prestação, muito embora se consubstancie certo receio de não cumprimento.

Note-se que o inadimplemento antecipado não é albergado como exceção à regra do art. 333 do CC, entretanto, é amplamente admitido na jurisprudência pátria que, a depender do caso concreto, não se limite a deflagração dos efeitos do inadimplemento ao decurso total do prazo estipulado. Isso porque, não raras vezes, pode-se antever que a prestação devida não será adimplida no tempo, lugar ou forma contratados, seja por mero juízo de probabilidade ou mesmo por já se haver descumprido algum dever secundário ou violado algum dever de conduta de especial relevância para o negócio jurídico.

5 Definição de inadimplemento anterior ao termo

              Não consta no Código Civil Brasileiro o conceito de inadimplemento. No compêndio da legislação civilista, não quis também o legislador classificar detalhadamente suas hipóteses de ocorrência. A doutrina, porém, não dissona muito ao elaborar tal conceito. Para exemplificar, traz-se à baila a formulação concebida pelo sempre oportuno Caio Mário (PEREIRA, 2016):

O inadimplemento é o descumprimento da obrigação assumida, voluntaria ou involuntariamente, do estrito dever jurídico criado entre os que se comprometeram a dar, a fazer ou a se omitir de fazer algo, ou o seu cumprimento parcial, de forma incompleta ou mal feita.

              Cumpre ressaltar que, quando Caio Mário fala em “mal feita”, ele alude à forma de adimplemento da prestação devida. Oportuno, pois, compreender que o Direito brasileiro não considera que o cumprimento da prestação é adstrito à entrega da prestação dentro do prazo contratado, mas compreende também o dever de atender à forma contratada e, ainda, o lugar convencionado ou estabelecido por lei.

              Ademais, falar de inadimplemento obrigacional consoante as alterações experimentadas pelo Direito Civil nas últimas décadas impende repensar esse instituto em chave funcional e, pois, a ressignificá-lo.

              Por esse espectro de análise, tem sido amplamente aceita na jurisprudência pátria e na doutrina civilista moderna, a possibilidade de configuração antecipada do inadimplemento, sem a necessidade de espera do advento do termo final, uma vez evidenciado que a prestação não será adimplida, que se tornou inútil ou impossível[6] ao credor ou impossível para o devedor, nas variantes obrigacionais de dar, restituir, fazer ou não fazer. A esse instituto, dá-se o nome de “inadimplemento anterior ao termo”, “quebra antecipada do contrato” ou, ainda, “inadimplemento antecipado”.

              Aline de Miranda Valverde Terra[7], em Inadimplemento anterior ao termo, faz, contudo, ressalvas quanto ao uso do termo “antecipado” como adjunto adnominal do termo “inadimplemento”, para o fim de expressar o instituto aqui apresentado. A autora considera que o inadimplemento nunca será propriamente “antecipado”, porque esse termo põe a centralidade da conjuntura de inadimplemento no tempo. Entretanto, o tempo – a que o termo “antecipado” faz referência – não é o marco do inadimplemento. A summa divisio do inadimplemento é, na verdade, a inatingibilidade do cumprimento da obrigação nos moldes contratados.

              Sem embargo de possíveis controvérsias sobre a nomenclatura dada ao instituto, o que, de fato, interessa à ordem jurídica é a limitação do seu conceito, das suas hipóteses de ocorrência e dos efeitos que ele gera no caso concreto. Para o primeiro, tem-se que o inadimplemento anterior ao termo é o instituto apto a ensejar, nos contratos não instantâneos, a resolução contratual em época anterior ao termo ajustado, com a liberação das partes do vínculo negocial, a responsabilidade do contratante que deu causa aos prejuízos experimentados por outrem e a restituição das atribuições patrimoniais prestadas por causa do contrato.

              Em síntese, as hipóteses de ocorrência são aquelas em que o adimplemento da prestação tenha restado impossível ou inútil ao credor, por ato imputável ao devedor.

              Em outras palavras, afiguram-se como suporte fático objetivo constituinte de inadimplemento anterior ao termo as circunstâncias em que a conduta do devedor impossibilita ou inutiliza a prestação para o credor, antes, por óbvio, do termo contratual. Essas circunstâncias ensejadoras do inadimplemento antecipado dar-se-iam através de manifestação de não querer ou não poder adimplir, expressa ou tácita, ou ainda, do “comportamento comissivo ou omissivo do devedor que inviabilizar o adimplemento no termo ajustado, a ensejar perda da utilidade[8] para o credor” (TERRA, 2009, p. 177).

              O suporte fático subjetivo do inadimplemento, por sua vez, consiste na culpa lato sensu[9] do devedor. A eventual impossibilidade da prestação por fato não imputável ao devedor extingue ipso jure a relação obrigacional, isto é, a própria incidência da lei resolve a obrigação.

