NOVO DIREITO REAL COM A LEI Nº 14.620/2023: UMA ATECNIA UTILITARISTA DIANTE DA IMISSÃO PROVISÓRIA NA POSSE

NOVO DIREITO REAL COM A LEI Nº 14.620/2023: UMA ATECNIA UTILITARISTA DIANTE DA IMISSÃO PROVISÓRIA NA POSSE

Carlos Eduardo Elias de Oliveira

Professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na Universidade de Brasília – UnB –, no IDP/DF, na Fundação Escola Superior do MPDFT – FESMPDFT, no EBD-SP, na Atame do DF e de GO e em outras instituições.

Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil (único aprovado no concurso de 2012), Advogado, ex-Advogado da União e ex-assessor de ministro STJ.

Doutorando, mestre e bacharel em Direito pela UnB (1º lugar no vestibular de 1º/2002).

Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro

E-mail: carloseliasdeoliveira@yahoo.com.br

I. Introdução

Neste artigo, demonstrar-se-á que nenhum novo direito real foi criado, ao contrário do que se extrai de uma leitura superficial da recentíssima Lei nº 14.620/2023, batizada como Lei do Novo Programa Minha Casa, Minha Vida – NPMCMV.

Na verdade, os direitos oriundos da imissão na posse são apenas um epíteto do velho direito real de propriedade.

Indicaremos os desdobramentos práticos disso, inclusive sob o aspecto registral, além de expor o motivo da atecnia legislativa.

II. Cenário normativo

A recente Lei nº 14.620/2023, batizada como Lei do Novo Programa Minha Casa, Minha Vida – NPMCMV, supostamente criou um novo direito real: os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas e a respectiva cessão e promessa de cessão.

Fê-lo mediante acréscimo de mais um inciso ao art. 1.225 do Código Civil (CC), dispositivo que lista os direitos reais no Brasil. Confira-se:

Art. 1.225. São direitos reais:

(…)

XIV – os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas e a respectiva cessão e promessa de cessão.

Preocupado em garantir que esse supostamente novo direito real pudesse ser objeto de garantias hipotecária e fiduciária, o novo diploma não hesitou em ser textual mediante acréscimo de inciso ao art. 1.473 do CC (que arrola os bens hipotecáveis) e ao § 1º do art. 22 da Lei nº 9.514/1997. Confiram-se os referidos preceitos:

Art. 1.473. Podem ser objeto de hipoteca:

(…)

XI – os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas e a respectiva cessão e promessa de cessão.    

“Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel.

§ 1º A alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI, podendo ter como objeto, além da propriedade plena:  

(…)

V – os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas, e a respectiva cessão e promessa de cessão;

(…)”

Essa movimentação de criação de um novo direito real já havia sido ensaiada em 2015, com a Medida Provisória nº 700, que havia promovido as mesmíssimas inserções legais acima. Todavia, o referido diploma urgente caducou.

Do ponto de vista registral, desde 1999[1], a imissão provisória na posse pelo ente desapropriante já é prevista como ato jurídico objeto de registro no Cartório de Imóveis por força do art. 167, item “36’, da Lei nº 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos – LRP). Em 2009, a Lei do Programa Minha Casa, Minha Vida (Lei nº 11.977/2009) confirmou isso mediante inserção do § 4º ao art. 15 da Lei de Desapropriação por Interesse Público (Decreto-Lei nº 3.365/1941). Confira-se:

LRP

Art. 167 – No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos.            

I – o registro:

(…)

36). da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas, e respectiva cessão e promessa de cessão;

(…)     

Decreto-Lei nº 3.365/1941

Art. 15. Se o expropriante alegar urgência e depositar quantia arbitrada de conformidade com o art. 685 do Código de Processo Civil, o juiz mandará imiti-lo provisoriamente na posse dos bens;

