Revisão contratual e quebra da base do negócio

Revisão contratual e quebra da base do negócio

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Karina Nunes Fritz
Professora e Parecerista. Doutora (summa cum laude) pela Humboldt Universität de Berlim (Alemanha). Prêmio Humboldt de melhor tese de doutorado na área de Direito Civil (2018). LL.M na Friedrich-Alexander Universität Erlangen-Nürnberg (Alemanha). Mestre em Direito Civil pela PUCSP. Secretária-Geral da Deutsch-lusitanische Juristenvereinigung (Associação Luso-alemã de Juristas), sediada em Berlim. Pesquisadora-visitante no Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Alemão) e bolsista do Max-Planck Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Autora da coluna “German Report”, no Portal Migalhas.

Resumo: Reza a lenda que o legislador teria afastado a teoria da base do negócio do Código Civil. Uma análise histórica, sistemática e teleológica mostra, contudo, que ele a recepcionou por meio da cláusula geral boa-fé objetiva art. 422 CC2002 e que a teoria permite revisar os contratos desequilibrados pela pandemia de Covid-19.

1. Introdução

Chegamos ao fim do ano e o mundo está cansado da pandemia. O que era para ser um período árduo, mas breve, tem se arrastado no tempo sem uma perspectiva ainda concreta de luz no fim do túnel. Os cientistas alertam que ainda conviveremos anos com o vírus. E, para piorar, a segunda onda de Covid-19 é uma realidade, frustrando as expectativas de retorno à normalidade. Na Europa, a maioria dos países adotaram desde outubro medidas restritivas de circulação e de atividades econômicas[1].

Na Alemanha, entrou em vigor dia 16.12.2020 o segundo lockdown rigoroso do ano, com novo isolamento da população e paralisação total das atividades não essenciais. Com isso, os empregadores que não conseguirem colocar os funcionários em home office, terão que dar férias coletivas até 10.01.2021, data até quando vigoram as medidas restritivas[2]. Aparentemente, tratam-se das medidas mais rígidas implantadas durante segunda onda no continente europeu.

Enquanto isso, no Brasil vive-se uma falsa normalidade, embora o país nem tenha saído da primeira onda devido à falta de politica pública coordenada de combate à doença. Os reflexos da segunda onda (alta no número de casos) já são claramente perceptíveis e a imprensa noticia que vários estados e cidades pretendem adotar medidas de restrição de circulação e das atividades econômicas[3], a exemplo de São Paulo, onde desde 12.12.2020 vigora novo horário de fechamento de bares restaurantes[4].

Durante o ano, muito se discutiu acerca dos impactos do coronavírus nos contratos[5] devido da implacável realidade de que as medidas governamentais de combate à pandemia – principalmente: distanciamento social e paralisação das atividades econômicas – provocaram uma disrupção nas cadeias de produção, distribuição e consumo em vários cantos do globo, com consequências imediatas sobre uma série de contratos.

O impacto na economia mundial foi imediato, levando o Fundo Monetário Mundial (FMI)[6] a afirmar que o mundo atravessaria uma recessão econômica só equiparável à grande depressão de 1929, que foi acompanhada de hiperinflação, profunda desvalorização monetária, índices alarmantes de desemprego e miséria. Mas o fato é que as consequências – inclusive econômicas – da pandemia ainda são absolutamente imprevisíveis.

Se é certo que muitos contratos conseguiram ficar imunes ao vírus e puderam ser cumpridos regularmente, outros sofreram – e estão sofrendo – algum tipo de perturbação, seja porque as partes não conseguiram cumprir o acordado, seja porque houve um retardamento no cumprimento das prestações, trazendo à tona o problema da impossibilidade temporária, não regulado no Código Civil.

Porém, a questão central que tem dividido os juristas é se, diante de um evento extraordinário e imprevisível – que provou o isolamento social e a paralisação (total ou parcial) das atividades econômicas em quase todo o mundo, provocando perda ou redução significativa de renda para milhares de pessoas e empresas – os contratos devem ser cumpridos tal como celebrados ou se seria necessária a revisão das condições inicialmente pactuadas. E mais: pode-se afirmar que, nos contratos celebrados após o início da pandemia, os contratantes conseguem antever os efeitos do vírus sobre suas atividades e distribuir racional e adequadamente os riscos contratuais?

Parte significativa da doutrina tem afirmado que só cabe revisão nas duas situações previstas no Código Civil, ou seja, quando a pandemia provocar manifesta desproporção no valor da prestação (art. 317) ou tornar a prestação excessivamente onerosa para o devedor, gerando extrema vantagem para o credor (art. 478). O art. 478 CC2002 abarca aquelas hipóteses em que o devedor precisaria gastar mais para cumprir a obrigação. Mas mesmo aqui só haveria revisão se o credor se dispuser a modificar equitativamente o contrato (art. 479 CC2002), pois a norma só autoriza o devedor a pedir a extinção do vínculo.

Assim, a extrema dificuldade de prestar enfrentada nesse momento por inúmeros devedores por causa da paralisação ou restrição das atividades econômicas determinadas pelo Poder Público não seria abarcada pelo âmbito de incidência dos mencionados dispositivos. Até porque a pandemia não teria afetado a relação contratual em si e o equilíbrio do contrato, mas atingido tão só a esfera individual do devedor, provocando uma piora na situação patrimonial do contratante, o que não autorizaria o recurso à teoria da onerosidade excessiva do art. 478 CC2002, só restando ao devedor o caminho da insolvência ou, no caso de empresa, o da recuperação judicial ou falência[7].

Entretanto, o Código Civil não pode fechar os olhos à ocorrência de um evento da magnitude do coronavírus, que provocou graves impactos na sociedade e na economia brasileira e mundial, perturbando profundamente a base de inúmeros contratos em razão da alteração das circunstâncias presentes no momento da conclusão do negócio. Ao contrário do que uma leitura isolada dos arts. 317 e 478 CC2002 poderia sugerir, uma análise histórica e sistemática mostra que o legislador tentou disciplinar de forma ampla o problema da alteração posterior das circunstâncias e que o Código Civil possui regras aptas a resolver essa perturbação na prestação.

Em síntese, a tese defendida nesse ensaio é que as hipóteses previstas nos arts. 317 e 478 CC2002 são exemplos legais de quebra da base do negócio por alteração posterior das circunstâncias, mas existem outras situações não subsumíveis nesses dispositivos, as quais precisam ser solucionadas com base na interpretação sistemática e teleológica do art. 422 c/c o art. 113 CC2002, pois a boa-fé objetiva é o fundamento material e legal da teoria da base do negócio e regra de ouro da interpretação contratual, como reconhece unanimemente a doutrina internacional[8].

2. O problema da alteração das circunstâncias no Código Civil

Em apertada síntese, o problema da alteração superveniente das circunstâncias se põe toda vez que, após a conclusão do contrato, ocorrem eventos extraordinários que alteram profundamente as circunstâncias presentes no momento da celebração, dificultando enormemente o cumprimento do contrato ou frustrando o fim último do negócio. Exemplo histórico é a desvalorização monetária, que levou os tribunais na França e na Alemanha a extinguir ou revisar os contratos desequilibrados pelos dramáticos efeitos econômicos da 1ª. Guerra Mundial[9].

Dessa forma, a desproporção manifesta entre o valor da prestação incialmente pactuado e o apurado no momento da execução, bem como a onerosidade excessiva da prestação em decorrência de eventos extraordinários e imprevisíveis são duas formas de manifestação do fenômeno da alteração superveniente das circunstâncias. Mas a modificação superveniente das circunstâncias pode ser de tal ordem que torne excessivamente difícil o cumprimento da prestação pelo devedor ou frustre totalmente o fim útil visado com o contrato. O problema é que esses casos não se deixam enquadrar nem no art. 317, nem no art. 478 do Código Civil.

Obviamente, disso não se pode concluir que o legislador quis deixar esses casos sem solução, o que seria grave incoerência valorativa, vez que ele deixou registrado no material histórico a intenção de abarcar outros casos de desequilíbrio contratual superveniente. De fato, uma análise da origem do art. 317 CC2002 mostra que, ao contrário do comumente afirmado, a intenção do legislador não foi instituir a correção monetária de dívidas em dinheiro[10].

A redação original do art. 315 do Projeto de Lei 634/1975 (atual art. 317 CC2002) previa a revisão judicial quando a desvalorização da moeda provocasse manifesta desproporção no valor da prestação[11]. No Congresso Nacional, a redação foi objeto de várias emendas, uma das quais alterou o dispositivo para ordenar a correção monetária do valor da dívida face à desvalorização monetária[12].