              Frise-se que a precisa demarcação das hipóteses de configuração do inadimplemento anterior ao termo é vital para que a imposição dos efeitos jurídicos daí decorrentes ao devedor não albergue medida mais austera do que a que é legitimamente comportada por sua conduta. Nesse sentido, por exemplo, Aline Terra (2009) afasta do suporte fático do inadimplemento antecipado aquelas situações identificadas como “mero risco de descumprimento”.[10]

              Diante da premência dessa categorização, cumpre deslindar as referidas hipóteses, quais sejam: manifestação expressa ou tácita[11] de não querer adimplir, manifestação expressa ou tácita de não poder adimplir e ação ou omissão do devedor que inviabiliza o adimplemento antes do termo ajustado, implicando perda da utilidade da prestação para o titular do crédito.

              Na primeira hipótese, o devedor manifesta não desejar cumprir a prestação personalíssima. Em se tratando de manifestação expressa do devedor, que enuncia explicitamente a intenção, conforma-se uma declaração receptícia de vontade, que se faz eficaz simplesmente com a emissão ao credor e o recebimento por ele. Essa declaração deve ser séria, certa, definitiva e livre de vícios. Por sua vez, a manifestação tácita de intenção de não adimplir a obrigação é aquela que se depreende da conduta do devedor.

              Na segunda hipótese, o devedor manifesta não mais ter capacidade de adimplir a prestação devida. A manifestação é configurada por comportamento comissivo ou omissivo do devedor que torne impossível a prestação, seja porque ele retardou a execução de atividades secundárias (preparatórias ou finalísticas) para o cumprimento da prestação principal, seja porque violou deveres de conduta indissociáveis do dever primário de prestação.

              Por fim, na terceira hipótese, trata-se da ocorrência de mora anterior ao termo ajustado em face da qual a prestação devida torna-se inútil, sob a óptica do credor. Podem ensejar essas consequências tanto a violação de deveres de conduta como o próprio retardo na execução dos deveres secundários (preparatórias ou finalísticas). O que importa, de fato, é que a prestação tenha se tornado inútil, ou por desequilíbrio no sinalagma ou por inviabilidade de respeitar o termo essencial de uma obrigação.

              Em brilhante síntese, por Aline Terra (2009, p. 249), eis as hipóteses de inadimplemento anterior ao termo:

[…] se o devedor retarda ou omite ato necessário à execução da prestação devida ou viola dever de conduta, de modo a tornar impossível a prestação ou impedir seu cumprimento no termo ajustado, a implicar sua inutilidade para o credor, se declara que não adimplirá prestação personalíssima ou o faz quando já não é mais possível observar eventual termo essencial, autorizado está o credor a resolver o contrato.

              Desse modo, a autora dá esteio a discussão empreendida, ao reforçar as hipóteses autorizativas do direito potestativo do credor de resolver o contrato, sem a necessidade de implemento do critério temporal.

6 Fundamento do inadimplemento anterior ao termo: visão ampliada de inadimplemento

              O curso natural de um contrato, aquele que se almeja no Direito das Obrigações, é o que conduz ao adimplemento das obrigações contratadas. O ponto ótimo, portanto, da relação obrigacional é aquele em que a finalidade almejada e os interesses cobiçados e pactuados pelos contratantes, enfim, concretizam-se. Em face disso, a obrigação deve ser valorada como instrumento de cooperação social para a satisfação de certos interesses[12].

              Nessa tônica, a resolução contratual é medida excepcional, autorizada desde que a situação experimentada esteja albergada pelas hipóteses previstas em lei e amparada por direito subjetivo legítimo. Se a resolução já é excepcional, frise-se, mais excepcional ainda é resolver a obrigação antes mesmo do advento do termo contratual, requisito temporal que “engatilha” essa possibilidade de resolução – respeitado, claro, o critério de inutilidade da prestação.

              No entanto, não se pode olvidar que, às partes, não é bastante a entrega da prestação que dá nome ao contrato. Além do mister de criar, modificar, conservar ou extinguir direitos, mais do que isso, a relação obrigacional compreende uma panaceia de direitos e deveres de ambas as partes, que se constituem e se alteram ao longo da relação obrigacional, em condutas que miram o adimplemento e a satisfação dos interesses do credor. Isso, todavia, não redunda em desconsideração do interesse do devedor. A defesa dos interesses deste são tão legítimas quanto necessárias, desde que sejam reconhecidos pela lei como dignos de tutela.

              A partir dessa visão funcionalizada da relação obrigacional, a palavra de ordem passa a ser de alargamento dos interesses protegidos pelo ordenamento jurídico. É o que compreende Gabriel Furtado (2014, p. 2):

O privilégio conferido pela análise funcional ao perfil do interesse proporcionou uma nova forma de tutela da relação, que passa a se preocupar muito mais com a inteira satisfação dos interesses juridicamente relevantes das partes.

              Dessa maneira, há uma sensível e significativa ampliação do objeto da relação obrigacional: ele passa a abranger não só o dever primário de prestação, como os deveres secundários e, bem assim, os deveres de conduta impostos pela boa-fé. É o que consignam Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barboza e Maria Celina Bodin de Moraes (TEPEDINO; BARBOZA; MORAES, 2007, p. 698):

Não só a obrigação principal está sujeita ao inadimplemento – e às consequências dele advindas – como também o estão as obrigações acessórias, sejam aquelas previstas expressamente no título, sejam as que decorrem diretamente da lei e aquelas inerentes à própria relação obrigacional. Ganham relevo, nessa perspectiva, os chamados “deveres anexos”, oriundos da cláusula geral de boa-fé (CC, art. 422), tais como os deveres gerais de informação, lealdade, cooperação, proteção dos interesses recíprocos, sigilo etc., cujo desatendimento induz a obrigação de indenizar, com fundamento na responsabilidade contratual.

