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Carlos Eduardo Elias de Oliveira
Consultor Legislativo do Senado Federal, em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário. Professor de Direito Civil (UnB, IDP etc.)
Resumo
O autor, após fazer esclarecimentos conceituais e de nomenclatura acerca dos alimentos e de outras verbas alimentares, trata de questões polêmicas envolvendo a flexibilização da irrepetibilidade dos alimentos familiares. Trata destas questões: (1) retroatividade limitada da sentença que reduz ou afasta os alimentos; (2) direito de “reembolso qualificado” contra o verdadeiro titular do dever alimentar; (3) direito de indenização pelas despesas adicionais com a gestação; (4) direito a exigir contas do outro genitor acerca dos alimentos pagos ao filho menor; (5) direito do genitor guardião e gestor a um pró-labore incluso no valor da pensão paga pelo outro; (6) colação de alimentos pagos a filhos, netos e a outros descendentes; (7) direito de reembolso dos alimentos pagos a ascendente contra o espólio deste; e (8) direito de reembolso dos alimentos pagos ao irmão contra o espólio deste ou no caso de sua prosperidade superveniente.
Palavras-Chave: Alimentos. Pensão. Irrepetibilidade. Flexibilização.
1. Objeto do estudo e síntese do que se defenderá
O presente artigo objetiva tratar de questões polêmicas envolvendo o assunto relativo à irrepetibilidade dos alimentos no Direito de Família. Trata-se de tema recorrente no âmbito do Direito Civil, fruto de construção doutrinária e jurisprudencial e que, por esse motivo, merece a devida análise para eventuais balizas que possam orientar a construção de uma proposição legislativa.
Nesse sentido, este trabalho buscará mapear questões práticas e eventualmente polêmicas que possam demonstrar a necessidade de uma reavaliação e flexibilização do instituto da irrepetibilidade dos alimentos.
Antes de adentrar o tema, faz-se oportuno delimitarmos bem o conceito de alimentos para evitar qualquer desencontro de linguagem técnica.
2. Definição e classificação dos alimentos no Direito de Família
2.1. Definição
Alimentos são prestações periódicas destinadas a custear a manutenção de uma pessoa, ou seja, a garantir a esta o acesso aos bens e serviços relacionados à sua saúde, moradia, educação, lazer e outras necessidades pessoais.
Não necessariamente as prestações são pecuniárias. Há também alimentos in natura, assim entendidos aqueles que consistem na disponibilização do bem ou do serviço a ser consumido pela pessoa como satisfação de suas necessidades pessoais.
Entendemos que a expressão “pensão alimentícia” deve ser considerada
sinônima de alimentos, alcançando, inclusive, os alimentos in natura.
Há, porém, respeitados doutrinadores que restringem o sentido dessa
expressão ao valor pecuniário arbitrado a título de alimentos (Farias e
Rosenvald, 2016, p. 703). Preferimos, porém, uma acepção mais ampla pelo
fato de a legislação não fazer essa restrição. Assim, quando, por exemplo, o
art. 3º, III, da Lei nº 8.009/1990 admite a penhora do bem
de família por “credor da pensão alimentícia”, ele está beneficiando o
pensionista que tinha direito a uma prestação in natura e que, diante da
inadimplência, promoveu uma execução judicial para cobrar o equivalente em
dinheiro dessa prestação in natura.
Alimento não é instituto exclusivo do Direito de Família. Ele também gera efeitos fora desse âmbito, de modo que, nem sempre quando o legislador se vale da expressão “alimentos” ou “pensão alimentícia”, ele está aludindo aos alimentos de Direito de Família. Há vários exemplos disso, como a referência a essas expressões na legislação para autorizar revogação de doação por ingratidão[1], permitir a repetição de indébito contra o menor que contraiu empréstimo para garantir “os seus alimentos habituais”[2] e servir de lucros cessantes[3].
Aliás, até mesmo no art. 206 do Código Civil, que
trata de prazos prescricionais, pode-se ver essa distinção: no inciso I do seu
§ 1º[4], prevê-se uma prescrição de um
ano para a pretensão de hotéis e restaurantes pela dívida relacionada ao
consumo de alimentos, o que obviamente não tem qualquer alusão aos alimentos
fundados em Direito de Família. O prazo prescricional destes últimos é de dois
anos, conforme § 2º do art. 206 do CC[5].
No âmbito do Direito de Família, o fundamento principiológico dos alimentos é o princípio da solidariedade familiar, que, na hipótese de o alimentado ser menor, incapaz ou idoso, alinhar-se-á com o princípio da proteção integral da criança e do adolescente, com o princípio da proteção integral do idoso e com o que chamamos de princípio da proteção do incapaz.
A matéria está regulamentada nos arts. 1.694 ao 1.710 do CC de modo central, embora haja outros dispositivos que prevejam regras específicas para os alimentos familiares, a exemplo dos dispositivos que tratam do dever de mútua assistência entre cônjuges (arts. 1.566 e 1.724, CC) e do dever de sustento dos filhos menores ou dos filhos maiores incapazes (arts. 1.566, IV, 1.590 e 1.725, CC).
O foco neste artigo são os alimentos fundados no Direito de Família.
2.2. Classificação quanto à origem
Quanto à origem (ou à causa jurídica), os alimentos podem ser: (a) legítimos ou familiares; (b) indenizativos; (c) convencionais.
Os alimentos legítimos ou familiares são os que decorrem de normas de Direito de Família. São eles que estamos a focar neste estudo.
Os alimentos indenizativos são aqueles que derivam de normas de Responsabilidade Civil e que consistem em reparar os lucros cessantes sofridos pela vítima em razão da perda de uma fonte de sustento. Como exemplo de alimentos indenizativos, há a pensão alimentícia devida a quem se incapacitou para o trabalho (art. 950, CC) ou a quem perdeu um parente de quem dependia financeiramente (art. 948, CC).
Os alimentos convencionais são aqueles que decorrem de um ato de vontade no âmbito do Direito Civil, como um contrato ou um testamento. A título ilustrativo, se alguém se compromete voluntariamente a pagar um valor mensal a outrem com o objetivo de custear-lhe a manutenção (o que pode ser feito por meio do contrato de constituição de renda previsto no art. 803 e seguintes do CC), essa renda mensal configura alimentos convencionais. Outro exemplo é o legado de alimentos por meio do qual o testador deixa uma pensão alimentícia para o legatário (art. 1920, CC).