Por falta de consenso, chegou-se até a propor a eliminação da norma, mas o Senador Josaphat Marinho conseguiu preservar o dispositivo argumentando que Miguel Reale alertava que “não se deve considerar apenas ´a desvalorização da moeda`, para admitir a revisão de valores convencionados. Outros fatores, e imprevisíveis, poderão ocorrer, gerando o desequilíbrio das prestações e justificando o reajustamento delas”[13].

Dessa forma, inquestionável que a tônica da elaboração do art. 317 CC2002 foi a expansão da revisão contratual a outras hipóteses diversas dos casos de desvalorização monetária[14]. Isso mostra que a intenção do legislador foi disciplinar o problema da alteração posterior das circunstâncias e talvez explique a positivação da hipótese da excessiva onerosidade da prestação.

Com a melhor das intenções, o legislador buscou inspiração na jovem codificação italiana, cujo art. 1.467 foi praticamente traduzido e diluído na tríade normativa dos arts. 478, 479 e 480 CC2002. Segundo o art. 478 CC2002, quando, em contratos de execução continuada ou diferida, a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato.

Uma simples leitura revela que a norma é uma cópia agravada do art. 1.467 da lei italiana, que não exige que da alteração das circunstâncias resulte extrema vantagem para a contraparte. A rigidez da norma é evidente. A uma, porque sugere que apenas contratos de longa duração estariam sujeitos a alterações posteriores em sua base, quando, a rigor, qualquer negócio ainda não executado está sujeito aos impactos de eventos extraordinários[15]. A duas, porque exige que o fato causador da perturbação seja extraordinário e imprevisível, enquanto a doutrina acentua que os efeitos do evento é que precisam ser qualificados como tal[16]. A três, porque exige extrema vantagem para o credor, de difícil configuração prática, principalmente em tempos de pandemia.

Para piorar, prevê a extinção do vínculo como efeito jurídico imediato da alteração das circunstâncias. Inspirado no art. 1.467, inc. 3 do Código italiano, o art. 479 CC2002 faz depender a preservação do contrato da vontade exclusiva do credor ao afirmar que a resolução pode ser afastada oferecendo-se o “réu” a modificar equitativamente as condições do contrato. Afirma-se que o legislador teria atribuído ao credor o poder de realizar “oferta de modificação equitativa”, vedando-se ao devedor pleitear a readaptação do contrato[17].

Não por acaso, doutrina e jurisprudência tentam amenizar – pela via da redução teleológica[18] – a rigidez da norma a nível dos pressupostos e dos efeitos. Enquanto o Enunciado 365 da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal confere caráter acidental ao requisito da extrema vantagem, o Enunciado 175 ressalta que a imprevisibilidade e extraordinariedade dizem respeito não apenas ao evento, mas também às suas consequências. Já o Enunciado 176 diz que “em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual.”, entendimento seguido pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça[19].

Aliás, a teoria da onerosidade excessiva não tem sido criticada apenas    no Brasil, mas também na própria Itália, especialmente agora em tempos de pandemia. Recentemente, Francesco Macario, Professor da Universidade de Roma, teceu ácidas críticas ao regime de alteração posterior das circunstâncias do Codice Civile, considerado inadequado para resolver as profundas alterações na base dos contratos, provocadas pelas medidas governamentais de combate à Covid-19.

Taxando a teoria da onerosidade excessiva de doutrina espúria, estranha à tradição civilista e às grandes codificações (francesa e alemã), berço, respectivamente, das teorias da imprevisão e da quebra da base do negócio[20], ele critica o legislador pela formulação da figura da eccessiva onerosità, inadequada para solucionar os problemas postos pelo coronavírus, principalmente face ao efeito imediato da risoluzione dei contratti[21], que vai na contramão da tendência internacional de conservação do vínculo por meio da revisão, aceita há muito no direito alemão e, mais recentemente, no direito francês (art. 1.195 Code), apenas para mencionar as duas principais codificações.

Macario propõe, então, uma releitura do dispositivo à luz do princípio da boa-fé objetiva (correttezza e buona fede) e de princípios constitucionais, como a solidariedade social, consagrada no art. 2º da Constituição italiana, a fim de que se construa um direito contratual mais solidário, distinto daquele voluntarista, fundado no pacta sunt servanda e, dessa forma, possa a jurisprudência italiana dar soluções materialmente justas ao problemas provocados pela pandemia[22].

Essa crítica deve servir de alerta para o Brasil, principalmente quando se considera que o legislador de 1975 tentou, à toda evidência, criar um amplo regime jurídico revisional de alteração das circunstâncias, mas o resultado saiu aquém do pretendido, pois não se consegue deduzir dos arts. 317 e 478 CC2002 um sistema revisional amplo e uniforme, pois as normas consagram apenas duas hipóteses de modificação das circunstâncias – quebra na equivalência das prestações e onerosidade excessiva do custo da prestação – deixando de fora outras situações de excessiva dificuldade de prestar e de frustração do fim do contrato, não subsumíveis nos estreitos limites dos dispositivos.

3. Alteração posterior das circunstâncias como perturbação da prestação

A deficiência do regime revisional não impede o reequilíbrio dos contratos pelo julgador (juiz ou árbitro), pois o Código possui regras aptas a solucionar o problema da modificação superveniente das circunstâncias, amplamente reconhecido pela doutrina mais abalizada como um tipo de perturbação da prestação, que se põe durante a fase de execução contratual. Em última análise, como coloca Thomas Finkenauer, a alteração das circunstâncias é um problema de interpretação contratual, pois o intérprete tem que reequilibrar a relação contratual.

Investigar a ocorrência de evento modificador das circunstâncias presentes no momento da celebração é apurar a concretização de riscos, que são inseguranças em relação ao desenrolar de circunstâncias relevantes para o contrato[23]. E isso exige do intérprete (re)definir quem, no caso concreto, deve suportá-los[24]. A modificação posterior das circunstâncias é problema que se põe, portanto, na fase da execução contratual, pois o cumprimento do contrato ainda é possível, porém extremamente dificultoso, tornando irrazoável exigir seu cumprimento tal como acordado. Ou, então, o cumprimento, embora possível, é inútil, pois o fim útil perseguido com o contrato tornou-se inalcançável.

Nesses casos, surge a dúvida sobre se a parte, para quem o cumprimento se tornou irrazoável, poderia se desvincular do contrato ou pleitear sua adaptação de forma a tornar suportável a execução da obrigação, restaurando o sentido (Sinn) e o fim (Zweck) do negócio para ambas as partes[25]. Isso só se faz pela via hermenêutica. E o Código Civil brasileiro possui regras claras a respeito.

Com efeito, o art. 422 CC2002 diz expressamente que as partes são obrigadas a executar o contrato de boa-fé, enquanto o caput do art. 113 CC2002 reza que os negócios jurídicos – e, portanto, o contrato – devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do comércio. A boa-fé, intocada pela Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019), é, dessa forma, cânone interpretativo-integrativo máximo do contrato, pois, enquanto as partes podem afastar os usos e costumes, não podem afastar a boa-fé objetiva, princípio estruturante do direito, principalmente do direito obrigacional[26].

A análise da alteração posterior das circunstâncias precisa, portanto, ser feita à luz da boa-fé objetiva[27], nos termos dos arts. 422 e 113 CC2002, principalmente nos casos não subsumíveis nos arts. 317 e 478 CC2002. De início, cabe alertar que a boa-fé objetiva não é uma fórmula vazia ou mero reforço do pactuado, como concebido por obsoleta doutrina francesa. Ela possui dois comandos jurídicos claros: agir com retidão (lealdade) e ter consideração pelos interesses legítimos da contraparte[28], os quais formam o chamado núcleo duro do conceito, guiando a aplicação do princípio em suas diversas funções.

Enquanto pelo mandamento de agir com lealdade, o art. 422 CC2002 fomenta e tutela a confiança[29] necessária ao bom funcionamento do comércio jurídico e do mercado, o segundo comando exige que a parte, conquanto busque a satisfação de seus próprios interesses, leve em consideração os interesses legítimos da outra, o que implica, de um lado, em limitação da própria conduta e, de outro, em equilíbrio das posições jurídicas, vale dizer, em equilíbrio contratual.