              Decorre desse alargamento do objeto da relação obrigacional a necessidade de associar o inadimplemento não meramente à não entrega da prestação primária, mas ao conceito do que se denomina prestação devida. Tal entendimento enseja a imperiosa convivência dos deveres de prestação principais, deveres secundários, deveres de conduta, direitos potestativos, situações de sujeição, ônus, faculdades, expectativas jurídicas etc.

              Considerada globalmente, como deve ser, a relação obrigacional revela-se deveras complexa e implica a ampliação também das noções de adimplemento e inadimplemento. Por essa razão, faz-se vital a conceituação, quanto mais completa possível, da expressão prestação devida, já que seu desrespeito enseja, por óbvio, o incumprimento da obrigação.

              Todos os deveres relacionados acima compõem, juntos, o conceito de prestação devida, pelo que o preciso entendimento desse instituto requer a análise pormenorizada de cada um de seus componentes. Cumpre, portanto, para melhor compreender as amplas possibilidades de inadimplemento, diferenciar os tipos de deveres que dão forma à relação obrigacional.

              (i) O dever principal de prestação, também denominado primário ou típico, é aquele que define o tipo da relação, por exemplo, a obrigação de pagar o preço, na compra e venda, ou a obrigação de guardar um objeto móvel até que o depositante o reclame, nos contratos de depósito.

              (ii) Os deveres secundários de prestação, chamados também de acidentais, são paralelos ao principal e englobam dois tipos: os deveres acessórios da prestação principal, cuja serventia é preparar a prestação principal ou assegurar sua perfeita execução; e os deveres substitutivos ou complementares da prestação principal, como o de indenizar prejuízos moratórios ou de ressarcir danos advindos do incumprimento.

              (iii) Por fim, os deveres de conduta ou deveres anexos são aqueles que não têm um caráter instrumental em relação à prestação principal – não servem à sua execução –, mas interessam ao regular desenvolvimento da relação obrigacional, principalmente por força do princípio da boa-fé. São os deveres de cuidado, de informação, que podem eventualmente surgir no curso da relação, sem, contudo, terem um conteúdo prévio determinado. Não são decorrentes, necessariamente, da vontade das partes, mas, sobretudo da boa-fé objetiva. Compreendem-se entre os deveres de conduta os de proteção, esclarecimento e lealdade[13]. Os deveres anexos dividem-se em dependentes ou independentes. Os dependentes são aqueles que seguem as obrigações principais, como “pertenças”; já os independentes são aqueles capazes de serem demandados mesmo depois da prestação da obrigação principal, sendo acionáveis por sua própria natureza.

              Todos os conceitos delineados acima, somados, compõem a prestação devida. Dessa sorte, a inobservância de qualquer desses deveres – exceto os deveres anexos dependentes – constitui violação dessa prestação, de modo a encerrar a mora ou o inadimplemento absoluto, a depender do caso. Se essa violação acontece, pois, anteriormente ao termo, resta configurado o inadimplemento antecipado da prestação contratada.

              Mesmo as hipóteses de inadimplemento resultantes de violação dos deveres de conduta são ensejadoras de inadimplemento[14]. Leia-se Aline Terra (2009, p. 218):

[…] O descumprimento de deveres de conduta, que impede o chamado melhor adimplemento da prestação, importa a não execução da prestação devida. A consequência de tal violação – mora ou inadimplemento absoluto – depende de sua repercussão na prestação devida, vale dizer, depende da possibilidade de o credor ainda receber a prestação (isto é, se ainda é possível para o devedor prestá-la e para o credor recebê-la com utilidade).

              Não se trata, aqui, de intransigência doutrinária, distanciada do caso concreto. A questão é simples: se o adimplemento é a satisfação do interesse do credor sobre a prestação devida, qualquer quebra na expectativa do cumprimento do pactuado que, por causa dada pelo devedor, torne prejudicada a realização do interesse legítimo do credor gera um inadimplemento.

              Esse inadimplemento, contudo, pode ser ou não absoluto, ou seja, suficientemente grave para ensejar uma resolução contratual, isso porque ele pode não vir a tornar a prestação inútil ao credor. Por essa razão, faz-se necessário guardar em lugar de destaque que, embora o descumprimento de qualquer desses deveres possa implicar a quebra de legítima expetativa do credor, ele não necessariamente conduz ao inadimplemento substancial[15] – subespécie inserta no arcabouço de possibilidades de inadimplemento.

              Ademais, cabe salientar que, embora prima facie pareça medida por demais gravosa a eventual resolução de um contrato por violação de um dever de conduta inerente à boa-fé, essa violação pode, dentre outras coisas, a depender do caso, romper definitivamente a confiança e desacreditar a lealdade do credor em seu devedor. Ora, confiança e lealdade, em uma relação que visa à circulação de patrimônio, são elementos essenciais.