2.3. Utilidade Prática: caso da prisão civil
Há utilidade prática na classificação acima. É que, como o regime jurídico de cada uma dessas espécies é diferente, a consequência prática também pode ser diferente.
Trataremos de um exemplo: a prisão civil.
Há discussão se o drástico meio coercitivo da prisão civil é extensível a qualquer tipo de alimentos ou apenas aos alimentos familiares.
O entendimento majoritário é que a prisão civil não é para todos os tipos de alimentos, mas apenas para os alimentos familiares que guardam conexão com a finalidade primária de garantir a sobrevivência do alimentado (os alimentes civis e os alimentos naturais[6]). O STJ chancela esse entendimento, do que dá exemplo recente julgado que negou a prisão civil por inadimplemento da parcela dos “alimentos provisórios” vinculada à restituição de metade das rendas líquidas dos bens comuns[7]. A prisão civil só seria admissível se o inadimplemento fosse da parte dos alimentos provisórios que dissesse respeito aos alimentos civis ou naturais[8].
Portanto, alimentos indenizativos ou convencionais não credenciam a prisão civil, mas apenas algumas subespécies de alimentos legítimos (ou familiares).
Essa foi, a propósito, a intenção do legislador, conforme expressamente consignado pelo então Senador Vital do Rêgo (e atual Ministro do Tribunal de Contas da União) no seu relatório ao projeto que gerou o atual Código de Processo Civil. Veja as palavras do ilustre ministro, que justificava a manutenção, no novo CPC, da redação que o antigo CPC empregava (RÊGO, 2014, p. 145-146):
A definição de “alimentos legítimos”, embora vinculada por muitos civilistas aos alimentos de Direito de Família, não encontra previsão legal, o que pode gerar dúvidas quanto ao alcance do dispositivo, razão por que não convém o seu emprego no dispositivo em epígrafe.
Dessa forma, assim como o atual art. 733 do Código
de Processo Civil não individualiza a espécie de alimentos autorizadores da
prisão civil no caso de inadimplência, o novo Código também não o fará, o que
desaguará na conclusão de manutenção da orientação jurisprudencial pacificada
até o presente momento, firmada no sentido de que o não pagamento de alimentos
oriundos de Direito de Família credenciam a medida drástica da prisão. Aliás,
essa é a dicção do inciso LXVII do art. 5º da Carta Magna e do Pacto de
San José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos), as quais
somente admitem a prisão civil por dívida, se esta provier de obrigação
alimentar.
De mais a mais, os alimentos de Direito de Família são estimados de acordo com a possibilidade do alimentante e a necessidade do alimentado, de modo que, em princípio, o devedor tem condições de arcar com esses valores. Se não paga os alimentos, é porque está de má-fé, ao menos de modo presumido, o que torna razoável a coação extrema da prisão civil em prol da sobrevivência do alimentado. Já os alimentos indenizativos (aqueles que provêm de um dano material) são arbitrados de acordo com o efetivo prejuízo causado, independentemente da possibilidade do devedor. Dessa forma, a inadimplência do devedor não necessariamente decorre de má-fé. A prisão civil, nesse caso, seria desproporcional e poderia encarcerar indivíduos por sua pobreza. O mesmo raciocínio se aplica para verbas alimentares, como dívidas trabalhistas, honorários advocatícios etc. Enfim, a obrigação alimentar que credencia à prisão civil não é qualquer uma, mas apenas aquela que provém de normas de Direito de Família.
Nesse sentido, convém manter a redação do art. 545, caput, do SCD [artigo do projeto que veio a gerar o atual art. 531 do CPC/2015] alinhada à Constituição Federal e ao Pacto de San José da Costa Rica, de maneira a subsistir a previsão de que somente os alimentos provenientes de Direito de Família dão ensanchas à medida drástica da reclusão civil.
2.4. Distinção entre alimentos e outras verbas alimentares
Para fins da classificação de Direito Civil acima, não se podem confundir os alimentos legítimos, indenizativos e convencionais – os quais objetivamente possuem natureza alimentar – com outras verbas de natureza alimentar, como o salário, os honorários advocatícios[9] etc. É verdade que os alimentos são uma espécie de verba alimentar, mas não se confundem com outras verbas.
Os alimentos são rendas (valores pagos periodicamente) com o objetivo de, primariamente, servir de custeio da manutenção de uma pessoa e decorrem de regras de Direito de Família, de Responsabilidade Civil ou de ato de vontade no âmbito do Direito Civil. Além do mais, os alimentos não decorrem de um ato oneroso.
As outras verbas de natureza alimentar existentes no ordenamento, embora
tenham em comum o fato de servirem como fonte de custeio do credor, se
distinguem dos alimentos pelo fato de se originarem de atos onerosos (ex.: salário
e honorários são retribuições de um serviço prestado; pensões pagas por planos
de previdência pública ou privada são retribuições de valores pagos pelo
beneficiário) ou de um ato legal fora do Direito de Família (ex.: benefícios
assistenciais são pagos por força de leis assistenciais, como o Benefício de
Prestação Continuada, previsto no art. 2º, I, “e”, da LOAS[10]).
A distinção acima, fundada na origem do crédito, tem fins meramente didáticos e objetiva deixar claro, no estudo do Direito Civil, quais rendas são designadas pelo Código Civil e pela doutrina como alimentos e quais créditos (que podem ser pagos em forma de rendas ou não) possuem natureza alimentar apesar de não serem batizadas formalmente de “alimentos”.
2.5. Importância prática na legislação para a definição de uma verba como alimentar
Há importância prática em considerar uma verba como de natureza alimentar, ainda que ela não seja propriamente classificada como alimentos. É que, por vezes, o ordenamento jurídico confere certas prerrogativas a essas verbas em razão da sua essencialidade à sobrevivência do credor.
Por exemplo, no âmbito do processo civil, créditos de natureza alimentar (o que abrange os alimentos e as outras verbas alimentares):
a) afastam a exigência de caução na execução provisória (art. 521, I, CPC);
b) credenciam a penhora dos instrumentos de trabalho do devedor,
apesar de, em regra, estes serem bens impenhoráveis (art. 833, § 3º,
CPC);
c) têm preferência no pagamento dos precatórios ou nas requisições de
pequeno valor (art. 100, § 1º, da CF).
Ainda no âmbito do processo civil, há procedimentos específicos para os alimentos (sem abranger outras verbas de natureza alimentar).