§ 1º A imissão provisória poderá ser feita, independente da citação do réu, mediante o depósito:                    (Incluído pela Lei nº 2.786, de 1956)

a) do preço oferecido, se êste fôr superior a 20 (vinte) vêzes o valor locativo, caso o imóvel esteja sujeito ao impôsto predial;                    (Incluída pela Lei nº 2.786, de 1956)

b) da quantia correspondente a 20 (vinte) vêzes o valor locativo, estando o imóvel sujeito ao impôsto predial e sendo menor o preço oferecido;                      (Incluída pela Lei nº 2.786, de 1956)

c) do valor cadastral do imóvel, para fins de lançamento do impôsto territorial, urbano ou rural, caso o referido valor tenha sido atualizado no ano fiscal imediatamente anterior;                  (Incluída pela Lei nº 2.786, de 1956)

d) não tendo havido a atualização a que se refere o inciso c, o juiz fixará independente de avaliação, a importância do depósito, tendo em vista a época em que houver sido fixado originàlmente o valor cadastral e a valorização ou desvalorização posterior do imóvel.                (Incluída pela Lei nº 2.786, de 1956)

§ 2º A alegação de urgência, que não poderá ser renovada, obrigará o expropriante a requerer a imissão provisória dentro do prazo improrrogável de 120 (cento e vinte) dias.                   (Incluído pela Lei nº 2.786, de 1956)

§ 3º Excedido o prazo fixado no parágrafo anterior não será concedida a imissão provisória.                  (Incluído pela Lei nº 2.786, de 1956)

§ 4o  A imissão provisória na posse será registrada no registro de imóveis competente.  

Certamente por conta de resistências enfrentadas perante Cartório de Imóveis, os entes atuantes no mercado imobiliário seguiram provocando o legislador a avançar na disciplina legal.

Em 2010, por meio da Medida Provisória nº 514/2010 (posteriormente convertida na Lei nº 12.424/2011), foi expressamente permitido ao ente desapropriante promover a abertura da matrícula da área expropriada sem necessidade de apuração da área eventualmente remanescente em eventual matrícula atingida parcialmente, desde que se trate de área urbana ou de expansão urbana. Trata-se do § 8º do art. 176 da LRP, que assim dispõe:

Art. 176 – O Livro nº 2 – Registro Geral – será destinado, à matrícula dos imóveis e ao registro ou averbação dos atos relacionados no art. 167 e não atribuídos ao Livro nº 3.                

(…)

§ 8o  O ente público proprietário ou imitido na posse a partir de decisão proferida em processo judicial de desapropriação em curso poderá requerer a abertura de matrícula de parte de imóvel situado em área urbana ou de expansão urbana, previamente matriculado ou não, com base em planta e memorial descritivo, podendo a apuração de remanescente ocorrer em momento posterior.                   (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011)

Além disso, ainda por meio da supracitada norma de 2010, deixou-se claro o cabimento da fusão de matrículas de imóveis contíguos objeto de imissão provisória em favor do ente desapropriante no contexto de regularização fundiária ou de programas habitacionais, tudo por meio da introdução do inciso III e do §§ 2º e 3º ao art. 234 da LRP (os quais vieram a ser modificados posteriormente).

As alterações acima, porém, não foram suficientes para desobstruir as necessidades registrais dos procedimentos de desapropriação.

Em 2015, por meio da Medida Provisória nº 700/2015, que acresceu o art. 176-A à LRP, tentou-se disciplinar o registro da aquisição originária da propriedade com foco nas hipóteses de desapropriação, eliminando embaraços registrais (como a exigência de memorial descritivo para área remanescente de matrícula parcialmente atingida). Igualmente, estendeu-se o regime jurídico-registral da desapropriação para as cessões ou promessas de cessão de direitos oriundos da imissão provisória da posse. Mas essa Medida Provisória caducou.

Em 2021, reiterou-se, com sucesso, essa pretensão. A Lei de Ferrovias (Lei nº 14.273/2021) acresceu novamente o art. 176-A à LRP, renovando a disciplina desburocratizante acima do registro da aquisição originária da propriedade com olhos principalmente nas situações de desapropriação. E, também, passou-se a contemplar as hipóteses de cessão ou promessa de cessão de direitos oriundos de imissão provisória, a exemplo da nova redação dada aos incisos III do art. 235 da LRP.

Toda essa odisseia normativa para dar respaldo registral à desapropriação desaguou no cenário normativo atual desenhado pela recentíssima Lei do NPMCMV.