              Além disso, é necessário analisar a prestação devida globalmente, como uma unidade. Tal necessidade advém exatamente da premência da satisfação do interesse do credor. Decorre dessa máxima que a obrigação só satisfaz o credor se for prestada no todo, caso contrário, vai causar frustração de justa expectativa. Nas palavras de Aline Terra (2009, p. 269):

Ademais, apesar de diversos os deveres impostos ao devedor, a prestação satisfativa configura uma unidade e, portanto, apenas o comportamento do devedor que executa todos esses deveres se mostra capaz de produzir o resultado útil programado.

              Entende-se o adimplemento não só como o cumprimento dos deveres expressamente avençados, mas também os legalmente impostos pela boa-fé, que ensejam responsabilidade aquiliana. É o que elucida Gabriel Rocha Furtado (2014, p. 18):

[…] que o art. 422[16] do Código Civil brasileiro impõe os já referidos deveres laterais advindos da boa-fé a todos os contratantes – imposição legal direta, independentemente da avença –, de modo que o descumprimento de um desses deveres ensejaria não uma anunciada violação positiva, mas propriamente a mora do devedor por inobservância da forma, nos termos do mencionado art. 394[17].

              Desse modo, está devidamente definido e consubstanciado o fundamento do inadimplemento anterior ao termo: o inadimplemento da prestação devida. Em vista do raciocínio arquitetado até aqui, pode-se concluir que não só ao cabo do termo  fica configurado o inadimplemento do contrato, pela razão simples de que a violação da prestação devida pode se processar – inclusive de modo a dar ao credor a faculdade de resolver a obrigação – durante todo o período de execução do pactuado. É o que esclarece Aline Terra (2009, p. 215):

[…] na hipótese de inadimplemento anterior ao termo, não é preciso se valer de estratagema jurídico para autorizar o credor a exigir seu crédito; essa possibilidade lhe é oferecida desde o momento em que o devedor viola a prestação devida, que passa a ser imediatamente exigível, uma vez que o termo, ao deixar de realizar a função para a qual foi concedido, perde a tutela do ordenamento jurídico.

              Por fim, decorre do fundamento aqui consignado que a configuração do inadimplemento antecipado autoriza o processamento de todos os clássicos efeitos decorrentes do rompimento do contrato. Embora esses efeitos tenham tópicos específicos reservados neste trabalho, cumpre adiantar que mesmo a resolução contratual é facultada ao credor. Contudo, muito embora o presente trabalho tenha o desiderato de estudar o inadimplemento anterior ao termo, defendendo sua larga aplicação às relações civis-patrimoniais sob a égide do Direito Privado brasileiro, faz- se uma ressalva: o caso concreto pode apontar para a visualização de certa abusividade no exercício desse direito, o que não permitiria sua tutela, por se verificar o desrespeito à função negocial concreta para o qual o contrato foi concluso. Em face disso, a alta complexidade e a amplidão das relações obrigacionais faz-se reputar cada vez mais necessária a análise do caso concreto.

7 Risco de descumprimento da prestação devida

              Para melhor compreender e delimitar a abrangência do conceito de inadimplemento anterior ao termo, é de bom alvitre conceituar o que se denomina risco de descumprimento da prestação devida, a fim de diferenciá-lo do primeiro, mas também a fim de defender que, muito embora enseje outros efeitos, esta hipótese de ocorrência também encontra guarida no ordenamento jurídico pátrio.

              Diferente do que se observa nos casos de inadimplemento antecipado, aqui se enquadram as situações que não impossibilitam ou inutilizam, de fato, a prestação, mas que – a despeito de todo o seu potencial reconhecidamente lesivo ao interesse do credor – meramente geram risco iminente de que ela (a prestação) não venha a ser cumprida.

No caso descrito no introito deste ensaio, podem-se vislumbrar as situações subsumíveis a ambos os conceitos. Até o momento em que se pensava tratar apenas de detença do locador em empreender início às obras, havia mero risco de descumprimento do avençado – em que pese a estribada expectativa de conseguinte inadimplemento. Entretanto, quando o locatário toma ciência de que a obra houvera sido embargada, por irregularidades imputadas ao construtor – que se furtou de desempenhar deveres acessórios preparatórios, bem como deveres anexos de informação e transparência para com o credor – afigura-se conjuntura capaz de irromper os efeitos do inadimplemento contratual, em face da ação ou omissão do devedor que inviabilizara o adimplemento antes do termo ajustado.

              Note-se que a precisa distinção entre os conceitos em voga requer especial ênfase na expressão “vir a ser”.       Muito embora o risco de descumprimento possa converter-se em inadimplemento, ainda não o é. Isso porque se tratam aqui das hipóteses em que se constata sensível probabilidade de, no futuro, o devedor não adimplir sua obrigação na forma[18] ajustada. O mero risco de a prestação ser descumprida não configura o inadimplemento antecipado, de modo que não se lhe aplicariam todos os efeitos clássicos do inadimplemento.

              Nesse sentido, a despeito de não se ter vencido o termo contratual – e, portanto, de regra, a prestação ainda não ser exigível –, sob o fundamento de que o credor sempre tem o direito de proteger seu crédito perante situação que ponha em risco o adimplemento da obrigação, bem como fundamento de que ele deve ser diligente para mitigar seus próprios prejuízos, estaria plenamente autorizada a prática de atos conservatórios do direito. A esse respeito, aliás, parte da doutrina nacionalmente aceita tem defendido até mesmo que o devedor não só tem a faculdade, como o dever de agir de modo a mitigar os futuros danos.

              No entanto, para além de diligenciar atos de conservação, o art. 477 do Código Civil[19] autoriza também o credor a empreender a exceção de insegurança, para suspender, desde logo, a prestação que lhe cabe, até que o devedor satisfaça sua contraprestação ou reforce a garantia de cumprimento.

              Outrossim, é de se notar, ainda, que as hipóteses tratadas no art. 333 do Código Civil (já transcrito neste estudo), embora não tenham qualquer aproximação com o inadimplemento antecipado, são todas autorizativas de cobrança da dívida antes do vencimento do prazo para os casos de risco de descumprimento por deterioração patrimonial do devedor. São elas as hipóteses de falência, insolvência, perda e deterioração de garantias dadas a favor do credor. Apesar de não serem relativas à prestação devida em si, fazem clara referência à antecipação do credor em face de premente risco.

              Embora sejam essas as hipóteses expressamente autorizadas por lei, vale ressaltar ser plenamente cabível a aplicação análoga do art. 477 para além da hipótese de deterioração patrimonial do devedor, de modo a abarcar toda e qualquer situação que denote probabilidade de o devedor não adimplir a prestação devida. Ora, a extensão dessa interpretação seria nada mais que uma decorrência da funcionalização dos institutos envolvidos. Veja-se: deterioração autoriza a cobrança da dívida anteriormente ao termo por estar configurado elevado risco de inadimplemento futuro; esse mesmo fundamento, outrossim, seria o que autorizaria a extensão para outros casos. O fundamento é e será o risco de perecimento do direito ao crédito.

              Nesse sentido, as hipóteses de elevada probabilidade de inadimplemento reivindicam o mesmo efeito que a lei confere, por exemplo, aos casos de deterioração das garantias oferecidas pelo devedor. Dessa maneira, a situação de incerteza sobre o cumprimento da prestação no termo futuro, embora ainda não autorize o credor a pleitear a resolução, outorga-lhe a faculdade de “recusar-se à prestação que lhe incumbe” (art. 477 do CC).

8 Efeitos do inadimplemento anterior ao termo na relação obrigacional

              Pelos fundamentos esposados até aqui, configurado o inadimplemento anterior ao termo, ser-lhe-ão aplicados todos os efeitos imediatos das clássicas categorias do inadimplemento: (i) o pedido de perdas e danos, (ii) a demanda de resolução e (iii) a demanda de cumprimento.

              O primeiro dos três efeitos emprega-se a qualquer dos casos de inadimplemento antecipado, por decorrência do art. 389 do CC[20]. Os outros dois efeitos, contudo, dependem do exame da utilidade ou não da prestação ao credor e, portanto, de o credor ainda dever recebê-la ou poder enjeitá-la.

              No caso de se aperfeiçoar o inadimplemento substancial, além das perdas e danos, o titular do crédito pode reivindicar tanto a resolução contratual como o cumprimento da obrigação. Já no caso de mora do devedor, não assistiria razão ao credor que pleiteasse a resolução do contrato, mas tão somente seu cumprimento. Isso porque a resolução de contrato cujo objeto ainda tenha utilidade ao credor, mesmo que o devedor dê causa à insatisfação, configuraria gozo abusivo do direito potestativo de resolver o contrato, bem como usurpação da função desse instituto dentro da lógica negocial. É o que Gabriel Rocha Furtado (2014, p. 19), em síntese, assevera:

[…] tendo-se em conta o disposto no parágrafo único do art. 395 do Código Civil, há que se reconhecer a permanência do estado de mora enquanto a correta execução da prestação devida ainda tiver o potencial de atingir a utilidade e o proveito esperados pelo credor. Assim, não cabe resolver o contrato, por não estar, ao menos ainda, caracterizado o inadimplemento absoluto.

              No que toca às (i) perdas e danos, observa-se a disposição constante no art. 402 do CC, de maneira que o devedor responde, por óbvio, pela reparação pecuniária dos danos emergentes e lucros cessantes. A discussão que se faz oportuna é acerca do quantum indenizatório. Essa mensuração requer análise da conjuntura ensejadora do inadimplemento – caso já não haja prefixação dos danos por cláusula penal ou, em havendo, caso o devedor pleiteie sua equitativa redução, na forma do art. 413 do CC – haja vista que a medida do prejuízo do credor depende do momento em que restou configurada a quebra, do grau em que a prestação foi adimplida e do comportamento do devedor.

              Como parâmetro para essa valoração, o magistrado deve, por exemplo, sopesar se a manifestação expressa do devedor ou o aceite da quebra se sucederam em tempo razoável para possibilitar ao credor a busca de alternativas ao interesse descumprido, principalmente nos contratos com termo essencial (TERRA, 2009, p. 246).

              Outrossim, cabe ao julgador considerar as diligências encetadas pelo credor para tentar se precaver do prejuízo. Ressalva-se, entretanto, que independente da eficácia dessas medidas, afiguram-se indenizáveis os danos emergentes, inclusive porque o ordenamento jurídico deve justamente encorajar a atitude do credor de tentar mitigar seu prejuízo[21], mesmo frente a situação inevitável. Nesse ponto, é forçoso destacar que, embora venha a ser o esmero do credor o responsável pela não majoração dos prejuízos, estes devem ser indenizados tão somente na medida efetivamente sofrida.

              Por sua vez, no que se refere à (ii) resolução, tem-se que, nos casos de inadimplemento em que a prestação se afigure de todo inútil ao credor – caso contrário, estaria configurado o inadimplemento relativo – ela (resolução) é, por excelência, o efeito do inadimplemento antecipado do contrato, sem prejuízo do pedido de indenização. A resolução é uma forma extintiva da relação contratual que opera no plano da eficácia, ou seja, não se funda em vícios na formação do contrato, mas no fato de sua eficácia encontrar-se comprometida por algum motivo superveniente à formação. A quase totalidade das ações judiciais envolvendo inadimplemento antecipado demanda a resolução contratual. Trata-se do remédio de que a parte lesada dispõe para se desvincular definitivamente de um negócio jurídico que perdeu sua função social.

              Por fim, no que concerne à (iii) demanda de cumprimento, tem-se que, configurada a mora ou o inadimplemento substancial da prestação devida, o credor pode ajuizar ação com fim de que seja especificamente cumprida a prestação avençada, desde que ainda útil a ele.

              Grande parte da doutrina civilista moderna tem manifestado simpatia pelos remédios que não geram o rompimento do vínculo negocial, porquanto evitam o uso do direito resolutivo como meio de punir o devedor pela irrealização da prestação principal no tempo, lugar ou modo avençados, e restabelecem o mister do negócio de atender ao objetivo concreto inicialmente pensado. É o que bem expõe Anderson Schreiber (2007, p. 22):

[…] Bem mais que um instrumento a cargo das preferências do credor, como sugere a literalidade do art. 475, a execução específica deve ser vista como medida prioritária, a ser afastada somente naquelas hipóteses em que já reste comprometida a função concretamente desempenhada pela relação contratual.

              Nessa esteira, importa guardar em lugar de destaque que, embora o inadimplemento anterior ao termo deflagre os efeitos do inadimplemento clássico, inclusive o de resolução do contrato, o princípio da conservação dos contratos ainda é máxima que antecede toda a presente discussão, tendo que ser, no possível, realizado.

9 Considerações finais

              O Direito não precede os fatos, mas os reconhece, conhece, abstrai e regulamenta. É estulto considerar que o Direito dita os padrões de vida e as relações da sociedade. Em se tratando de Direito das Obrigações, universo em que as relações patrimoniais de circulação de riquezas tomam a maior parcela, é importante realizar que os fatos jurídicos estudados são, antes de tudo, relações econômicas. Contrato não é um conceito jurídico, mas um conceito econômico que o Direito se apropria e regulamenta.

              Nessa toada, todo o dinamismo, a modernização e a reciclagem das relações mercantis devem ser levados em conta no processo hermenêutico operado pelo aplicador do Direito, de modo a ensejar a constante alteração da sua forma de apreensão, sempre com vistas a perseguir as genuínas funções dos institutos.

              No que concerne ao inadimplemento contratual, não é diferente. A relativização do termo contratual, para fim de deflagração “antecipada” dos efeitos do inadimplemento, nada mais denota que o crescente amadurecimento dos institutos civilistas sob a ótica funcional e progressista do Direito.

              Nesse cerne, o presente trabalho endossa a tese de que a doutrina dá conta de suprir a lacuna legal no que concerne à previsão do instituto do inadimplemento antecipado das obrigações no ordenamento jurídico brasileiro. Mesmo inexistindo dispositivo que preveja expressamente essa ocorrência, a verdade é que, em razão da concepção funcionalizada da obrigação, do princípio da boa-fé objetiva e da função social dos contratos, a antecipação do termo, como forma de proteção do credor frente aos abusos comportamentais do devedor, mostra-se plenamente admissível no Direito brasileiro.

              Extrai-se, como uma das conclusões deste estudo, que as condutas dos contratantes, seja antes, durante ou depois da execução da prestação principal, produzem efeitos jurídicos cuja relevância para o transcurso da relação obrigacional equipara-se à da própria prestação primária.

              Tomando-se o adimplemento como a satisfação do interesse do credor sobre a prestação devida, qualquer quebra na expectativa do cumprimento do pactuado que, por causa dada pelo devedor, torne prejudicada a realização do interesse legítimo do credor gera um inadimplemento. Desta feita, a inobservância de qualquer dos deveres legitimamente expectados constitui violação da prestação devida, de modo a encerrar a mora ou o inadimplemento absoluto, a depender do caso. Se essa violação acontece, pois, anteriormente ao termo, resta configurado o inadimplemento antecipado da prestação contratada.