É o caso, por exemplo, do rito específico de execução de obrigação de prestar alimentos (arts. 528 ao 533 e 911 e ss, CPC). Esse rito não se aplica às outras verbas alimentares, mas apenas para os alimentos com dois detalhes: (1) a prisão civil somente é admitida para os alimentos familiares vinculada estritamente à manutenção por uma interpretação restritiva dada pela doutrina e pela jurisprudência; e (2) a constituição de capital como forma de garantia de adimplemento é previsto apenas para os alimentos indenizativos, conforme art. 533 do CPC.
Outro exemplo processual que se restringe aos
alimentos é a sua inclusão no rol de exceções à regra da impenhorabilidade de
penhora de bem de família. O art. 3º, III, Lei nº 8.009/1990
admite a penhora do bem de família pelo “credor da pensão alimentícia”, o que
deve ser entendido como abrangendo apenas os alimentos, e não outras verbas de
natureza alimentar.
No âmbito do Direito Administrativo, associando a
boa-fé com as particularidades das verbas de natureza alimentar, é pacífico o
entendimento de que o agente público que, de boa-fé, recebe parcelas de
natureza alimentar não é obrigado a restituir, como sucede nos casos de
salários, gratificações ou outras verbas alimentares por erro ou
má-interpretação de normas pelo Poder Público (STJ, REsp 1762208/RS, 2ª
Turma, Rel. Ministro Herman Benjamin, DJe 28/11/2018).
2.6. Uma questão de terminologia: Pensão vs Alimentos
O verbete “pensão” é expressão genérica que abrange, entre as suas espécies, os alimentos.
Pensão diz respeito a prestações periódicas (equivalente de “rendas”) que são pagas a outrem com o objetivo de custear a manutenção de uma pessoa (o pensionista) sem finalidade remuneratória. Não abrangem os salários ou os aluguéis, porque estes são retribuições por um serviço prestados periodicamente ou pela disponibilidade periódica de uma coisa (finalidade remuneratória).
O termo “pensão” é amplo e alcança os alimentos e outras verbas de natureza alimentar pagas em forma de renda, a exemplo dos valores pagos a título de aposentadoria (prestações periódicas pagas após a cessação dos trabalhos periódicos de uma pessoa como uma forma de “substituir” o salário).
Como os alimentos são uma espécie de renda, o legislador, por vezes, refere-se a eles como “pensão alimentícia”[11], expressão que deve ser utilizada exclusivamente para os alimentos, e não para outras verbas de natureza alimentar. Por exemplo, não é tecnicamente adequado referir-se aos proventos de aposentadoria como “pensão alimentícia”.
Pensão é uma espécie de renda. Este é um termo mais genérico que se refere a quaisquer prestações periodicamente pagas ou geradas como frutos de uma coisa principal, ainda que não tenham a finalidade de custear a manutenção de uma pessoa. Assim, salários, ainda que tenham destinação vinculada à manutenção de uma pessoa, são uma espécie de renda, apesar de não serem pensão. O aluguel pago pelo inquilino também é uma renda por ser um fruto civil da coisa principal (o imóvel locado), embora não possa ser chamada de pensão.
3. Irrepetibilidade dos alimentos e questões polêmicas
3.1. Fundamentos da irrepetibilidade
A irrepetibilidade dos alimentos decorre da ideia de que o alimentado consome os valores percebidos na satisfação de suas necessidades vitais, e não em atividades rentáveis nem em aumento de patrimônio. Por isso, seria incompatível com os alimentos o dever de o alimentado restituir os alimentos pagos se posteriormente eles vierem a ser considerados indevidos: o alimentante não pode pedir a repetição do indébito, não pode pedir de volta o que pagou.
Não há dispositivo legal expresso a amparar a irrepetibilidade; trata-se de construção doutrinária e jurisprudencial, que estende esse raciocínio da irrepetibilidade até para situações fora do Direito Civil[12].
A doutrina e a jurisprudência, porém, com razão, vêm acenando para a relativização da irrepetibilidade, ainda que de forma paulatina. Cuidaremos de hipóteses de flexibilização mais à frente ao tratarmos de casos especiais.
3.2. Questões polêmicas
3.2.1. Redução ou exoneração de alimentos após pagamento de alimentos liminares
Fixados alimentos liminares (provisórios ou provisionais), indaga-se: a superveniência de sentença reduzindo o valor dos alimentos ou afastando totalmente o direito dos alimentos teria ou não eficácia retroativa até a data da citação, de modo a autorizar que o credor peça de volta tudo o que pagou a maior?
O STJ entende que só há essa eficácia retroativa até
à data da citação em relação às parcelas dos alimentos liminares que não foram
pagas: o devedor fica liberado de pagá-las. Nesse caso, não há violação à
irrepetibilidade dos alimentos, pois eles não foram efetivamente pagos. Já em
relação às parcelas já pagas, vigora a irrepetibilidade dos alimentos a afastar
o efeito retroativo. Essa é a inteligência da Súmula nº 621/STJ (“Os efeitos
da sentença que reduz, majora ou exonera o alimentante do pagamento retroagem à
data da citação, vedadas a compensação e a repetibilidade”).
Como se vê, o STJ, levando em conta a
irrepetibilidade dos alimentos, deu interpretação sistemática e restritiva ao
art. 13, § 2º, da Lei de Alimentos (que prevê a retroatividade dos
alimentos fixados na sentença até à data da citação) bem como aos dispositivos
que estabelecem que a execução provisória (aquela baseada em decisão judicial
não transitada em julgado) é risco do exequente, que, na hipótese de
superveniente derrota no julgamento final do processo, teria de restituir o que
obteve e indenizar os danos causados (arts. 297, parágrafo único, e 520, I a
IV, do CPC).
Na prática, o entendimento do STJ acaba por estimular que o credor evite pagar os alimentos liminares na esperança de ser redimido com uma vindoura sentença favorável. Apesar disso, concordamos com o STJ, que foi salomônico ao chegar a uma solução intermediária na matéria, conciliando a irrepetibilidade dos alimentos com a precariedade das execuções provisórias.