Ao exigir consideração pelos interesses da contraparte, a boa-fé requer que o contrato desequilibrado por evento extraordinário, imprevisto pelas partes no momento da alocação dos riscos, seja reequilibrado a fim de tornar suportável (razoável) o cumprimento pelo contratante prejudicado. Por isso, diz Karl Larenz, a reanálise do contrato – por via da revisão ou extinção – é um imperativo da boa-fé[30]. Esse é o mesmo sentir de Agostinho Alvim, responsável pelas alterações no Direito das Obrigações no Anteprojeto do Código, que, falando sobre a introdução da boa-fé objetiva, disse:

“Foi inserida uma norma relativa à boa-fé nos contratos. No Código Civil não há essa norma. No Código alemão existe, assim como em outros códigos. Na Alemanha, ela salvou aquela questão da imprevisão, porque os alemães rejeitaram a teoria da imprevisão em 1896, quando promulgaram o Código, porque o contrato ainda estava no apogeu. ´O contrato é lei entre as partes`. Mas eles não puderam resistir à pressão dos acontecimentos. Depois de 1914, passaram a admitir a teoria da imprevisão[31]. A jurisprudência alemã é posterior a 1914. E com que fundamento? Porque a lei não tratava da imprevisão. Eles foram buscar fundamentos justamente na boa-fé dos contratos. E não pode haver boa-fé nos contratos se uma das partes escraviza a outra parte, ou se há lucro desmesurado e prejuízo fatal para a outra parte. De modo que, nos contratos, não só no início, como diz o Projeto, na formação, mas também na execução, sempre deve haver boa-fé.”[32]

Essa passagem é muito significativa, porque deixa claro, ao contrário do comumente afirmado, que o legislador de 1975 também buscou inspiração no direito alemão e viu na regra da boa-fé o fundamento para a revisão contratual. Ele não afastou a teoria da base do negócio. Ao contrário, supôs tê-la recepcionado por meio da boa-fé objetiva do art. 422 CC2002, tal como ocorreu na Alemanha. Não há dúvidas, portanto, de que a boa-fé objetiva é o fundamento da teoria da base do negócio, porque não há boa-fé nos contratos desequilibrados.

Aliás, não por outra razão defende-se até que a boa-fé objetiva imporia ao credor o dever de renegociar o contrato desequilibrado, obrigando-o a empreender esforços para readaptação do pacto. Embora consagrado em instrumentos legislativos recentes[33], esse dever é antigo e vem sendo discutido na doutrina alemã, no âmbito da teoria da quebra da base do negócio, pelo menos desde a década de 40 do século passado[34].

Independente da discussão acerca da existência ou não desse dever, o importante aqui é observar que se a boa-fé impõe um dever de renegociar, é porque exige, como antecedente lógico e necessário, a revisão do contrato desequilibrado. Logo, constitui grave incoerência lógica e valorativa defender a existência de um dever de renegociar com base na boa-fé e afastar a teoria da base do negócio, no seio da qual aquele se desenvolveu como decorrência da necessidade de readaptação do contrato.

Assim, a boa-fé exige que o contrato seja readaptado quando eventos extraordinários provoquem profundas alterações nas circunstâncias existentes no momento da celebração, tornando extremamente dificultoso o cumprimento da prestação e irrazoável, à luz das peculiaridades do caso, a manutenção inalterada do contrato. Em apertada síntese, esse é o cerne da teoria da base do negócio.

4. A teoria da base do negócio

A teoria da base do negócio baseia-se em uma ideia simples e concreta: todos os contratantes, ao celebrar um negócio, partem – de forma consciente ou não – de certos pressupostos e circunstâncias objetivas de natureza social, econômica, política, jurídica etc., sobre as quais formam a decisão de contratar[35]. Essas circunstâncias, embora não cristalizadas em cláusulas contratuais, formam a base do negócio e, por isso, precisam se manter relativamente estáveis até o momento da execução para que o contrato, enquanto ato de regulação jurídico-privada, faça sentido e permita alcançar o fim último perseguido pelas partes.

Se depois da celebração ocorrem eventos graves e excepcionais que alteram profundamente as circunstâncias que formaram a base do negócio, tornando irrazoável (ou inútil) o cumprimento da prestação, o contratante prejudicado pode pedir a revisão (ou a extinção) do contrato, desde que se possa concluir, à partir de ampla análise das circunstâncias do caso concreto, principalmente da repartição dos riscos, que a manutenção do contrato nas condições originalmente pactuadas se tornou irrazoável.

A regra, portanto, sempre foi – e continua sendo – a de que os contratos devem ser cumpridos tal como acordados, em respeito aos princípios da autonomia privada, da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda) e da segurança jurídica. Por isso, a revisão ou extinção do negócio são medidas excepcionais e, nesse sentido, a Lei da Liberdade Econômica, ao acentuar no art. 421, Parágrafo Único do Código o “princípio” da excepcionalidade da revisão contratual, apenas positivou o óbvio.

Porém, sempre que eventos posteriores provoquem profundas alterações na base do negócio e tornem irrazoável a manutenção inalterada do vínculo, o juiz ou o árbitro[36] deve intervir para readaptar o estritamente necessário para reequilibrar a relação contratual. E aqui, novamente, a Lei de Liberdade Econômica, ao introduzir “princípio” da intervenção mínima, não traz novidade alguma à dogmática obrigacional[37].  

A doutrina alemã analisa a base do negócio sob dois aspectos: subjetivo e objetivo[38]. A base subjetiva do negócio são as representações feitas por ambas as partes – ou por uma delas, mas, nesse caso, de forma perceptível e compartilhada pela outra – acerca da existência ou ocorrência futura de determinadas circunstâncias, sobre as quais se forma a decisão de contratar[39]. A proximidade com a figura do erro suscita dúvidas, mas um exemplo bem conhecido ajudar a elucidar.

No caso da coroação do Rei Eduardo VII, os proprietários dos imóveis por onde passaria o cortejo real alugaram as sacadas de seus edifícios para os expectadores assistirem a cerimônia, mas o monarca adoeceu e a festividade foi cancelada. No momento da celebração, locador e locatário partiram do pressuposto comum (não do erro!) de que a cerimônia seria realizada. Na verdade, o espaço só foi alugado para aquele fim específico e a repentina moléstia do soberano foi um acontecimento tão extraordinário que impactou gravemente a base do negócio, tornando-o sem sentido: embora possível, o cumprimento não permitiria mais o alcance do fim útil do contrato para os locatários[40].    

A base objetiva do negócio, por sua vez, são as circunstâncias de natureza sociais, econômicas, políticas, jurídicas, naturais, tecnológicas, etc., objetivamente existentes no momento da contratação e decisivas para a formação da vontade de contratar, as quais precisam permanecer constantes para que o contrato faça sentido[41]. Por óbvio, diante da dinamicidade da vida, não se exige a imutabilidade, mas a constância dessas circunstâncias. Pode-se dizer que a base do negócio é como uma foto feita com a nostálgica câmera analógica, a qual pode amarelar ou desbotar com o passar dos anos, mas não pode perder a nitidez. Se perde a nitidez, quebra-se a base do negócio.

Didática é ainda a distinção entre a grande base do negócio (große Geschäftsgrundlage), que abrange as condições acima mencionadas, cuja alteração – por meio de guerras, golpes, mudanças políticas (ex: divisão e reunificação alemã), revoluções, catástrofes naturais, etc. – pode impactar fortemente os contratos e a pequena base do negócio (kleine Geschäftsgrundlage), que se refere a todos os demais eventos excepcionais que provocam efeitos mais limitados sobre o contrato individual[42].

Por óbvio, não é qualquer evento que provoca a quebra da base do negócio. É necessário que se trate de fato extraordinário (anormal) e grave o suficiente a alterar profundamente a base do negócio, tornando excessivamente difícil o cumprimento ou subtraindo todo sentido ao contrato. Além disso, é necessário que o risco da alteração das circunstâncias não possa ser imputável à esfera jurídica da parte penalizada.

É equivocado pensar que a teoria da base dispensa o requisito da imprevisibilidade. É bem verdade que a (im)previsibilidade não tem a centralidade conferida pela teoria francesa da imprevisão, mas esse elemento é apurado no momento em que o julgador analisa a alocação contratual ou legal dos riscos, exercendo influência sobre o juízo de valor acerca da razoabilidade da revisão[43]. Nesse sentido, Jörg Neuner afirma que, em regra, a parte deve suportar as desvantagens resultantes das alterações supervenientes que ela previu ou poderia ter razoavelmente previsto, principalmente quando não adota medidas adequadas para prevenir ou minimizar os impactos do evento[44]. Mas a regra tem exceções[45].

De qualquer forma, a previsibilidade do evento e suas consequências precisa ser apurada concretamente e não de forma meramente abstrata[46]. Se o evento, porque previsível, recai na esfera de risco da parte, seja porque o assumiu contratualmente, seja porque lhe pode ser imputável, descabe a revisão contratual[47]. O saudoso Ruy Rosado de Aguiar dizia, por isso, que a alteração decorrente do risco natural do negócio era irrelevante[48]. Mas repise-se: é preciso delimitar a esfera de risco dos contratantes no caso concreto, pois só os eventos lá inseridos impedem a revisão contratual.

Sintetizando, pode-se dizer que a revisão contratual pressupõe uma profunda e anormal alteração das circunstâncias do negócio, não reconduzível à esfera de risco das partes, que torne irrazoável – à luz da boa-fé objetiva – a execução do contrato, tal como inicialmente pactuado ou frustre o fim último do negócio. Geralmente, costuma-se dizer que o cumprimento se torna irrazoável quando se pode concluir, à partir da análise de todas as circunstâncias do caso, inclusive da repartição dos riscos, que uma das partes não teria celebrado o contrato ou o teria feito sob outros termos e condições se tivesse antevisto as profundas alterações na base do negócio[49].

Dessa forma, a doutrina alemã elenca três pressupostos para a configuração da quebra da base do negócio: (i) profunda e anormal alteração nas circunstâncias do negócio (elemento real); (ii) irrazoabilidade da manutenção inalterada do contrato (elemento normativo); (iii) constatação, a partir do caso concreto, de que as partes, se tivessem antevisto o evento e seus efeitos, teriam celebrado o contrato com outro conteúdo ou quiçá desistido da celebração (elemento hipotético)[50]. Em outras palavras: evento anormal, grave alteração na base do negócio, irrazoabilidade da manutenção inalterada do vínculo e não imputabilidade do risco à parte prejudicada.

A quebra da base do negócio legitima o contratante prejudicado a pleitear a readaptação do contrato, só cabendo sua extinção de forma subsidiária, quando a revisão se mostrar impossível ou irrazoável para uma das partes. Durante o desenvolvimento da teoria da base do negócio, doutrina e jurisprudência alemãs formaram três grupos de casos: (i) quebra da equivalência das prestações (Äquivalenzstörung); (ii) dificuldade de prestar (Leistungserschwernisse) e (iii) perturbação do fim do contrato (Zweckstörung)[51].

Segundo Larenz, pode-se falar em quebra da equivalência (sinalágma) das prestações quando eventos imprevistos, com os quais os partícipes do comércio jurídico normalmente não precisam contar, provocam grave desproporção entre as prestações, destruindo a relação de equivalência acordada incialmente entre as partes[52]. Todo contrato de longa duração está sujeito a riscos, principalmente a oscilações no mercado, de modo que apenas aquelas variações que ultrapassam o quadro da normalidade autorizam a revisão ou, excepcionalmente, a extinção contratual[53].

A causa da quebra da equivalência são as mais variadas e, como acentuou Reale, não se limita à desvalorização monetária[54], sendo certo que, como mostra a experiência alemã, eventos como alterações políticas e legislativas podem provocar fortes perturbações na equivalência das prestações[55]. Essa hipótese de quebra da base objetiva do negócio está prevista no art. 317 CC2002, que, ao falar em desproporção manifesta do valor da proporção, abrange casos em que há variações para mais ou para menos do montante estipulado. Dessa forma, a revisão contratual pode conduzir ao aumento ou à redução da prestação devida ou a outra solução razoável para as partes.

A dificuldade excessiva de prestar ocorre quando eventos anormais, posteriores à formação do contrato e externos à esfera de risco e de influência do devedor, alteram profundamente as condições existentes no momento da celebração, tornando extremamente difícil o cumprimento. Exemplo clássico é o aumento do custo da prestação, a onerosidade excessiva da prestação do art. 478 CC2002. Em geral, o devedor suporta o chamado “risco do esforço” (Aufwandsrisiko), isto é, o risco da elevação dos custos para a realização da prestação devida. Porém, quando eventos anormais tornam o cumprimento excessivamente dispendioso, de modo que se possa concluir, à luz da boa-fé, que a variação extrapola os limites razoáveis do sacrifício[56], deve o juiz ou árbitro revisar o contrato, principalmente se os eventos excepcionais estão fora da esfera de risco e de influência do devedor.

A dificuldade extraordinária de prestar pode decorrer de vários fatores, como profundas alterações nas condições políticas, econômicas, sociais, naturais ou jurídicas, presentes no momento da celebração e que serviram de base para a decisão de contratar. Decisivo é que eventos anormais, não imputáveis à esfera de risco e responsabilidade da parte afetada, atinjam e modifiquem consideravelmente a relação contratual concreta, causando sérias desvantagens para uma das partes e tornando irrazoável o cumprimento tal como inicialmente acordado.

A Alemanha, que experimentou profundas transformações sociais, políticas e econômicas ao longo da história, adaptou – com amparo no princípio da boa-fé objetiva – diversos contratos por ocasião das grandes guerras, do colapso monetário em 1923, da grande depressão em 1929, da divisão e reunificação do país, além de outros eventos internacionais, como a crise do petróleo em 1973 ou a revolução iraniana, que impactou internamente vários contratos[57]. E isso ocorreu, por vezes, alterando-se a própria alocação (contratual ou legal) dos riscos[58].

A jurisprudência alemã reconhece até, embora em casos excepcionalíssimos, que alterações jurídicas (legislativas ou jurisprudenciais) podem impactar seriamente o cumprimento dos pactos, dificultando extremamente o cumprimento[59]. Esse casos mostram que não apenas a onerosidade excessiva do custo da prestação autoriza a revisão contratual, mas também a extraordinária dificuldade de prestar. Por certo, não se trata de dificuldade pessoal e subjetiva, risco de qualquer devedor, mas da extrema dificuldade provocada por eventos anormais e externos à esfera de risco e influência do devedor. Os casos de frustração do fim do contrato também deixam claro que não só a perturbação do sinalágma, i.e., da economia interna do contrato legitima a intervenção estabilizadora do juiz.

De fato, a frustração do fim do contrato ocorre quando o fim relevante do negócio torna-se inalcançável para uma das partes, sem que a prestação se torne impossível[60]. Com efeito, a frustração do fim do contrato distingue-se dos casos em que a prestação se torna definitivamente impossível, pois naquela o que se torna inalcançável não é a realização da prestação em si, mas o fim útil do negócio.

Durante o desenvolvimento teórico da base do negócio na Alemanha, muitos doutrinadores procuraram subsumir no instituto da impossibilidade alguns casos hoje reconhecidos como alteração posterior das circunstâncias, o que se explica pela centralidade e amplitude dada ao instituto da impossibilidade pelo BGB/1900. Mas a Reforma do Direito das Obrigações de 2002 delimitou bem o campo normativo do instituto da impossibilidade, retirando de lá situações nas quais o cumprimento não se tornou impossível, mas apenas extremamente difícil, as quais são agora subsumíveis no § 313, cláusula geral da alteração das circunstâncias. Aqui vale a regra: o que pode ser cumprido, não é impossível.

5. Pandemia e quebra da base do negócio

Diante do exposto, não há dúvidas de que a pandemia de Covid-19 – catástrofe natural que provocou um colapso generalizado nas cadeias de produção, fornecimento e consumo em todo mundo, com reflexos em inúmeros contratos – provocou a quebra da grande base de muitos negócios. As medidas de combate à pandemia (principalmente: isolamento social e paralisação das atividades econômicas) não guardam paralelo na história recente da humanidade e suas consequências ainda são imprevisíveis[61].

No momento da celebração, os contratantes pressuporam objetivamente a normalidade do cotidiano, principalmente a liberdade de locomoção e circulação, e o pleno exercício de suas atividades comerciais[62]. Nenhum deles anteviu – nem poderia razoavelmente ter previsto – o isolamento social, a ausência de trabalhadores nos locais de trabalho, o fechamento de fronteiras, de fábricas e estabelecimentos comerciais, o cancelamento de feiras e eventos, as disrupções nas cadeias de produção, fornecimento e consumo, dentre outros inúmeros distúrbios provocados pelo vírus, o que, por si só, já desautoriza imputar o risco da pandemia a apenas uma das partes.