De um lado, a formalização registral da imissão provisória decorrente de desapropriação está cristalizada no art. 176-A da LRP. Esse preceito desonera o ente desapropriante de medidas como apuração de remanescente de áreas de matrículas parcialmente atingidas (art. 176-A, § 2º, LRP). Também flexibiliza o princípio da especialidade objetiva, “passando pano quente” diante de eventual divergência das descrições perimetrais da área desapropriada em relação à descrição constante de matrículas (art. 176-A, § 4º-A, LRP). Além disso, essas regras desburocratizantes foram estendidas para outras formas de aquisição originária, como o usucapião, e também para o registro da concessão de uso especial para fins de moradia, tudo com olhos em facilitar a formalização de ações de regularização fundiária ou de políticas habitacionais (art. 176-A, § 5º, IV, LRP).

Confira-se o texto atual do referido preceito:

Art. 176-A. O registro de aquisição originária ensejará a abertura de matrícula relativa ao imóvel adquirido, se não houver, ou quando:     (Redação dada pela Lei nº 14.620, de 2023)

I – atingir parte de imóvel objeto de registro anterior; ou        (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023)

II – atingir, total ou parcialmente, mais de um imóvel objeto de registro anterior.       (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023)

§ 1º  A matrícula será aberta com base em planta e memorial descritivo do imóvel utilizados na instrução do procedimento administrativo ou judicial que ensejou a aquisição.      (Redação dada pela Lei nº 14.620, de 2023)

§ 2º  As matrículas atingidas deverão, conforme o caso, ser encerradas ou receber averbação dos respectivos desfalques, dispensada, para esse fim, a retificação do memorial descritivo da área remanescente.      (Redação dada pela Lei nº 14.620, de 2023)

§ 3º (VETADO).    (Redação dada pela Lei nº 14.273, de 2021)    Vigência

§ 4º  Se a área adquirida em caráter originário for maior do que a constante do registro existente, a informação sobre a diferença apurada será averbada na matrícula aberta.       (Redação dada pela Lei nº 14.620, de 2023)

§ 4º-A. Eventuais divergências entre a descrição do imóvel constante do registro e aquela apresentada pelo requerente não obstarão o registro.      (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023)

§ 5º  O disposto neste artigo aplica-se, sem prejuízo de outros, ao registro de:      (Redação dada pela Lei nº 14.620, de 2023)

I – ato de imissão provisória na posse, em procedimento de desapropriação;     (Incluído pela Lei nº 14.273, de 2021)    Vigência

II – carta de adjudicação, em procedimento judicial de desapropriação;    (Incluído pela Lei nº 14.273, de 2021)    Vigência

III – escritura pública, termo ou contrato administrativo, em procedimento extrajudicial de desapropriação.     (Incluído pela Lei nº 14.273, de 2021)    Vigência

IV – aquisição de área por usucapião ou por concessão de uso especial para fins de moradia;      (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023)

V – sentença judicial de aquisição de imóvel, em procedimento expropriatório de que tratam os §§ 4º e 5º do art. 1.228 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).       (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023)

De outro lado, está claro o cabimento da fusão de matrículas contíguas de imóveis objeto de imissão provisória em favor do ente desapropriante ou de cessionários ou promitentes cessionários, desde que se trate de área urbana (ou de expansão urbana) e de programas habitacionais ou de regularização fundiária. É o art. 235, III e §§ 2º e 3º, da LRP:

Art. 235 – Podem, ainda, ser unificados, com abertura de matrícula única:                    (Incluído pela Lei nº 6.216, de 1975).

(…)

III – 2 (dois) ou mais imóveis contíguos objeto de imissão provisória registrada em nome da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios ou de suas entidades delegadas ou contratadas e sua respectiva cessão e promessa de cessão.     (Redação dada pela Lei nº 14.620, de 2023)

(…)

§ 2o  A hipótese de que trata o inciso III somente poderá ser utilizada nos casos de imóveis inseridos em área urbana ou de expansão urbana e com a finalidade de implementar programas habitacionais ou de regularização fundiária, o que deverá ser informado no requerimento de unificação.                  (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011)

§ 3º Na hipótese de que trata o inciso III do caput deste artigo, a unificação poderá abranger matrículas ou transcrições relativas a imóveis contíguos àqueles que tenham sido objeto da imissão provisória na posse.   (Redação dada pela Lei nº 14.273, de 2021)    Vigência

Enfim, o cenário normativo atual pode ser resumido da seguinte maneira:

  1. consideram-se como direitos reais os direitos oriundos de imissão provisória na posse por conta de desapropriação bem como os direitos de cessionários e promitentes cessionários (arts. 1.225, XIV, CC);
  2. esses direitos são hipotecáveis e alienáveis fiduciariamente em garantia (art. 1.473, XI, CC; e art. 22, § 1º, V, da Lei nº 9.514/1997);
  3. é cabível o registro da imissão provisória na posse em favor do ente desapropriante bem como dos direitos de cessionário ou de promitente cessionário (art. 167, I, “36”, LRP; e art. 15, § 4º, Decreto-Lei nº 3.365/1941).
  4. o registro da aquisição originária por desapropriação e usucapião bem como o registro da concessão de uso especial para fins de moradia está disciplinado no art. 216-A da LRP, indicando as hipóteses em que se deverão abrir novas matrículas e flexibilizando o princípio da especialidade objetiva ao dispensar a apuração de área remanescente e relevar divergências de descrições perimetrais (art. 216-A, LRP).
  5. a fusão de matrículas objeto de imissão provisória na posse no contexto de programas habitacionais ou de regularização fundiária em áreas urbanas ou de expansão urbana é permitida e alcança também hipóteses de cessionários ou promitentes cessionários de direitos oriundos da imissão provisória (art. 235, III, §§ 2º e 3º, LRP).

III. Análise crítica: a atecnia utilitarista da lei

Todo esse cenário normativo desenhado em torno dos direitos oriundos da imissão provisória na posse em favor do ente desapropriante foi, na verdade, impulsionado pelo interesse utilitarista de remover obstáculos registrais que eram opostos à formalização de desapropriações e de regularizações fundiárias.

Acontece que esse ímpeto finalístico acabou traçando um percurso tortuoso do ponto de vista da dogmática civilista, o que reclamará da doutrina e da jurisprudência certo esforço malabarista para repelir riscos jurídicos.

De fato, apesar de haver expresso texto legal, é atécnico afirmar que os direitos oriundos da imissão provisória são direitos reais.

É que, no caso de desapropriação, o momento da imissão na posse marca a aquisição originária da propriedade pelo ente desapropriante. Eventual registro posterior no Cartório de Imóveis não tem eficácia constitutiva, mas apenas declaratória. Trata-se de uma exceção ao princípio da inscrição (segundo o qual os direitos reais nascem com o registro na matrícula do imóvel, conforme arts.1.227 e 1.245 do CC[2]).

Não importa se essa imissão foi deferida em sede de tutela provisória, tal qual autorizado no rito da ação de desapropriação, especificamente no art. 15 do Decreto-Lei nº 3.365/1941. As etapas posteriores do procedimento de desapropriação são essencialmente para discutir se a indenização paga pelo ente desapropriante foi ou não quantificada corretamente.

Em suma, o ente desapropriante deposita em juízo o valor de indenização que reputa justo e, ato contínuo, já pode obter a imissão provisória na posse.

Ao ingressar na posse do bem, o ente desapropriante já se torna proprietário do bem. Já é titular, portanto, do direito real de propriedade. Não há necessidade de nenhum reconhecimento judicial posterior.

Lembre-se de que, no caso de “desapropriação indireta”, a lógica é similar. No momento em que o ente desapropriante “invade” o imóvel e passou a ocupá-lo, há a aquisição originária da propriedade. Só sobrará ao particular discutir judicialmente o valor devido a título de indenização. A famosa ação de desapropriação indireta destina-se basicamente a essa discussão. Não se discute aí a titularidade do bem!

Portanto, por aí já se vê a atecnia grave em afirmar que seriam direitos reais “os direitos oriundos da imissão provisória na posse”. Não se trata de direitos reais autônomos, e sim de direito real de propriedade do ente desapropriante.

Consideramos, portanto, ter havido gravíssima atecnia em ter acrescido ao art. 1.225 do CC os direitos oriundos da imissão provisória na posse como um novo direito real.

Cabe à doutrina e à jurisprudência reagir hermeneuticamente, chamando à ordem a manobra legislativa.

Por essa razão, entendemos que os “direitos oriundos da imissão provisória na posse” bem como os direitos de eventual cessionário ou promitente cessionário não são direitos reais autônomos, mas apenas direitos reais de propriedade.