3.2.2. “Reembolso qualificado” contra o verdadeiro obrigado pelos alimentos
É verdade que, à luz da irrepetibilidade dos alimentos, em regra, o alimentante não pode, em regra, endereçar contra o alimentado um pedido de repetição de indébito pelos valores pagos a título de alimentos, ainda que posteriormente venha ser reconhecido judicialmente a inexistência do dever alimentar. Todavia, indaga-se: poderia o alimentante pleitear o reembolso do que pagou contra o verdadeiro titular do dever de pagar alimentos?
Para ilustrar, suponha João tenha pagado R$ 10.000,00 a título de alimentos liminares fixados em sede de uma ação de investigação de paternidade cumulada com pedido de alimentos. Lembre-se de que os alimentos são fixados levando em conta a possibilidade do alimentante: quanto mais rico, maior é o seu valor. Advindo sentença negando a paternidade e, portanto, o dever alimentar, pergunta-se: João poderia pedir o reembolso do valor pago contra o verdadeiro pai, caso este venha a ser descoberto?
Entendemos que sim como uma restrição: o verdadeiro pai terá de reembolsar João no valor que ele, de acordo com o binômio necessidade-possibilidade, teria de ter pago caso à época fosse reconhecida a paternidade.
O fundamento desse nosso entendimento são dois. O primeiro é a vedação ao enriquecimento sem causa: o verdadeiro pai não pode ser beneficiado financeiramente com o fato de um terceiro ter arcado com uma despesa que era dele. O segundo é a aplicação, por analogia, do art. 871 do CC[13], que garante o direito de reembolso em favor daquele que paga alimentos que eram devidos por outro.
Supondo que, no exemplo acima, o verdadeiro pai seja Manoel, pessoa de condição financeira modesta e que, de acordo com o binômio necessidade-possibilidade, provavelmente iria ser condenado a pagar apenas R$ 2.000,00 a título de alimentos liminares naquele período em que João havia sido acionado. Nesse caso, João só poderá cobrar R$ 2.000,00 do Manoel a título de reembolso e, portanto, amargará o prejuízo dos R$ 8.000,00 restantes por conta da sua desventura de ter dado indícios de paternidade capazes de terem levado o juiz a fixar os alimentos liminares.
Se não houvesse essa limitação ao reembolso, chegaríamos ao despropósito de obrigar o verdadeiro pai a reembolsar um valor de alimentos elevadíssimo, assim fixados pelo juiz por conta do elevado padrão do João. Para se ter uma ideia da iniquidade de não colocar esse limite ao reembolso, basta imaginar o absurdo a que seria sujeito o verdadeiro pai se os alimentos liminares pagos pelo João tivessem chegado a R$ 1 milhão de reais, o que poderia ocorrer se João fosse milionário.
Essa limitação do reembolso ao valor que o verdadeiro titular do dever alimentar haveria de pagar a título de alimentos à luz do binômio necessidade-possibilidade caracteriza o que chamamos de “reembolso qualificado”.
Em suma, entendemos que a irrepetibilidade dos alimentos não impede que aquele que foi indevidamente compelido a pagar os alimentos obtenha o “reembolso qualificado” contra aquele que realmente tinha o dever alimentar.
3.2.3. Indenização por despesas adicionais causadas pela gravidez no lugar dos alimentos gravídicos
O Professor Conrado Paulino da Rosa (2018, p. 488) suscita interessantíssima questão: se a gestante não pleiteia alimentos gravídicos, ela poderia cobrar do suposto pai o ressarcimento por parte das despesas adicionais suportadas por ela em razão da gestação?
O ilustre civilista gaúcho entende que sim com base na proibição da vedação ao enriquecimento sem causa e do princípio da parentalidade responsável. Noticia, a favor dessa tese, que o TJRS se manifestou assim por duas vezes, admitindo, inclusive, a “legitimidade ativa da genitora para cobrar o ressarcimento das despesas oriundas da gestação e do parto do filho, ainda que o recibo esteja em nome dos avós maternos da criança” (ROSA, 2018, p. 488).
Concordamos com o civilista gaúcho com apenas uma ressalva: as despesas adicionais devem ser suportadas por ambos os genitores de acordo com o binômio necessidade-possibilidade aplicável a cada um. Isso significa que o rateio deverá ser proporcional às condições econômicas de cada um e recairá apenas sobre despesas adicionais que sejam compatíveis com o padrão social do genitor.
Assim, se, por exemplo, a gestante for riquíssima e realizar despesas adicionais compatíveis com o seu alto padrão social e se o genitor for pessoa de poucas posses, não é razoável condenar este a pagar metade dessas despesas adicionais, pois ele, com seu modesto padrão de vida, não haveria de custear uma gestação nababesca como essa. Assim, temos que o mais adequado é ratear as despesas adicionais entre ambos os genitores na proporção da possibilidade deles (ex.: 20% para o genitor e 80% para a gestante), além de excluir do montante a ser rateado despesas que se revelem supérfluas ou absolutamente incompatíveis com o padrão social do genitor.
3.2.4. Ação de exigir contas e pensão alimentícia
Indaga-se: o alimentante tem ou não direito de exigir que o alimentado preste contas dos valores recebidos?
Em regra, entendemos que não, pois o alimentado pode despender o valor recebido como lhe aprouver.
Há, porém, uma exceção: a hipótese de o alimentante ser filho menor.
Com efeito, se o alimentante for um dos pais e se o alimentado for filho menor (de modo que o valor recebido é gerido pelo outro genitor), é cabível a ação de exigir contas com uma particularidade: a finalidade não será a de apurar eventual crédito pela falta de prova da destinação adequada da verba alimentar, e sim a de viabilizar a fiscalização da satisfação dos interesses do filho menor.
Por essa razão, é dever do genitor que gere os alimentos prestar contas ao alimentante, indicando como os valores recebidos foram despendidos em proveito do filho menor. Se for verificada malversação dos valores, entendemos que não é cabível a condenação do genitor a ressarcir os valores desviados, porque os alimentos são irrepetíveis e porque o objetivo da ação de exigir contas aí é apenas o de garantir a supervisão dos interesses do filho.
A medida cabível aí será a de, por meio de outra ação judicial (como uma de revisão de alimentos), mudar a forma de prestação de alimentos, de modo a coibir outra malversação. Essa nova forma poderá se dar por meio da redução do valor pecuniário da pensão alimentícia e a estipulação do dever de o próprio alimentante prestar, in natura, os alimentos que foram malversados (ex.: pagando diretamente as mensalidades escolares).
Como o objetivo da prestação não é apurar créditos,
e sim viabilizar a supervisão dos interesses do filho menor, não é de se exigir
alto rigor na forma da prestação de contas; basta que as contas sejam prestadas
de uma forma inteligível. Além do mais, como lembra o Ministro Moura Ribeiro, o
§ 2º do art. 551 do CPC “não mais exige que as contas sejam
prestadas de forma mercantil, devendo elas ser apresentadas apenas de forma
adequada, de modo que facilite o seu exame, mas com um mínimo de rigor técnico”[14]. Nesse ponto, subscrevemos
integralmente estas palavras do professor Flávio Tartuce (2019), que faz
remissão ao jurista João Ricardo Brandão Aguirre:
De toda sorte, acreditamos que a exigência da prestação deve ser analisada mais objetiva do que subjetivamente, deixando-se de lado pequenas diferenças de valores e excessos de detalhes na exigência da prestação, o que poderia torná-la inviável ou até aumentar o conflito entre as partes. Essa também é a percepção de João Ricardo Brandão Aguirre, em palestra recentemente ministrada em evento do IBDFAM.
O fundamento desse direito está
no § 5º do art. 1.583 do CC, que estabelece que é direito do pai ou da
mãe supervisionar os interesses do filho que está sob a guarda do outro,
supervisão essa que credencia pedidos de informações ou de “prestações de
contas, objetivas ou subjetivas, em assuntos ou situações que direta ou
indiretamente afetem a saúde física ou psicológica e a educação de seus
filhos”. Trata-se de dispositivo que foi inserido pela segunda Lei da Guarda
Compartilhada (Lei nº 13.058/2014).
Não há necessidade de o genitor alimentante comprovar indícios de malversação dos alimentos para exigir a prestação de contas, pois é seu direito supervisionar os interesses do filho menor. Se as informações não forem prestadas voluntariamente pelo genitor guardião que gere os alimentos, abre-se espaço para a via judicial da ação de exigir contas, com a limitação supracitada (a de que não será devida, nessa via, qualquer condenação de restituição de valores pagos).
Em termos práticos, o genitor que recebe a pensão alimentícia devida ao filho deverá guardar comprovantes dos gastos havidos com o filho (ex.: comprovantes de pagamentos de mensalidade escolar) e, se houver sobra de dinheiro, deverá guardá-la para utilização futura pelo próprio filho em caso de alguma nova necessidade ou quando ele completar a maioridade. A sobra do dinheiro não pode ser utilizada em proveito do próprio genitor que gere os alimentos, pois ele é mero administrador dos alimentos, e não credor.
O tema ainda está em amadurecimento na jurisprudência. Antes da alteração legislativa acima, a jurisprudência era consolidada em negar o cabimento da ação de exigir contas pelo alimentante para apurar se os valores dos alimentos realmente estavam sendo direcionados ao filho menor.
Esse cenário, porém, mudou após a segunda Lei da
Guarda Compartilhada. A 3ª Turma do STJ, após lançar precedente mantendo
a jurisprudência anterior, mudou de orientação e decidiu pelo cabimento da ação
de exigir contas nos moldes do que expusemos mais acima (STJ, REsp 1814639/RS,
3ª Turma, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. p/ Acórdão
Ministro Moura Ribeiro, DJe 09/06/2020). No caso concreto examinado no referido
julgado, o pai ajuizara a ação de exigir contas para que a mãe indicasse como
estaria utilizando a pensão mensal de R$ 15.000,00 em favor do filho menor
com Síndrome de Down, ainda mais considerando que o filho estava estudando em
escola pública e que as despesas médicas eram cobertas pelo plano de saúde
fornecido pelo pai.
Concordamos integralmente com a orientação firmada
pelo STJ, tudo conforme expusemos acima. Entendemos apenas que, como estamos
diante de um caso de mudança de jurisprudência pacífica, a 3ª Turma
deveria ter modulado os efeitos da sua decisão para restringir a prestação de
contas dos alimentos para o período posterior ao julgado, que é de 2020. De
fato, essa modulação de efeitos tem fundamento no art. 927, § 3º, do CPC
e no que já batizamos de “cindibilidade dos efeitos jurídicos” em razão de uma
dúvida jurídica razoável (Oliveira, 2018-A, 2018-B, 2020-A e 2020-B). No caso
concreto, porém, a mãe foi condenada a prestar contas desde abril de 2013.
A 4ª Turma do STJ – a outra turma que lida com
matéria de Direito Privado – ainda não se manifestou, de maneira que esse
assunto ainda haverá de ser consolidado na jurisprudência.
Na doutrina, já alertavam para a necessidade de se admitir a ação de exigir contas, a exemplo do professor Flávio Tartuce (2015), que publicou riquíssimo artigo sobre o tema[15], e do professor gaúcho Conrado Paulino Rosa, que já defendia essa tese desde as edições mais antigas de seu Curso de Direito Civil Contemporâneo (2018, pp. 560-569).
No próximo subcapítulo, especialmente em razão desse novo entendimento do STJ no sentido do cabimento da ação de exigir contas, discutiremos se é ou não cabível a fixação de uma espécie de “pró-labore” para o genitor que gere os alimentos e que exerce a guarda unilateralmente, valor esse que poderia ser tido como uma das despesas havidas com a pensão alimentícia devida ao filho.
3.2.5. Possibilidade de estipulação de uma compensação financeira ao genitor guardião?
Especialmente em razão da tendência jurisprudencial de admitir que o genitor alimentante exija a prestação de contas do outro genitor para supervisão do efetivo direcionamento da pensão alimentícia em favor do filho menor, indaga-se: seria ou não admissível que, entre as despesas custeadas com a pensão alimentícia, esteja também uma compensação financeira (uma espécie de “pró-labore”) ao genitor incumbido da guarda do filho menor e da gestão da pensão alimentícia?
Entendemos que sim.
É “segredo de Polichinelo” que, em vários casos concretos, parte do valor da pensão alimentícia era utilizado pelo genitor guardião em proveito próprio. Não precisa ter muita experiência prática na praxe forense em Direito de Família para saber que isso é comum de ocorrer, especialmente quando o valor da pensão é elevado em razão da alta condição financeira do alimentante e quando o genitor guardião e gestor é pessoa de recursos financeiros mais modestos.
Não se está aqui afirmando que o genitor guardião malversava a pensão alimentícia. De modo algum! Está-se apenas a afiançar que, em vários casos, esse genitor guardião utilizava sobras da pensão alimentícia com despesas do seu próprio interesse, como se essa sobra fosse uma espécie de “pró-labore” pelo seu trabalho de guardião de gestor.