E um ano após o início da crise de saúde pública na China, ainda não há previsão segura de retorno à normalidade, o que dificulta a celebração e a renegociação de contratos durante a pandemia. Por óbvio, apenas no caso concreto pode se verificar o preenchimento dos pressupostos para a revisão contratual. Mas não há dúvida de que a pandemia constitui evento anormal e extraordinário que provocou profundas alterações nas circunstâncias socioeconômicas existentes ao tempo da celebração e massivas consequências negativas sobre a execução de muitos contratos.

Cabe, porém, ao contratante individual demonstrar os impactos concretos da pandemia no contrato e, dessa forma, o nexo causal entre as medidas governamentais e a excessiva dificuldade de prestar a fim de legitimar a readaptação do contrato, nos termos do art. 422 c/c art. 113, caput do Código Civil, se a situação fática não se deixar subsumir diretamente nos arts. 317 e 478 CC2002.

Note-se que a extrema dificuldade de prestar provocada pela pandemia não se equipara à mera dificuldade financeira subjetiva do devedor, na qual ele incorre em condições de normalidade. A situação provocada pela pandemia é diferente, porque a extrema dificuldade de prestar decorre de fato extraordinário, imprevisível e alheio à esfera de risco e responsabilidade do contratante, i.e., do fato de que as pessoas (físicas e jurídicas) tiveram que reduzir ou paralisar suas atividades econômicas para conter o avanço do vírus, por ordem do Poder Público, o que justifica a revisão[63].   

Atente-se, ainda, que a readaptação do contrato por quebra da base do negócio em decorrência da pandemia poderia ser justificada até por meio de uma interpretação conforme a Constituição nos casos, por exemplo, em que o cumprimento inalterado do contrato pudesse levar o devedor à ruina ou nos contratos de locação, que têm por objeto um bem existencial, diferente dos bens eminentemente patrimoniais, como explica Jörg Neuner, lembrando que proteção da moradia é direito fundamental e que a casa é o centro espacial da vida, ao qual a pessoa está fundamentalmente ligada[64].

Isso seria uma consequência natural em um ordenamento jurídico que se pretende constitucionalizado, que elenca a tutela da pessoa e de sua dignidade a fundamento do Estado e a valor a ser perseguido, e que proclama a eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas. Mas, como demonstrado, nem se precisa recorrer à Constituição para justificar a revisão contratual, porque o Código Civil já oferece uma solução adequada ao problema, o que tornaria meramente retórico o recurso à “tábua axiológica” da Constituição.

Por isso, não cabe ao interprete readaptar os contratos por considerar a crise financeira “evidente” ou “generalizada” ou presumir que o contratante fora afetada pelas medidas governamentais[65], devendo, ao contrário,exigir a demonstração dos pressupostos da revisão, até para evitar condutas oportunistas daquele devedor que já estava inadimplente antes da pandemia ou que quer dela se aproveitar para se desvincular do contrato indesejado. Essa conduta é vedada pelo instituto do abuso do direito (art. 187 CC2002) que, não custa lembrar, foi revigorado após sua releitura à luz da boa-fé.

6. Conclusões  

Diante do exposto, percebe-se que a teoria da base do negócio é uma decorrência lógica e axiológica da boa-fé objetiva, consagrada no art. 422 CC2002. A uma, porque nada pode ser mais desleal que exigir o cumprimento do contrato profundamente perturbado em sua base por eventos extraordinários e alheios à esfera de risco e responsabilidade do contratante, razão pela qual alguns procuraram até impor um dever de renegociar ao credor.

A duas, porque a boa-fé exige a correção do desequilíbrio superveniente ao exigir que a parte tenha consideração pelos interesses legítimos da outra, primando pelo equilíbrio (justiça) contratual. Ademais, a alteração superveniente das circunstâncias é um problema de perturbação da prestação que irrompe na fase da execução: o cumprimento ainda é possível, mas extremamente dificultoso ou sem sentido. Isso exige que o negócio seja readaptado pela via interpretativa, nos termos do caput do art. 113 CC2002, a fim de tornar o cumprimento suportável para ambos ou extinto, em último caso.

Em torno da teoria base do negócio existem muitos mitos e incompreensões. Um deles é o de que ela dispensa a imprevisibilidade do evento e, por isso, só teria sido recepcionada no âmbito do microssistema do consumidor, vez que o art. 6º, inc. V do CDC dispensa tanto a imprevisibilidade, quanto a extraordinariedade do evento, bastando para a revisão que evento superveniente provoque a onerosidade excessiva da prestação.

Porém, como demonstrado, a imprevisibilidade do evento e seus efeitos tem relevância para a teoria da base do negócio[66]. A rigor, a lei do consumidor, atendendo à vulnerabilidade do consumidor, instituiu um regime revisional próprio que não se deixa reconduzir a nenhuma teoria revisionista: imprevisão, base do negócio ou onerosidade excessiva. A míngua de denominação mais adequada, pode-se dizer que se trata de uma teoria objetiva da onerosidade excessiva, em homenagem à terminologia utilizada na própria lei.

  A teoria da base do negócio, enquanto decorrência lógica da boa-fé objetiva, resulta da interpretação sistemática do ordenamento, consistindo em aperfeiçoamento interno do próprio sistema jurídico diante da incompletude do regime revisional da codificação. Os arts. 317 e 478 CC2002 não esgotam os casos de alteração superveniente das circunstâncias, deixando sem tutela outras situações de excessiva dificuldade de prestar e de frustração do fim do contrato, ainda quando submetidos a interpretação extensiva ou a redução teleológica.

Daí a necessidade de se recorrer ao art. 422 CC2002, cláusula geral que permite a recepção da teoria da confiança e dos institutos desenvolvidos à partir da boa-fé, a exemplo da obrigação como processo, dos deveres laterais de conduta, responsabilidade pré-contratual, violação positiva do contrato e responsabilidade pós-contratual, os quais, embora não positivados, são plenamente reconhecidos em doutrina e jurisprudência.

A aplicação da teoria da base do negócio é, portanto, uma solução extraída do próprio sistema jurídico[67], em harmonia com a boa-fé objetiva, com o equilíbrio (justiça) contratual e com a autonomia privada, pois prioriza a conservação do vínculo face à dissolução, favorecendo, em última análise, a segurança jurídica, o comércio jurídico e o mercado, pois permite que o contrato reajustado seja cumprido. Além disso, é uma solução compatível com as regras, princípios e valores do sistema jurídico, que, alçando a eticidade a princípio estrutural do Código, exige que o desequilíbrio superveniente dos contratos seja corrigido em respeito à justiça contratual e à boa-fé.

A teoria da base do negócio é mais ampla que as teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva, permitindo abarcar uma diversidade maior de casos, inclusive a frustração do fim do contrato, não subsumíveis nos arts. 317 e 478 CC2002. Além disso, privilegiando a revisão dos pactos, está em harmonia com os princípios da autonomia privada e da conservação dos contratos. Nesse aspecto, é mais vantajosa que o instituto da impossibilidade, cujo efeito primordial é a extinção do vínculo através da liberação do devedor da obrigação[68]. Por isso, deve-se ler com ressalvas as correntes que pretendem solucionar o problema da alteração superveniente das circunstâncias recorrendo à impossibilidade. Diante do exposto, conclui-se que a construção de um regime revisional harmônico e uniforme passa pela interpretação sistemática e teleológica dos arts. 317 e 478 CC2002 à luz do princípio da boa-fé objetiva, consagrada nos arts. 422 e 113 CC2002 como regra de conduta durante a fase de execução e cânone interpretativo-integrativo do negócio jurídico. A revisão contratual com base na teoria da base do negócio fornece ao intérprete o instrumental para readaptar os contratos desequilibrados em razão das profundas alterações nas condições socioeconômicas, provocadas pela pandemia, que, enquanto evento extraordinário e de consequências imprevisíveis, não pode ser suportada apenas por uma das partes.


[1] Alemanha e França anunciam novo “lockdown” de 1 mês. Valor Econômico, 28.10.2020.

[2] Um panorama sobre as novas regras encontra-se em: NUNES FRITZ, Karina. Alemanha decreta lockdown total pela segunda vez no ano. Coluna German Report, Portal Migalhas, 15.12.2020.

[3] Confira-se: Coronavírus: ´Brasil já está na 2ª onda de covid-19`, diz pesquisador da USP. BBC News Brasil, 18.11.2020 e Para conter 2ª onda de covid-19, restrições de circulação devem voltar. Exame, 28.11.2020.

[4] O Decreto 65.320, de 01.12.2020, do Governo de São Paulo, atualiza as normas do plano estadual de combate à pandemia e estende o período de quarentena até 04.01.2021. De acordo com o plano, os bares devem fechar às 20h e os restaurantes, às 22h, ficando proibida a venda de bebidas alcoólicas depois das 20h. In: www.saopaulo.sp.gov.br. Leia ainda: Associação de bares de SP irá à Justiça contra restrições impostas por Doria para frear covid. Terra, 14.12.2020. Minas Gerais, Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul e Distrito Federal também adotaram diversas medidas restritivas de funcionamento das atividades econômicas a fim de conter o avanço da segunda onda de Covid-19. In: Estados têm aumento de casos de covid e medidas de restrição voltam. Radio Agência Nacional, 03.12.2020.

[5] A produção foi intensa, embora, como bem lembra Alexandre Guerra, as boas lições requeiram prudência, reflexão, distanciamento, calmaria e nada disso se teve em 2020. Solidariedade, autoresponsabilidade e contrato: lições de protagonismo nas relações contratuais de direito privado em tempos de pandemia de covid-19. Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura 55 (2020), 95-115, p. 95.

[6] FMI diz que mundo entrou em recessão e enfrenta momento sombrio. Valor Econômico, 03.04.2020.

[7] Dentre outros: TEPEDINO, Gustavo; DONATO OLIVA, Milena e DIAS, Antônio Dias. Contratos, força maior, excessiva onerosidade e desequilíbrio patrimonial. Conjur, 20.04.2020, p. 3.

[8] SCHUBERT, Martin. Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch. Bd. 2, §§ 241-432, 7a. ed. Wolfgang Krüger (red.), München: Beck, 2016, § 242, Rn. 151, p. 116 (citado: MüKomm-BGB). No Brasil, como assinala Alexandre Guerra, “não mais se questiona hoje que a boa-fé é uma imperativa disposição positiva (concreta) que deve influenciar toda interpretação das obrigações decorrentes do negócio jurídico.”. Op. cit., p. 99.

[9] Para uma análise detalhada da teoria da base do negócio permita-se remeter a: NUNES FRITZ, Karina. Alteração posterior das circunstâncias: a caminho da quebra da base do negócio. In: Aline de Miranda Valverde Terra; Gisela Sampaio da Cruz Guedes (coord.), Inexecução das obrigações: pressupostos, evolução e remédios, vol. 2, Rio de Janeiro: Editora Processo (no prelo).

[10] No mesmo sentido: LÔBO, Paulo. Direito civil – obrigações. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 185.

[11] Art. 315. Quando, pela desvalorização da moeda, ocorrer desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento da execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que preserve, quanto possível, a equivalência das prestações.

[12] Art. 317. Quando, pela desvalorização da moeda, ocorrer desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento da execução, o juiz determinará a correção monetária, mediante aplicação dos índices oficiais, por cálculo do contador.

[13] No Parecer, lê-se o seguinte: “Esclarece o professor Reale que o Anteprojeto de 1975 não cogitava da correção monetária. A Câmara dos Deputados é que a incluiu no Projeto, o que não lhe parece adequado. Entendendo, porém, que poderão subsistir dispositivos legais sobre a correção monetária, considera aconselhável restabelecer-se, sob nova redação, que sugeriu, o critério do Anteprojeto de 1975, ao invés de adotar-se a supressão proposta. Inegavelmente, a objeção da emenda é relevante. Não se justifica a consagração da correção monetária no texto de um Código Civil. A ideia do eminente Supervisor da Elaboração do Anteprojeto procede, modificada, em parte, a redação oferecida, sobre porque não se deve considerar apenas ´a desvalorização da moeda`, para admitir a revisão de valores convencionados. Outros fatores, e imprevisíveis, poderão ocorrer, gerando o desequilíbrio das prestações e justificando o reajustamento delas.” Apud: MARINO, Francisco. Revisão contratual. Coimbra: Almedina, 2020, p. 29.

[14] Nesse sentido: MARINO, Francisco. Op. cit., p. 29.

[15] FINKENAUER, Thomas. MüKomm-BGB, Bd. 2, v§ 313, Rn. 48, p. 1899. O autor ressalta que a jurisprudência alemã permite, em casos excepcionalíssimos, a revisão de contratos já executados. Discutida é a ainda incidência do instituto da quebra da base do negócio sobre negócios jurídicos unilaterais.

[16] Até a doutrina francesa reconhece que decisivo não é se o fator modificativo das circunstâncias é imprevisível, mas se a extensão de seus efeitos o são. Nesse sentido: CAUVIN, Morgane. Das Leistungsstörungsrecht des französischen Code civil nach der Vertragsreform 2016. Tese de doutorado, Universidade de Colônia (Alemanha), 2020, p. 187.

[17] MARINO, Francisco. Op. cit., p. 19.

[18] LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3ª ed. Tradução: José Lamego, Lisboa: Gulbenkian, 1997, p. 555. BYDLINSKI, Franz. Grundzüge der juristischen Methodenlehre. Wien: WUV, 2005, p. 69.

[19] Segundo o Superior Tribunal de Justiça, “não obstante a literalidade do art. 478 do CC/02 – que indica apenas a possibilidade de rescisão contratual – é possível reconhecer onerosidade excessiva também para revisar a avença” em respeito ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, expressamente adotado em diversos dispositivos da codificação. STJ, REsp. 977.007/GO, T3, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 24.11.2009, DJe 02.12.2009.

[20] Per un diritto dei contratti più solidale in epoca di ´coronavirus`. Giustizia Civile.com, n. 3/2020, 1-8, p. 4.

[21] Nesse sentido: MACARIO, Francesco. Op. cit., p. 6. Antonio de Mauro, investigando se o Código italiano possui “anticorpos” suficientes para fazer frente a evento absolutamente extraordinário e imprevisível, de dimensão mundial, como o coronavírus, diz que o direito obrigacional e contratual não pode confiar apenas nos instrumentos da impossibilidade superveniente e na onerosidade excessiva da prestação para enfrentar a emergência que a Itália está vivendo. É necessário que se permita a revisão geral dos contratos, ainda que com base nos valores constitucionais, principalmente do princípio da solidariedade e da boa-fé objetiva, a fim de se impedir a falência ou o olocausto economico. Pandemia e contratto: spunti di riflessione in tema di impossibilità sopravvenuta della prestazione. Giustizia Civile.com, n. 3/2020, 1-8, p. 5ss.

[22] Op. cit., p. 7.

[23] FINKENAUER, Thomas. MüKomm-BGB, Bd. 2, § 313, Rn. 59, p. 1902.

[24] FINKENAUER, Thomas. MüKomm-BGB, Bd. 2, § 313, Rn. 3-4, p. 1885.

[25] LARENZ, Karl. Lehrbuch des Schuldrechts – Allgemeiner Teil. Bd. 1. 14a. ed. München: Beck, 1987, p. 329.

[26] Dentre outros: KREBS, Peter. Anwaltkommentar BGB. Bd 2, Teilband 1 (§§ 241 bis 610). Barbara Dauner-Lieb et al. (org.). Köln: Deutscher Anwalt Verlag, 2005, § 242, Rn. 18, p. 32.

[27] Nesse sentido, AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. Rio de Janeiro: Aide, 1991, p. 151. Tentar separar a boa-fé objetiva da teoria da base do negócio é ir contra a realidade histórica e a dogmática obrigacional.

[28] Karl Larenz, em sua obra sobre direito justo, explica que a boa-fé objetiva não é uma fórmula vazia na qual tudo cabe. Ela exprime e introduz um componente ético-jurídico na ordem jurídica, exigindo das partes uma atuação reta e com consideração pelos interesses do outro, como é esperado no comércio jurídico por partícipes que pensam honestamente. Richtiges Recht – Grundzüge einer Rechtsethik. München: Beck, 1979, p. 85ss.

[29] SCHUBERT, Claudia. MüKomm-BGB, Bd. 2, § 242, Rn. 9, p. 77.

[30] Karl Larenz coloca, com precisão, que a consideração das alterações das circunstâncias é um imperativo da boa-fé objetiva. Schuldrecht I, p. 322. A doutrina alemã é uníssona nesse sentido. Dentre outros: HOHLOCH, Gerhard. Erman BGB. Bd. 1, Harm Peter Westermann (coord.). 11a. ed., Köln: OVS, 2004, § 313, Rn. 4 , p. 1218.

[31] Atente-se que aqui Agostinho Alvim se refere claramente à teoria da revisão contratual, posto que a Alemanha, como ele mesmo acentuou, nunca recepcionou ou aplicou a teoria francesa da imprevisão, mas desenvolveu com base na boa-fé objetiva a teoria da base do negócio à partir da doutrina canônica da cláusula rebus sic stantibus, raiz das duas principais teorias revisionistas: imprevisão e base do negócio.

[32] In: MENCK, José Theodoro Mascarenhas (org.). Código Civil Brasileiro no Debate Parlamentar – Elementos históricos da elaboração da Lei 10.406, de 2002. Volume 1 – Audiências públicas e relatórios (1975-1983), Tomos 1 a 4. Câmara dos Deputados, 2012, p. 985, sem grifos no original.

[33] No plano de diplomas legais internacionais confira-se: Art. 6:111 (2) dos Principles of European Contract Law (PECL) e Art. 157 do Código Gandolfi. O Art. 6.2.3 do Unidroit, que trata de hardship, não impõe expressamente o dever de renegociar, mas condiciona o acesso ao juiz ao fracasso da renegociação. Já o Comment C, Art. III-1:110 do Draft Common Frame of Reference não impõe às partes um dever de renegociar, mas apenas as exorta a buscar uma solução consensual. Nesse sentido: CAUVIN, Morgane. Op. cit., p. 197.

[34] Desde os idos de 1940 havia anteprojetos ao BGB visando positivar a revisão contratual por quebra da base do negócio e a obrigar as partes a colaborar para a justa adaptação do conteúdo do contrato. SCHMIDT, Jürgen. J. von Staudingers Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch. Bd. 2, Michael Martinek (redator), 13a. ed. Berlin: De Gruyter, 1995, p. 593. Com a Reforma de Modernização do BGB em 2002, a discussão reascendeu, mas a comissão revisora optou por não consagrar o dever de renegociar devido a forte oposição doutrinária, que nega a natureza de dever jurídico. FINKENAUER, Thomas. MüKomm-BGB (2016), Bd. 2, § 313, Rn. 122, 1921. No direito francês, Morgane Cauvin informa que a doutrina majoritária entende que o legislador não consagrou um dever, mas um ônus de renegociar o contrato no atual art. 1.195, inc. 2 do Code, que impõe à parte prejudicada com a alteração das circunstâncias o poder de requerer a renegociação, mas não obriga a contraparte a renegociar. Isso, porque o dispositivo prevê a intervenção do juiz caso haja recusa de renegociar ou a renegociação fracasse, quando então ele decidirá por readaptar ou extinguir o contrato. Op. cit., p. 195s.

[35] Até no direito francês reconhece-se atualmente, após a consagração do instituto da alteração das circunstâncias no art. 1.195 Code, que o conceito de changement de circonstances deve ser interpretada de forma ampla a abarcar acontecimentos econômicos, políticos, sociais, eventos fáticos como consequências de guerras e – o que tem relevância em nosso tempo – desenvolvimentos tecnológicos que tornem ultrapassada a utilização de determinados instrumentos para a execução do contrato. Nesse sentido: CAUVIN, Morgane. Op. cit., p. 183. 

[36] Morgane Cauvin aborda interessante discussão em torno da legitimidade ou não dos árbitros de revisar os contratos. Diz ela que a ideia de que Judges do not make contracts, aceita durante muito tempo tanto na França, quanto no plano internacional, está perdendo força diante dos recentes desenvolvimentos observados no plano europeu e internacional. Isso, porque, de um lado, a autorização para os árbitros revisarem os contratos desequilibrados em caso de hardship já se tornou um princípio geral, consagrado nos principais instrumentos internacionais de soft law. De outro, perde força a ideia de que o árbitro não pode interferir na esfera contratual das partes e modificar o conteúdo do contrato, o que caberia apenas às partes. A visão moderna atribuiu ao arbitro o poder de readaptar os contratos se as partes conferem competência expressa para tanto no contrato ou, na ausência de previsão, se a lex arbitri , isto é, a lei do local do tribunal arbitral autorizar o juiz a revisar, competência que se estende automaticamente aos árbitros. Assim, por exemplo, se o tribunal arbitral for instaurado na Alemanha, mas o direito aplicável for a lei italiana, que não permite a revisão nos termos do art. 1.467 Codice Civile (ver: art. 478 CC2002), o árbitro poderá readaptar o contrato em caso de hardship, porque a lei alemã assim o permite no § 313 BGB. Decisivo é a lex arbitri e não a lex causae, diz. Op. cit., p. 208.

[37] Sintetizando opinião há muito generalizada na doutrina alemã, Thomas Finkenauer diz que a intervenção no contrato não pode ir além do necessário ao afastamento do risco, não assumido ou não imputável à parte. MüKomm-BGB, Bd. 2, § 313, Rn. 89, p. 1911.

[38] A teoria da base do negócio está positivada no § 313 BGB/2002, constando a base objetiva no § 313 I e a base subjetiva no § 313 II. Reza o dispositivo:

“§ 313. Alteração da base do negócio. (1) Tendo as circunstâncias que serviram de base para o contrato, depois de sua conclusão, alterando-se consideravelmente, de modo que as partes, tendo previsto tais alterações, ou não teriam celebrado o contrato ou o teriam feito em outras condições, pode então ser requerida uma adaptação do contrato se, considerando-se todas as circunstâncias do caso concreto, especialmente a repartição contratual ou legal dos riscos, a manutenção inalterada  do contrato se mostrar irrazoável.

(2) Ocorre da mesma forma uma alteração das circunstâncias quando representações essenciais, que serviram de base para o contrato, revelam-se falsas.

(3) Se a adaptação do contrato não for possível ou não exigível para uma das partes, pode a parte prejudicada resolver o contrato. No lugar do direito de resolução tem-se para as relações obrigacionais duradouras o direito de rescisão.”

No original: “§ 313 Störung der Geschäftsgrundlage. (1) Haben sich Umstände, die zur Grundlage des Vertrags geworden sind, nach Vertragsschluss schwerwiegend verändert und hätten die Parteien den Vertrag nicht oder mit anderem Inhalt geschlossen, wenn sie diese Veränderung vorausgesehen hätten, so kann Anpassung des Vertrags verlangt werden, soweit einem Teil unter Berücksichtigung aller Umstände des Einzelfalls, insbesondere der vertraglichen oder gesetzlichen Risikoverteilung, das Festhalten am unveränderten Vertrag nicht zugemutet werden kann.

(2) Einer Veränderung der Umstände steht es gleich, wenn wesentliche Vorstellungen, die zur Grundlage des Vertrags geworden sind, sich als falsch herausstellen.

(3) Ist eine Anpassung des Vertrags nicht möglich oder einem Teil nicht zumutbar, so kann der benachteiligte Teil vom Vertrag zurücktreten. An die Stelle des Rücktrittsrechts tritt für Dauerschuldverhältnisse das Recht zur Kündigung.“

[39] Dentre outros: SCHULZE, Reiner. Bürgerliches Gesetzbuch Handkommentar. 8a. ed. Baden-Baden: Nomos, 2014, § 313, Rn. 2, p. 508 (citado: Hk-BGB); HOHLOCH, Gerhard. Erman BGB, § 313, Rn. 7, p. 1219 e AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Extinção dos contratos…, p. 146.

[40] O caso da coroação pode ser, segundo Larenz, considerado tanto um exemplo de base subjetiva, como de base objetiva do negócio. Schuldrecht I, p. 327. Outro exemplo de quebra da base subjetiva do negócio foi o caso julgado pela Corte infraconstitucional alemã – Bundesgerichtshof (BGH) – no qual os pais de uma moça doaram para ela e o companheiro certa quantia em dinheiro para ajudar na compra do imóvel que serviria de residência ao jovem casal. Porém, pouco tempo depois da doação, o casal se separou e os pais da moça pediram a devolução da parte doada ao companheiro. O BGH entendeu que embora os pais não pudessem imaginar que vida em comum de ambos duraria para sempre, fez parte da base do negócio, que sustentou a decisão negocial do casal, a expectativa de que ambos passassem mais tempo juntos. Essa representação dos pais foi percebida pelo companheiro, que a ela não se opôs, mas essa representação revelou-se falsa posteriormente com a separação. Não se trata de erro, porque, no momento da celebração do negócio jurídico da doação, os doadores tinham uma clara e correta visão da realidade. Trata-se do processo BGH X ZR 107/16, j. 18.06.2019. Confira-se o comentário da decisão em: NUNES FRITZ, Karina. Fim de união estável constitui quebra da base do negócio em doação. Coluna German Report, Portal Migalhas, 22.10.2019.

[41] LARENZ, Karl. Schuldrecht I, p. 324s. No mesmo sentido: AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Extinção dos contratos…, p. 146.

[42] SCHULZE. Hk-BGB, § 313, Rn. 3, p. 509. No mesmo sentido: AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Extinção dos contratos…, p. 147.

[43] MEDICUS, Dieter. BGB Kommentar. Hans Prütting, Gerhard Wegen e Gerd Weinreich (coord.). 4a. ed. Köln: Luchterhand, 2009, § 313, Rn. 13, p. 573.

[44] Entrevista à coluna German Report, Portal Migalhas, 01.09.2020. Confira-se, dentre outros: HOHLOCH, Gerhard. Erman-BGB, § 313, Rn. 24, p. 1222.

[45] BT-Drucksache 14/6040, p. 175s.  

[46] Ruy Rosado de Aguiar Junior explica, nesse sentido, que: “Não basta que os fatos sejam possíveis (a guerra, a crise econômica sempre são possíveis), nem mesmo certos (a morte). É preciso que haja notável probabilidade de que um fato, com seus elementos, atuará eficientemente sobre o contrato, devendo o conhecimento das partes incidir sobre os elementos essenciais desse fato e da sua força de atuação sobre o contrato.” Mais adiante, reforça a ideia afirmando que “a probabilidade para ter relevância jurídica deve ter um certo grau (notável probabilidade), porque o conhecimento deve abranger os elementos essenciais do fato futuro e a força dos seus efeitos sobre o contrato, causador da onerosidade. Assim, a desvalorização da moeda é um fato provável num regime de desvalorização da moeda, mas poderá haver imprevisibilidade do seu grau, a ser determinado pela própria evolução do processo de desvalorização… Se o homem de diligência normal não tiver condições de pensar o fato e seus elementos essenciais (a inflação e o grau da inflação; a crise política e a sua duração; a crise política e os seus efeitos sobre o contrato, etc.) o fato é imprevisível.”. Op. cit., p. 154s. No mesmo sentido: LÔBO, Paulo. Op. cit., p. 185.

[47] LARENZ, Karl. Schuldrecht I, p 328s.

[48] Extinção dos contratos…, p. 147.

[49] HOHLOCH, Gerhard. Erman-BGB, § 313, Rn. 27, p. 1223.

[50] Dentre outros: JANSEN, Nils. Entrevista à coluna German Report, Migalhas, 19.05.2020 e NEUENER, Jörg. Entrevista à coluna German Report, Migalhas, 01.09.2020.

[51] No Brasil, confira-se: ROSADO DE AGUIAR, Ruy. Extinção dos contratos…, p. 151 e PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. t. 25, Rio de Janeiro: Borsoi, 1959, p. 237.

[52] Schuldrecht I, p. 324.

[53] LARENZ, Karl. Schuldrecht I, p. 324s.

[54] Apud: MARINO, Francisco. Op. cit., p. 29.

[55] LARENZ, Karl. Schuldrecht I, p. 325.

[56] HOHLOCH, Gerhard. Erman BGB, § 313, Rn. 27, p. 1223.

[57] HOHLOCH, Gerhard. Erman BGB, § 313, Rn. 3, p. 1218.

[58] GRÜNEBERG, Christian. Bamberger/Roth-BGB, § 313, Rn. 49, p. 1282.

[59] GRÜNEBERG, Christian. Bamberger/Roth-BGB, § 313, Rn. 56-61, p. 1284.

[60] LARENZ, Karl. Schuldrecht I, p. 326.

[61] Confira-se, nesse sentido, a opinião do famoso historiador Andreas Wirsching em: Ende des Globalismus? Historiker: Corona könnte zur “epochalen Zäsur” werden. Zeit, 19.10.2020; NUNES FRITZ, Karina. Alemanha decreta lockdown total pela segunda vez no ano. Coluna German Report, Migalhas, 15.12.2020. Até o governo alemão reconheceu há poucos dias que as medidas adotadas para frear a propagação do vírus alteraram profundamente a base dos contratos, principalmente dos arrendamentos e das locações comerciais. Regierungsbeschluss, 13.12.2020, p. 5.

[62] WELLER, Marc-Philippe; LIEBERKNECHT, Markus; HABRICH, Victor. Virulente Leistungsstörungen – Auswirkungen der Corona-Krise auf die Vertragsdurchführung. NJW 15/2020, 1017-1022, p. 1021.

[63] A referência terminológica à quebra da base do negócio é uma constante nas decisões judiciais, ainda quando falte ao Judiciário o devido aporte teórico, ausente na própria doutrina. Nesse sentido, pioneiras são as decisões reconhecendo a quebra da base do negócio em razão da pandemia, ainda quando se possa fazer alguns reparos teóricos. Confira-se: Processo 0711806-21-2020.8.07.0001, 22ª Vara Cível de Brasília, juiz Luís Martius Bezerra Júnior, julgado de 23.04.2020 (redução do aluguel de academia de ginástica a 25% do valor vigente até o retorno das atividades); TJSP, AI 2180084-64.2020.8.26.0000, 12ª. Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Tasso Duarde de Melo, j. 14.12.2020 (suspensão da exigibilidade do pagamento ao Banco Bradesco das parcelas do financiamento de veículo usado como micro-ônibus, a partir de maio/2020 enquanto perdurar a suspensão das aulas escolares presenciais, vez que o transporte escolar é a única fonte de renda do devedor. Embora o Tribunal tenha aplicado o Código de Defesa do Consumidor face à interpretação extensiva do conceito de consumidor, o mesmo resultado poderia ser obtido com a teoria da base do negócio com base no art. 422 CC2002); TJSP, AI 2136656-32.2020.8.26.0000, 29ª. Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Fabio Tabosa, j. 30.09.2020 (redução de 50% do aluguel de loja de comércio de vestuário com base na quebra da base do negócio, sem indicação, porém, do dispositivo legal pertinente); TJSP, AI 2146763-38.2020.8.26.0000, 29ª. Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Fabio Tabosa, j. 12.08.2020 (redução em 20% do aluguel comercial).

[64] Entrevista à coluna German Report, Migalhas, 01.09.2020. Atente-se que Jörg Neuner, seguindo a opinião majoritária na Alemanha, sustenta a eficácia indireta dos direitos fundamentais no direito privado.

[65] Processo 1008834-92-2020.8.26.0577, 3ª Vara Cível de São José dos Campos (SP), juiz Luís Maurício Sodré de Oliveira, j. 24.08.2020, no qual o juiz chegou a considerar a dificuldade de prestar em decorrência da pandemia como fato notório, a dispensar produção de prova e determinou a redução de 50% do aluguel pago por posto de combustível até que o PIB nacional retorne ao patamar anterior ao início da pandemia, entendimento que – data maxima venia – carece de razoabilidade; Processo 1004363-06.2020.8.26.0004, 2ª Vara Cível de São Paulo, juiz Carlos Bartoetto Schmitt Corrêa, j. 30.04.2020, no qual reduziu-se em 80% o aluguel de uma joalheria sem a aparente demonstração do nexo causal entre a excessiva dificuldade de prestar e a pandemia, até porque a contratante já estava em dificuldades financeiras por conta de assalto sofrido anteriormente, como referiu o magistrado; TJSP, AI 2136656-32.2020.8.26.0000, 29ª. Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Fabio Tabosa, j. 30.09.2020, no qual reduziu-se em 50% o aluguel de loja de comércio de vestuário com base na quebra da base do negócio, afirmando que a imprevisibilidade, a inevitabilidade e as consequências da pandemia seriam notórias, dispensando-se a demonstração. Ao contrário, negando, com acerto, pedido revisional por “insuficiência probatória da capacidade financeira” do devedor, “que não juntou aos autos prova documental concludente sobre sua absoluta incapacidade de solver as parcelas do preço”, confira-se: TJSP, Agravo Interno Cível 2126936-41.2020.8.26.0000/50000, 1ª. Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Francisco Loureiro, j. 15.07.2020.

[66] Nesse sentido: NERY, Nelson; NERY, Rosa. Manual de direito civil – obrigações. São Paulo: RT, 2013, p. 166.

[67] No mesmo: NERY, Nelson; NERY, Rosa. Op. cit., p. 168s.

[68] Clóvis do Couto e Silva observa que a jurisprudência alemã, com o aperfeiçoamento teórico da teoria da base do negócio, principalmente após a formulação de Larenz, superou o tratamento dos casos como “impossibilidade econômica”. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 107.