              Entretanto, devido à complexidade das relações, revela-se cada vez mais necessária a análise do caso concreto. Muito embora o presente trabalho tenha o desiderato de estudar o inadimplemento anterior ao termo, defendendo sua larga aplicação às relações civis-patrimoniais sob a égide do Direito Privado brasileiro, faz- se uma ressalva: o caso concreto pode apontar para a visualização de certa abusividade no exercício desse direito, o que não permitiria sua tutela, por se verificar o desrespeito à função negocial concreta para o qual o contrato foi concluso.

Referências

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BECKER, Anelise. A doutrina do adimplemento substancial no direito brasileiro e em perspectiva comparativista. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 60-77, nov. 1993.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituicao.htm. Acesso em: 4 mar. 2020.

COSTA, Nelson Nery. Direito civil constitucional brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

FURTADO, Gabriel Rocha. Mora e inadimplemento substancial. São Paulo: Atlas, 2014.

MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé objetiva e o adimplemento das obrigações, in Revista Brasileira de Direito Comparado, v. 25, 2004, Rio de Janeiro: Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro, 2004, p. 229-284.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações. 28. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016.

REALE, Miguel. Questões de direito privado. São Paulo: Saraiva, 1997.

SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.

SCHREIBER, Anderson. A tríplice transformação do adimplemento: adimplemento substancial, inadimplemento antecipado e outras figuras. In: Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Padma, v. 32, 2007.

TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. v. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

TERRA, Aline de Miranda Valverde. Inadimplemento anterior ao termo. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.


* Advogado piauiense. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Piauí. Pós-graduado em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pós-graduando em Direito do Trabalho e Previdenciário pela Universidade Federal do Piauí. Pós-graduando em Direito Constitucional e Administrativo pela Escola Superior de Advocacia do Piauí – OAB/PI. E-mail: icaro.solsantos@gmail.com.

[1] “O direito civil constitucional é o resultado da nova realidade do direito, no século XXI. Não tem mais validade a polaridade entre direito privado e direito público, pois este passa a dispor sobre quase tudo, inclusive as relações de família, espaço maior da individualidade. Apesar disto, o direito civil ainda representa o marco da liberdade e da vontade humana que precisa ser preservada e protegida do Leviatã. Assim, o direito civil constitucional não só dispõe sore as matérias de direito privado que foram constitucionalizadas, mas também sobre a defesa da sociedade e da economia livre, frente à voracidade estatal”. (COSTA, 2008, p. 3).

[2] “(…) hoje em dia a boa-fé objetiva comparece ao Direito das Obrigações – firmando-se como um dos seus ‘princípios cardeais’ – porque, modernamente, o signo ‘autonomia da vontade’ é substituído pela ideia de autonomia privada. Já não mais se trata da velha noção de ‘autonomia da vontade’ porque se ata a noção de autonomia não ao ‘querer individual’ ou livre arbítrio, mas ao reconhecimento do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, que se exerce, em larga medida, na vida comunitária, construindo, por isto, ‘uma autonomia solidária’”. (MARTINS-COSTA, 2004, p. 236-237).

[3] Consoante leciona Anelise Becker, em referência a Clóvis Couto e Silva: a relação obrigacional é, modernamente, concebida como um processo de cooperação. O vínculo obrigacional é visto de forma dinâmica, dele decorrendo deveres para ambos os polos da relação jurídica. “Isto, em virtude do entendimento de que esta relação é polarizada por uma finalidade tutelada pelo direito: a cooperação social mediante o intercâmbio de bens e serviços. Para que tal finalidade seja alcançada, é necessário que a obrigação seja cumprida, resultando daí que a relação obrigacional deixa de ser apenas a soma de crédito e débito, estaticamente considerados. […] já não esgotam o seu conteúdo, pois, na verdade, trata-se de uma relação obrigacional complexa, integrada por um conjunto de direito e deveres recíprocos que, portanto, atingem ambas as partes.” (BECKER, 1993, p. 72).

[4] “Pressupõe, bem assim, a clara compreensão dos modos de atuar do princípio da boa fé objetiva, principalmente em sua feição limitadora do exercício de poderes jurídicos e criadora de deveres de conduta, anexos aos deveres principais que decorrem da relação obrigacional concretamente considerada. Tais fatores conduzirão, por seu turno, a que o juiz, não mais um mero “aplicador” da lei estratificada, avalie a possível insignificância do descumprimento de certa obrigação, em face da função econômico-social perseguida pelo contrato como sua causa […]”. (BECKER, 1993, p. 71).

[5] Assim dispõe o Código Civil: “Art. 333. Ao credor assistirá o direito de cobrar a dívida antes de vencido o prazo estipulado no contrato ou marcado neste Código:

I – no caso de falência do devedor, ou de concurso de credores;

II – se os bens, hipotecados ou empenhados, forem penhorados em execução por outro credor;

III – se cessarem, ou se se tornarem insuficientes, as garantias do débito, fidejussórias, ou reais, e o devedor, intimado, se negar a reforçá-las.”.

[6] Referenciando Agostinho Alvim, os autores de “Código Civil interpretado conforme a Constituição da República” lembram que há casos em que a impossibilidade da prestação deve ser considerada do ponto de vista do credor e não do devedor: casos em que o “cumprimento é possível ao devedor, mas o credor não tem como o compelir a cumprir a prestação, como na hipótese de obrigação personalíssima, descumprida deliberadamente pelo obrigado” (TEPEDINO; BARBOZA; MORAES, 2007, p. 696-697).

[7] Este trabalho tem declarada inspiração na obra Inadimplemento anterior ao termo, de Aline Terra (2009).

[8] “[…] a aferição da perda da utilidade deve ser feita levando em consideração o contexto existente à época do exercício da resolução do contrato, pois apenas assim será possível se avaliar com precisão se o comportamento do credor é merecedor de tutela ou abusivo. Essa aferição é importante, ainda, por tornar possível a imprescindível comprovação no nexo de causalidade entre a mora e a perda da utilidade, visto que pode afastar, se inexistente, a extinção do contrato por tal motivo.”. Prossegue o autor defendendo que a impossibilidade de alcance dos resultados práticos até momento decisivo incorporado na finalidade do contrato pode redundar em perda da utilidade e, bem assim, levam à inutilidade, também: a redução do proveito econômico da prestação, em razão de esta ter sido executada em lugar indevido; a quebra de confiança entre os contratantes, ocasionada por indevida contradição a comportamentos anteriores, entre outros. Verificada a permanência dos fatores que conduziram à instauração da mora – elencados pelo art. 394 do CC ou decorrentes da análise da relação obrigacional em perspectiva dinâmica – pode, ao fim, redundando na quebra do sinalagma funcional, implicar legítima resolução contratual. (FURTADO, 2014, p. 129).

[9] Inclui a culpa stricto sensu e o dolo.

[10] Embora guardem semelhanças, os institutos do Inadimplemento anterior ao termo e do Risco de descumprimento da obrigação são diferentes e imprimem efeitos também diversos na relação contratual. Apesar de, prima facie, o último parecer contido no primeiro, a doutrina – em destaque, Aline de Miranda Valverde Terra – faz sua distinção, conforme será explanado no item 7 deste trabalho.

[11] Ressalte-se que, embora a resilição unilateral (art. 473, Código Civil) seja a forma de extinção do vínculo contratual por meio da qual um dos contratantes manifesta o seu desinteresse no prosseguimento da relação contratual e, por assim, prima facie muito se assemelhe com a hipótese consignada acima, com ela não se confunde, haja vista que a resilição unilateral somente se opera nos contratos por prazo indeterminado, em que inexiste previsão contratual para o término da relação e a execução, pois, é continuada. A hipótese aqui tratada, por sua vez, comporta ou resolução culposa do contrato ou inadimplemento contratual.

[12] “Dentro dessa ordem de cooperação, credor e devedor não ocupam mais posições antagônicas, dialéticas e polêmicas. Transformando o status em que se encontravam, tradicionalmente, devedor e credor, abriu-se espaço ao tratamento da relação obrigacional como um todo”. (SILVA, 2006, p. 19).

[13] Aline Terra (2009, p. 40-41) os define da seguinte forma: (i) dever de proteção: “[…] impõe-se às partes proteger o patrimônio e a pessoa da contraparte e seus próximos, de modo a evitar a produção de danos”; (ii) dever de esclarecimento, fazendo referência a Menezes Cordeiro: “[…] obrigam as partes, na vigência do contrato, a prestar informação mutuamente acerca de todos os aspectos concernentes ao vínculo de ocorrências que, com ele, tenham relação, e ainda de todos os efeitos que possam advir da execução contratual”; e (iii) dever de lealdade: “[…] obrigam as partes a se absterem de comportamentos que possam frustrar as expectativas corporificadas ou sustentadas no contrato. Dentre tais deveres, costuma-se apontar os de não concorrência, na vigência de outro contrato; de não celebração de contratos incompatíveis com o primeiro; de sigilo em face dos dados obtidos em razão de determinada relação contratual e cuja divulgação possa prejudicar a outra parte” etc.

[14] Reitera-se a ressalva: no entendimento do autor, somente os deveres anexos ditos independentes ensejam, por si só, configuração do inadimplemento.

[15] “O Código Civil determina que sempre que a prestação devida não puder mais alcançar o interesse do credor, fundamento da avença, ter-se-á por definitivamente inadimplida a obrigação; a contrario sensu, sempre que a prestação ainda for útil ao credor, não há de se reconhecer o seu inadimplemento absoluto”. (FURTADO, 2014, p. 126).

[16] Assim consta no CC: “Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”.

[17] Ipsis litteris: “Art. 394. Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer.”.

[18] A mora não se limita ao não cumprimento da prestação no prazo avençado, mas inclui também a desatenção à forma contratada. É o que o consta no art. 394 do Código Civil brasileiro: “Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer.”.

[19] Art. 477. Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que lhe incumbe, até que aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de satisfazê-la.

[20] Enuncia o Código Civil: “Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado”.

[21] Oriundo do Direito anglo-saxônico, o instituto do duty to mitigate the loss (dever de mitigar o prejuízo) foi considerado, pelo enunciado 169 da III Jornada de Direito Civil do CNJ, aplicável ao ordenamento jurídico brasileiro como corolário do art. 422 do Código Civil. Assim dispõe o referido enunciado: “Art. 422: O princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo.”.

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