Nunca a doutrina e a jurisprudência precisaram discutir a legitimidade desse furtivo “pró-labore”, porque a proibição da ação de exigir contas mantinha em sigilo o rastreamento dos gastos havidos com a pensão alimentícia.
Entretanto, com a admissão da ação de exigir contas, a “caixa de Pandora” se abre, de maneira que se torna pertinente discutir a legitimidade de cada gasto havido com a pensão alimentícia. São legítimos apenas os gastos feitos em proveito do filho menor.
Diante disso, reiteramos a pergunta inicial: seria ou não legítimo que, entre esses gastos feitos em proveito do filho menor, esteja o pagamento de uma espécie de “pró-labore” para o genitor guardião e gestor?
A resposta é positiva, mais correto a nosso sentir.
Não se trata de monetizar o amor, razão maior de genitor guardião e gestor estar a exercer essa função (ao menos, é que se presume para a maioria dos casos concretos). Mesmo sem a pensão, é de presumir que o genitor guardião haveria de querer cuidar de seu filho, protegendo-o debaixo de suas asas de afeto.
Trata-se, porém, de se fazer justiça ao fato de que o exercício da guarda e da função de gestão da pensão alimentícia, ainda mais com o dever de prestação de contas, consume grande energia e tempo do genitor guardião e gestor, que, por vezes, tem de abdicar de projetos pessoais na sua profissão e até no seu lazer para cuidar do filho. Esses sacrifícios pessoais obviamente importam prejuízos financeiros ao genitor guardião e gestor, que, se não estivesse a cumprir o seu munus, poderia dedicar seu tempo, sua energia e seu talento para outra atividade de interesse pessoal. Esse sacrifício pessoal é, a nosso sentir, plenamente digno de ser objeto de eventual compensação financeira, que estaria embutida na própria pensão alimentícia, especialmente se o genitor alimentante não divide esse sacrifício pessoal com o genitor guardião e gestor.
Alguém dirá: o genitor alimentante também está sacrificando, pois está a pagar a pensão alimentícia! Trata-se, porém, de afirmação falaciosa. É que o dever de custear financeiramente o filho é de ambos os ambos os genitores à luz do binômio necessidade-possibilidade. O genitor guardião e gestor também concorre financeiramente com o custeio do filho menor, ainda que por intermédio de alimentos in natura.
Portanto, entendemos que o genitor guardião e gestor tem direito a uma compensação financeira (espécie de “pró-labore”) a ser embutido no valor da pensão alimentícia paga ao filho menor, de maneira que, quando o genitor guardião e gestor for prestar conta da pensão alimentícia, poderá incluir essa compensação financeira entre as legítimas despesas havidas em proveito do filho.
Essa compensação financeira deverá ser um valor módico e razoável. Entendemos que essa compensação não deve se equiparar necessariamente ao valor que seria cobrado por um prestador de serviço, seja porque poderíamos chegar a cifras altíssimas, seja porque é dos pais o dever de cuidar dos filhos. O valor da compensação deverá ser fixado pelo juiz de forma equitativa à luz do caso concreto, observando a condição financeira das partes e a intensidade de dedicação exigida do genitor guardião.
Esse pró-labore poderá ser menor caso o genitor alimentante reparta com o outro as atividades presenciais de guarda do filho menor e de gestão de bens deste.
O valor da compensação financeira poderá ser maior a depender das particularidades do caso concreto. Há, por exemplo, situações em que o genitor guardião, sozinho, dedica-se integralmente em favor do filho menor pelo fato de este ter alguma suscetibilidade, como se dá nos casos de síndrome de Down, de autismo, de esquizofrenia etc. Repete-se mais uma vez que é evidente que essa dedicação do genitor guardião não decorre de interesses econômicos, mas sim do vínculo afetivo. Todavia, não podemos fechar os olhos para o fato de que tal fato implica transtornos patrimoniais a esse genitor abnegado, que terá de abortar vários projetos estritamente pessoais. O “custo de oportunidade” (aquilo que se deixa de fazer) pode ser alto para o genitor guardião e gestor, o que merece ser objeto de uma compensação módica e razoável.
3.2.6. Colação de alimentos
Indaga-se: a pensão alimentícia paga a um descendente pode ou não ser considerada uma antecipação de herança e, portanto, vir a ser objeto de colação em futura sucessão causa mortis do alimentante, tudo nos termos dos arts. 544 e 2.002 e seguintes do CC?
Entendemos que sim, mas apenas em um destes dois casos: (1) o alimentado não ter qualquer incapacidade laborativa; ou (2) o alimentado ser neto ou outro descendente de maior grau e ser filho de pessoa sem qualquer incapacidade laborativa. Entretanto, nesses casos, quando da colação, não haverá dever de reposição em dinheiro previsto no parágrafo único do art. 2.003 do CC, mas apenas a mera dedução do quinhão hereditário, tudo por força da irrepetibilidade dos alimentos e do princípio da solidariedade familiar.
Se o alimentado for filho menor, não será cabível a colação dos alimentos por força do art. 2.010 do CC, que afasta a colação de liberalidades feitas ao filho menor, assim entendido – para tal efeito – aquele até os 24 anos de idade.
Igualmente, se o alimentado for filho maior com incapacidade laborativa, também não será cabível a colação por conta da irrepetibilidade dos alimentos, do princípio da solidariedade familiar, do dever de sustento dos pais em relação aos filhos menores (arts. 1.566, IV, e 1.724 do CC) e da aplicação analógica e sistemática dos arts. 1.590 e 2.010 do CC (os quais, em conjunto, permite estender o dever de sustento dos pais em relação aos filhos menores para os casos de os filhos maiores incapazes).
Para explicar de forma mais adequada, reproduzimos aqui este excerto de anterior artigo nosso (OLIVEIRA, 2015, p. 3-6):
RESUMO: O autor defende a necessidade de serem colacionados os alimentos prestados: (1) a filho maior, capaz e sem restrições de saúde significativas ao seu potencial laboral e (2) aos descendentes de qualquer grau desse filho. Nesses casos, em nome da irrepetibilidade dos alimentos e de outros princípios e valores do Direito Civil, a colação servirá apenas para igualar a legítima, com a ressalva de que, quando os bens do acervo forem insuficientes, o alimentando não se sujeitará ao dever de reposição pecuniária de que cuida o parágrafo único do art. 2.003 do Código Civil.
(…)
O presente texto dedica-se a, com a maior concisão possível, discutir se os alimentos pagos por ascendente a descendentes podem ou não ser tidos como antecipação de legítima (art. 544 do Código Civil – CC[16]) para o fim de ser, quando da abertura da sucessão, objeto de colação pelo descendente beneficiário (arts. 2.002 e seguintes do CC).
Citamos um exemplo para ilustrar. João tem dois filhos, Arthur e Manoel. Um deles – o Arthur – esforçou-se exitosamente na vida para obter uma condição profissional suficiente a garantir o necessário para sobreviver. Manoel, porém, preferiu o caminho dos deleites e ignorou qualquer compromisso com estudos e profissão. Suponha que Manoel deu um neto ao João, aqui batizado de Manoelzinho. Nesse caso, como Manoel não possui condições financeiras para garantir a própria sobrevivência nem para custear o necessário para uma vida digna do Manoelzinho, é possível que João seja condenado, com base nas regras de Direito de Família, a:
a) a pagar pensão
alimentícia tanto ao seu filho leviano (caso em que o valor da pensão
corresponderá ao estritamente necessário para garantir-lhe a sobrevivência,
conforme art. 1.694, § 2º, do CC[17], que prevê os
chamados “alimentos naturais ou necessários”) e
b) a, na condição de avô, suprir a carência financeira do pai, pagando pensão alimentícia ao neto em valor suficiente para assegurar-lhe um padrão social similar ao do avô (hipótese dos “alimentos côngruos ou civis”, sediados no art. 1.694, caput, do CC).
Suponha que João venha a óbito e tenha deixado um imóvel a ser partilhado. Nesse caso, indaga-se: é justo que, na partilha hereditária, Manoel, depois de ter, com sua negligência, consumido grande parte do patrimônio de seu pai com pensões alimentícias para si e para Manoelzinho, seja aquinhoado com uma porção igual à devida ao seu irmão Arthur?
Essa indagação torna-se mais complicada com a constatação de que, se João tivesse doado livremente uma quantia a Manoel (sem a coercitividade de uma pensão alimentícia judicialmente fixada), esse filho seria obrigado a trazer à colação esse valor para igualar a herança com seu irmão Arthur.
No caso concreto indicado no excerto acima, os valores pagos por João a título de pensão alimentícia ao Manoel e aos filhos destes (alimentos avoengos) deverão ser deduzidos posteriormente do quinhão hereditário que seria devido ao Manoel quando da futura sucessão causa mortis de João, pois são antecipação de herança e, portanto, têm de ser colacionados (arts. 544 e 2.002 e seguintes do CC), vedada, porém, a reposição em dinheiro de que trata o parágrafo único do art. 2.003 do CC.
A resposta seria diferente se, no exemplo acima, Manoel fosse incapaz para o trabalho (ex.: tivesse severa deficiência física que o inabilitava ao trabalho). Nesse caso, não seria cabível a colação dos valores pagos a título de alimentos.
3.2.7. Cobrança dos alimentos pagos ao ascendente em futura sucessão causa mortis
Indaga-se: o filho que paga pensão alimentícia ao seu pai poderia, em futura sucessão causa mortis, cobrar o reembolso desses valores do espólio?
Entendemos que sim por uma interpretação teleológica do art. 1.696 do CC.
É dever dos filhos prestarem assistência material a seus pais, ainda mais quando estiverem idosos. Trata-se de dever decorrente do princípio da solidariedade familiar, que é realçado, se o pai já for idoso, pelo princípio da proteção integral do idoso.
Acontece que a finalidade desses alimentos é garantir a manutenção digna do ascendente, e não beneficiar economicamente, ainda que de forma indireta, outros herdeiros desse ascendente. Por essa razão, os alimentos pagos ao ascendente devem ser reembolsados pelo espólio futuramente, sob pena de reverter, por vias transversas, o sacrifício financeiro do alimentante aos outros herdeiros.
Exemplificaremos.
Suponha que João, já idoso, tem dois filhos, Artur e Gabriel. João ficou sem renda suficiente para se manter, apesar de ser titular de uma fazenda que, por conta de uma demanda judicial, não pode ser explorada economicamente. Suponha que Artur é condenado a pagar pensão alimentícia ao João para a sua manutenção até a morte de João. Quando da morte de João, imagine que o valor atualizado das pensões pagas seja de cem mil reais. Considerando que a fazenda seja o único bem deixado por João e que ela valha cem mil reais, indaga-se: seria justo que essa fazenda fosse partilhada igualmente entre João e Gabriel?
Temos que não. O espólio teria de reembolsar João, entregando-lhe cem mil reais (o que, no exemplo, corresponderá ao valor da fazenda). João aí é credor do espólio, pois os alimentos pagos por ele ao ascendente geraram uma obrigação de restituir sujeito a uma condição suspensiva (a morte do alimentado).
Entendimento diverso acabaria por fazer com que a pensão alimentícia paga pelo Artur se revertessem em proveito financeiro do Gabriel, o que foge à intenção da legislação. De fato, se Artur não tivesse pago pensão alimentícia alguma, provavelmente a fazenda teria sido vendida pelo João para custeio de sua manutenção, de maneira que não haveria bem algum a partilhar quando de sua morte.
A solução acima nos parece plenamente compatível com a finalidade da legislação e não esbarra em nenhum óbice legal, nem mesmo no art. 426 do CC, que veda apenas atos negociais envolvendo herança de pessoa vida, o que não se confunde com o caso em pauta, que envolve um dever de restituição post mortem por força de um dever legal de alimentos.
3.2.8. Cobrança dos alimentos pagos a irmão em futura sucessão causa mortis ou no caso de futura prosperidade do irmão
Indaga-se: o irmão que pagou alimentos ao outro pode recobrar os valores pagos no caso de futura prosperidade do alimentado ou do espólio deste?
Entendemos que sim com base em uma interpretação teológica do art. 1.697 do CC. É que a finalidade dos alimentos aos irmãos é garantir a sobrevivência deste, e não beneficiar, ainda que indiretamente, os herdeiros do alimentado.
Se o irmão que recebeu alimentos vem a prosperar futuramente, não há razão alguma para ele invocar a irrepetibilidade dos alimentos para se recusar a reembolsar o alimentante. Caso não haja esse reembolso, o alimentante terá, por vias oblíquas, beneficiado os futuros herdeiros do alimentado, os quais se beneficiarão do patrimônio mais robusto.
Igualmente, se o alimentado falece e deixa bens a partilhar, é forçoso que, antes da partilha, seja o irmão alimentante reembolsado para não suceder que os herdeiros se beneficiem indiretamente da pensão alimentícia que foi paga.
8. Conclusão e resumo
A irrepetibilidade dos alimentos não pode ser uma cantilena acriticamente reproduzida pelos civilistas, especialmente porque ela é uma construção doutrinária e jurisprudencial e não é regulamentada explicitamente em texto legal.
Neste artigo, apontamos diversas questões práticas polêmicas que demonstram a necessidade de a doutrina remodelar e flexibilizar a irrepetibilidade dos alimentos a depender do caso concreto.
Por fim, podemos resumir o que foi exposto da seguinte maneira:
- capítulos 2.1. e 2.6.).
- capítulos 2.1. e 2.2.).
- capítulos 2.3., 2.4. e 2.5.).
- capítulo 3.1.).
- capítulo 3.2.1.).
- capítulo 3.2.2.).
- capítulo 3.2.3.).
- capítulo 3.2.4.).
- capítulo 3.2.5.).
- capítulo 3.2.6.).
- capítulo 3.2.7.).
- capítulo 3.2.8.).
9. Referências bibliográficas
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Publicado em 24 de junho de 2015.
[1] Art. 557, IV, do CC: “Podem ser revogadas por ingratidão as doações: (…) IV – se, podendo ministrá-los, recusou ao doador os alimentos de que este necessitava”.
[2] Art. 589, II, CC.
[3] É o caso dos alimentos indenizativos devidos no caso de homicídio (art. 948, CC) ou de incapacidade laboral (art. 950, CC).
[4] “Art. 206. Prescreve:
§ 1 o Em um ano:
I – a pretensão dos hospedeiros ou fornecedores de víveres destinados a consumo no próprio estabelecimento, para o pagamento da hospedagem ou dos alimentos;
(…)”
[5] “Art. 206. Prescreve:
(…)
§ 2 o Em dois anos, a pretensão para haver prestações alimentares, a partir da data em que se vencerem.
(…)”
[6] Os
alimentos familiares podem ser classificados quanto à sua natureza nestas
espécies: (1) alimentos civis
ou côngruos, assim entendidos aquele destinado a garantir ao alimentado um
padrão social similar ao do alimentante, conforme art. 1.694, caput, do
CC; (2) alimentos necessários ou
naturais, os que objetivam garantir apenas o estritamente necessário à
sobrevivência do alimentado, tudo conforme arts. 1.694, § 2º, e 1.704 do
CC; (3) alimentos
compensatórios, aqueles que têm natureza indenizatória e que objetiva
aliviar os transtornos de uma queda abrupta do padrão de vida do ex-consorte
após o fim do casamento ou da união estável; (4) rendas líquidas dos bens comuns, que têm natureza
jurídica de restituição de coisa de terceiros – e não propriamente de uma
indenização – e que podem ser fixados conjuntamente com os “alimentos
liminares” (os provisórios ou provisionais) por força de leitura extensiva do
parágrafo único da Lei de Alimentos (Lei nº 5.478/1968). A prisão
civil por dívida de alimentos só é admitida para os dois primeiros tipos de
alimentos, pois os demais não têm, como finalidade primária, a manutenção do
alimentado, e sim garantir-lhe uma indenização ou uma restituição.
[7] STJ, RHC 117.996/RS, 3ª Turma, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe
08/06/2020.
[8] Tecnicamente, entendemos que o adequado é que os juízes fixem os alimentos provisórios em separado das rendas líquidas dos bens comuns, estabelecendo duas rubricas diferentes. Todavia, por força de interpretação que alguns doutrinadores fazem do parágrafo único da Lei de Alimentos, há quem aglutine as duas verbas sob o nomen iuris de “alimentos provisórios”, caso em que será necessário decompor essa rubrica para definir qual parte credencia ou não a prisão civil.
[9] O
§ 14 do art. 83 do CPC expressamente afirma que os honorários advocatícios têm
natureza alimentar. No mesmo sentido, é a Súmula Vinculante nº 47/STF:
“Os honorários advocatícios incluídos na condenação ou destacados do montante
principal devido ao credor consubstanciam verba de natureza alimentar cuja
satisfação ocorrerá com a expedição de precatório ou requisição de pequeno
valor, observada ordem especial restrita aos créditos dessa natureza”.
[10] Lei
Orgânica da Assistência Social (Lei nº 8.742/1993).
[11] A
título exemplificativo, o art. 950 do CC menciona “pensão” para se referir aos
alimentos indenizativos, e os arts. 1.702 e 1.704 do CC aludem aos alimentos
familiares ao valer-se das expressões “pensão alimentícia” ou simplesmente
“pensão”. Já o art. 3º, III, da Lei nº 8.009/90 utiliza a
expressão “pensão alimentícia” para se referir tanto aos alimentos
indenizativos quanto aos alimentos familiares, com a advertência de que há
discussão doutrinária para saber se os alimentos voluntários também estão
contemplados.
[12] É o
caso, por exemplo, do Direito Administrativo: o STJ entende que o agente
público não tem de restituir verbas de natureza alimentar recebidas de boa-fé,
como aquelas que decorrem de erro ou de má interpretação de normas pela
Administração Pública (STJ, REsp 1762208/RS, 2ª Turma, Rel. Ministro
Herman Benjamin, DJe 28/11/2018).
[13] “Art. 871. Quando alguém, na ausência do indivíduo obrigado a alimentos, por ele os prestar a quem se devem, poder-lhes-á reaver do devedor a importância, ainda que este não ratifique o ato.”
[14] Excerto
extraído de voto proferido pelo Ministro Moura Ribeiro neste julgado: STJ, REsp
1814639/RS, 3ª Turma, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. p/
Acórdão Ministro Moura Ribeiro, DJe 09/06/2020.
[15] Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/coluna/familia-e-sucessoes.>. Acesso em: 24 jul. 2020.
[16] “Art. 544. A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança”.
[17] “Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.
(…)
§ 2º Os alimentos serão apenas os
indispensáveis à subsistência, quando a situação de necessidade resultar de
culpa de quem os pleiteia”.