Uma utilidade prática disso é que as regras relativas ao direito real de propriedade previstas no Código Civil, como os arts. 1.228 ao 1.232 do CC, são plenamente aplicáveis.

Igualmente, podem-se considerar dispensável a previsão de que “os direitos oriundos da imissão provisória na posse” são hipotecáveis ou alienáveis fiduciariamente em garantia. Isso, porque o direito real de propriedade sobre imóvel já abarca essas espécies de garantias reais.

Outrossim, a previsão de abertura de matrículas na hipótese de imissão provisória em áreas total ou parcialmente divergentes das constantes de matrículas já abertas é desnecessária, pois isso já decorre do que deve ser aplicado em qualquer situação de aquisição de direito real de propriedade.

Em suma, do ponto de vista técnico, o mais adequado teria sido que o legislador simplesmente houvesse esclarecido que a imissão provisória na posse pelo ente desapropriante implica a aquisição originária do direito real de propriedade e houvesse fixado as regras desburocratizantes de sua preferência.

Resta, porém, saber: por que o texto legal acabou descarrilando dos trilhos da dogmática e ziguezagueou na disciplina dos ditos “direitos oriundos da imissão provisória na posse”?

A resposta é uma postura utilitarista dos players públicos e privados que atuam na prática imobiliária. Diante de notas devolutivas de alguns cartórios de imóveis e ante as divergências de entendimento entre os registradores de imóveis, esses players acabaram movimentando o Poder Legislativo para editar normas muito textuais, ainda que em sacrilégio à dogmática civilística.

Consideramos não apenas censuráveis, mas também perigosas, essas pisadas trôpegas no tratamento dos institutos jurídicos. Isso, porque, ao sair dos trilhos, abre-se espaço para teses jurídicas indesejadas, que podem frustrar os objetivos do legislador.

Além disso, normas do status técnico e científico como o Código Civil não deveriam sofrer “intervenções cirúrgicas” do legislador com tanta facilidade. É preciso haver muita reverência e cuidado nisso, porque, ao contrário das demais leis, o Código Civil é marcado por uma sistematização e cientificidade construída ao longo de milênios de desenvolvimento do Direito Civil. Não é à toa que os anteprojetos de Código Civil sempre foram desenhados por juristas de alto porte.

O caso em tema enfileira-se com outros de inoculações atécnicas de dispositivos no Código Civil, a exemplo do equivocado emprego do termo “posse direta” na usucapião familiar (art. 1.240-A, Código Civil) e da indevida inclusão dos “fundos de investimento” como uma espécie de condomínio no âmbito do livro de Direito das Coisas do Código Civil.

Seja como for, o fato é que à doutrina e à jurisprudência resta interpretar a lei de modo a alinhá-la à correta natureza jurídica dos institutos jurídicos, atraindo o regime jurídico pertinente.

In casu, concluímos: a Lei do NPMCMV não criou nenhum direito real novo, apesar de ter engordado a lista do art. 1.225 do CC. Ela, na verdade, apenas fez referência ao direito real de propriedade na hipótese de este ser adquirido por meio da desapropriação (mais especificamente quando da imissão provisória na posse). O inciso XIV do art. 1.225 do CC deve ser lido como uma hipótese meramente declaratória e indicativa do próprio direito real de propriedade.

O legislador, nesse ponto, confundiu a causa de aquisição do direito real de propriedade com o próprio direito real. A imissão provisória na posse é apenas a causa jurídica de aquisição do direito real de propriedade, à semelhança do usucapião (que, com o transcurso do tempo de posse ad usucapionem, faz nascer o direito real de propriedade de modo originário para o usucapiente). É, pois, atécnico afirmar que os “direitos oriundos da imissão provisória na posse” são uma nova categoria de direito real, assim como seria atécnico asseverar o mesmo em relação aos “direitos oriundos do usucapião”. Na verdade, esses direitos oriundos da imissão provisória na posse são apenas epítetos do velho e consagrado direito real de propriedade.


[1] A origem foi a Lei nº 9.785/1999 e, posteriormente, a Lei nº 12.424/2011 (fruto da conversão da Medida Provisória nº 514/2010).

[2] Art. 1.227. Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código.

(…)

Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.

§ 1 Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel.

§ 2 Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel.