Reflexões sobre a responsabilidade pós-contratual

Reflexões sobre a responsabilidade pós-contratual

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Karina Nunes Fritz[1]

Viviane Girardi[2]

Responsabilidade pós-contratual – Boa-fé objetiva – Pós-eficácia dos deveres de consideração – Violação dos deveres de consideração após o contrato – Paralelo com o direito alemão 

Post-contractual liability – Good faith – Post-effect of duties of consideration – Breach of duties of consideration after contract – Parallel with German law

O artigo analisa os pressupostos e efeitos da responsabilidade pós-contratual, entendida como a responsabilidade decorrente da violação dos deveres de consideração, oriundos da boa-fé objetiva (art. 422 CC), após a extinção do contrato. No texto faz-se uma análise comparada com o direito alemão, examinando alguns casos oriundos dos tribunais alemães.





 

1. Introdução

O mundo nunca mais foi o mesmo desde que Rudolf von Jhering demonstrou, em 1861, que já na fase de preparação do negócio surge um “dever de diligência” entre as partes, distinto do dever geral de neminem laedere que a todos vincula em razão da vida em sociedade (contato social) e dos deveres de prestação nascidos com o contrato.

Esse dever de diligência, segundo Jhering, obrigaria as partes a agir com elevado grau de diligência, a fim de afastar óbices à validade do negócio e, com isso, evitar a celebração de contratos nulos[3]. Nascia – ainda de forma embrionária – a noção da culpa in contrahendo, mais conhecida na nossa doutrina como responsabilidade pré-contratual e ainda incompreendida no direito brasileiro, que a considera sinônimo de rompimento imotivado das negociações.

A intuição do famoso professor da Universidade de Göttingen foi o ponto de partida para a compreensão, amplamente aceita na doutrina europeia, de que na fase de preparação do negócio – vale dizer, durante o contato negocial – surgem deveres outros, distintos do dever geral de não lesar e daqueles próprios do contrato planejado ou impostos por lei para o tipo negocial específico, os quais obrigam as partes não apenas a agir com uma dose elevada de diligência, i.e., de cuidado, mas, acima de tudo, a adotar uma conduta adequada e a pensar não apenas em seus próprios interesses, mas também nos interesses legítimos da contraparte. São os deveres laterais de conduta, oriundos do princípio da boa-fé objetiva, atualmente ditos deveres de consideração (Rücksichtspflichten)[4].

Foi Hermann Staub quem pioneiramente apontou a presença de deveres adicionais de conduta no âmbito do contrato, quando as partes se encontram em intenso contato e envolvidas no cumprimento do chamado programa obrigacional. Esses deveres, quando violados, atingem a relação obrigacional de modo diferente daquelas hipóteses tradicionais previstas pelo legislador no BGB/1900 (impossibilidade e mora). Esse tipo de perturbação no programa obrigacional – à época não tão bem delimitado por Staub –  foi denominada de violação positiva do contrato ou positive Vertragsverletzung.

Staub, que por sua origem judia foi impedido de assumir uma cátedra na Alemanha antissemita de fins do século 19[5], estabeleceu o primeiro conceito de violação positiva do contrato como sendo a inobservância culposa de deveres de consideração no desenvolvimento da relação contratual, hipótese que se distingue dogmaticamente dos demais modos de perturbação da prestação contratual, pois na violação positiva o que é afetado num primeiro momento é  um dever lateral de conduta e não o dever da prestação em si, cuja inobservância, pode dar ensejo à mora, ao inadimplemento ou ao cumprimento defeituoso do contrato[6].

A partir do reconhecimento da existência de deveres sui generis antes e durante o vínculo contratual, a doutrina e a jurisprudência alemãs identificaram que esses deveres poderiam permanecer mesmo após a conclusão do contrato, embora as partes já tenham se desvinculado contratualmente. A função desses deveres pós-contratuais decorrentes do agir segundo a boa-fé,  presentes mesmo após a extinção da relação contratual, seria evitar danos à esfera jurídica do contratante e conservar o fim último do contrato. Surge, então, a categoria da responsabilidade pós-contratual ou culpa post pactum finitum, objeto desse curto ensaio.

2. Origem no direito alemão

A discussão em torno da responsabilidade post factum finitum nasce no direito alemão umbilicalmente ligada ao princípio da boa-fé objetiva (Grundsatz von Treu und Glauben)[7], pois decorre da violação dos deveres da boa-fé post contractum finitum. É o principio da boa-fé objetiva que fornece o substrato ético ao deveres laterais de conduta, atualmente denominados deveres de consideração.

A boa-fé objetiva é uma expressão da ética no direito e seu significado e conteúdo só podem ser buscados na fórmula-par da Treu und Glauben do direito alemão, em que Treu exprime fidelidade, honestidade e sinceridade, e Glauben, confiança e consideração por uma confiança digna de proteção[8]. Por isso, a boa-fé exprime o mandamento da eticidade, desdobrando-se em dois comandos centrais: (i) agir com retidão de conduta e (ii) além dos próprios interesses,  ter consideração também pelos interesses legítimos da contraparte, o que importa na limitação de conduta e no equilíbrio das posições jurídicas dos contratantes.

Claudia Schubert, Professora em Berlim, após traçar profundo panorama histórico acerca do desenvolvimento do § 242 BGB, no famoso Comentário de Munique ao BGB, conclui:

“Em resultado, ´Treu und Glauben` remete em seu sentido literal, de um lado, a uma proteção da confiança e, de outro, à ´justa` consideração pelos interesses da contraparte dignos de proteção. Isso vale ainda quando a lei não leve em conta, ou não suficientemente, o merecimento de proteção dos envolvidos. O critério conteudístico resulta de mandamentos sociais extra ou supra-jurídicos e de princípios éticos, que subjazem à ordem jurídica como um todo, ainda quando não positivados ou apenas parcialmente positivados no direito. Em última análise, nesses conceitos corporifica-se um elemento fundamental da tradição jurídica ocidental, o elemento de uma sociedade organizada que se constrói sobre o princípio da confiança recíproca entre seus membros.”[9].

É, portanto, o chamado núcleo duro do conceito da boa-fé objetiva – o mandamento de retidão e consideração pelos interesses legítimos da contraparte – que fornece o substrato axiológico dos diversos deveres de consideração que surgem antes, durante e mesmo depois do contrato, os quais, se violados, dão ensejo à configuração, respectivamente, da responsabilidade pré-contratual, da violação positiva do contrato e da responsabilidade pós-contratual.

Por isso, essas categorias jurídicas só podem ser analisadas sob o enfoque da boa-fé objetiva, na sua vertente criadora de deveres de conduta ético-jurídicos, que, no âmbito do direito brasileiro, encontra base legal na cláusula geral do art. 422 CC/2002, onde essas três figuras (responsabilidade pré-contratual, violação positiva do contrato e responsabilidade pós-contratual) podem ser subsumidas.

Esses três institutos retratam, a rigor, o mesmo problema: a violação imputável dos deveres de consideração no bojo de uma situação negocial, aqui amplamente entendida como uma situação jurídica marcada pela presença – ainda que virtual – do negócio jurídico, razão primeira e última do contato estabelecido entre as partes. Mas como o descumprimento dos deveres de conduta podem ocorrer em circunstâncias fáticas e temporais distintas, os institutos da responsabilidade in contrahendo, da violação positiva do contrato e da responsabilidade post factum finitum possuem, evidentemente, pressupostos (suportes fáticos) e efeitos jurídicos específicos.

O ponto de partida para a compreensão desses institutos é a constatação de que os deveres de conduta – e mesmo a relação obrigacional – podem surgir entre as partes mesmo sem contrato. Como a doutrina alemã há muito demonstra, a relação obrigacional não se esgota no binômio crédito e débito. Com isso quer-se dizer não apenas que a relação obrigacional é complexa, porque formada por uma gama de elementos (direitos, deveres, poderes, ônus, faculdades, etc.), como tão bem exposto por Clóvis do Couto e Silva na clássica obra: A obrigação como processo[10].

Dizer que a relação obrigacional não se esgota no binômio crédito e débito  importa afirmar que ela é uma realidade mais ampla e prévia ao contrato, que nasce quando as partes estabelecem o contato negocial para discutir a eventual e futura celebração de um negócio, perpassa o contrato (se celebrado) e se estende para além da sua extinção[11].

Por certo que durante a fase de preparação do negócio, a relação obrigacional não irradia deveres prestacionais, i.e., obrigações stricto sensu, porque contrato não há, mas dela emanam deveres laterais de conduta decorrentes da boa-fé objetiva, que dogmaticamente são qualificados como deveres obrigacionais sui generis. Da mesma forma, em regra, na fase pós-contratual não há mais obrigações stricto sensu, mas tão somente deveres laterais de conduta de observância obrigatória, que se voltam para garantir a higidez da prestação contratual adimplida.

E dizer que a relação obrigacional não se esgota no binômio crédito e débito permite afirmar a existência de um tipo especial de relação obrigacional que pode produzir apenas deveres de consideração. É o que ensina  Karl Larenz ao se referir à “relação obrigacional sem dever de prestação” (Schuldverhältnis ohne Leistungspflichten) ou “vinculação especial” (Sonderverbindung)[12]. Seu maior discípulo, Claus-Wilhelm Canaris, acentuando o fundamento do vínculo, a denomina “relação obrigacional da confiança” (Vertrauensschuldverhältnis)[13].

Mas todas as expressões exprimem o mesmo fenômeno jurídico, qual seja: uma relação obrigacional sem obrigação, sendo o termo obrigação aqui entendido stricto sensu, como deveres prestacionais, principais ou acessórios. Essa noção é importante, porque derivam desse vínculo obrigacional especial os deveres laterais de conduta, os quais podem ser violados antes, durante e mesmo depois de extinto o vinculo contratual, quando, a rigor, nada mais se esperaria das partes.

Para Larenz, a relação obrigacional surge tênue na fase de preparação do negócio, gerando deveres de conduta pré-contratuais e, se e quando surge o consenso, o vínculo se condensa e se transforma na relação obrigacional complexa, formada por uma dinâmica plêiade de elementos normativos, tal como exposta por Couto e Silva.

A execução do contrato, ao contrário do que comumente se imagina, não põe fim à relação obrigacional, mas apenas ao vínculo contratual entre partes, que se dissolve com o cumprimento do programa obrigacional. A relação obrigacional, porém, por ser mais ampla, subsiste, embora tênue, vez que dela derivam, em determinadas circunstâncias, deveres de conduta pós-contratuais[14], segundo a teoria da transmudação da relação obrigacional de Larenz[15].

3. Pressupostos e efeitos da responsabilidade pós-contratual

A ideia central da responsabilidade pós-contratual parte, portanto, da constatação de que o cumprimento da obrigação – e, de forma mais ampla, a execução – põe fim ao contrato, mas não à relação obrigacional especial, que surge na fase de preparação do negócio, transpassa o período de sua existência e permanece em estado latente, irradiando deveres pós-eficaciais após a extinção do pacto.

Para Günther Roth, a execução da prestação principal significa apenas o expirar do dever de prestação principal, vez que deveres de conduta – por ele denominados deveres de proteção – podem continuar existindo depois do momento da execução[16].

No mesmo sentido é o ensinamento de Larenz que, ao tratar dos deveres pós-contratuais (nachvertragliche Pflichten), atesta:

“Os deveres de conduta, fundados na ´boa-fé objetiva`, também podem ter por fim [evitar] que surjam quaisquer desvantagens para a contraparte no período após o término da relação contratual. Na verdade, os deveres pós-contratuais podem resultar na medida em que a ´boa-fé objetiva` exige, em certas circunstâncias, que uma parte contratual, mesmo depois da dissolução da relação contratual – mais precisamente: depois da execução de todos os deveres de prestação principais – ainda realize atos vantajosos para a outra ou abstenha-se daquelas ações que privam a outra das vantagens outorgadas pelo contrato ou as reduzam consideravelmente.”[17]

Os deveres que decorrem dessa relação obrigacional especial, já rarefeita com o fim do contrato, são os deveres de consideração, deduzidos da boa-fé objetiva, os quais têm na fase pós-contratual a função primária de conservar o resultado da prestação ou o fim último do contrato, tutelando as posições jurídicas auferidas com o cumprimento[18]. Por isso, o mandamento da lealdade e consideração exige que os contratantes se abstenham de qualquer ato que possa frustrar ou pôr em risco o fim do contrato já alcançado.

Wolfgang Fikentscher e Andreas Heinemann, ao abordarem os deveres pós-contratuais oriundos da boa-fé objetiva, explicam que “mesmo diante de um contrato já executado, podem surgir entre as partes deveres de diligência. As partes de um contrato executado são obrigadas entre si, por força da boa-fé objetiva, sob consideração dos usos do comércio, a não pôr em risco posteriormente aquilo que foi obtido com o contrato.”[19]. Os deveres de consideração tutelam, dessa forma, uma legítima expectativa de proteção que os contratantes conservam em relação à prestação já adimplida.

Para alcançar esse fim, podem surgir nessa fase – de acordo com as circunstâncias do caso concreto – tanto deveres omissivos, como não concorrência e sigilo, quanto deveres comissivos, como de informação, de proteção e de cooperação.  Como regra geral, pode-se dizer que os deveres pós-eficaciais de conduta perduram enquanto houver o risco de um contratante atuar sobre a esfera jurídica do outro, causando-lhe danos[20].

Foi o Reichsgericht, antigo Tribunal Imperial alemão, que pioneiramente reconheceu esse dever especial dos contratantes de se abster de tudo o que possa colocar em risco a conservação do fim do contrato. Em julgado precursor, a Corte alemã considerou que contratos de locação e arrendamento exigem, em regra, intensa cooperação entre as partes, de forma que o locador de imóvel, no qual funcionava uma clínica médica, tinha o dever de tolerar que o médico locatário, após a mudança, colocasse do lado da porta de entrada, por um “período razoável”, uma placa com seu novo endereço[21]. A mesma lógica aplicava-se em caso de escritório de advocacia[22].

Esse precedente foi seguido pela Corte infraconstitucional (Bundesgerichtshof) em vários julgados, nos quais se reconheceu que, mesmo após a execução e extinção do contrato, a boa-fé objetiva pode impor, dentro dos limites do razoável, o surgimento de certos deveres pós-contratuais, comissivos ou omissivos, a fim de evitar que o contratante sofra danos conexos com o contrato já executado. Dentre esses deveres destacam-se principalmente a proibição de subtrair ou reduzir as vantagens auferidas pelo credor com o contrato, bem como o dever de abster-se de tudo o que possa pôr em risco ou frustrar o fim contratual.

Em caso julgado em 1952, o BGH consignou expressamente no acórdão: “O Bundesgerichtshof adere à jurisprudência do Reichsgericht segundo a qual, mesmo em caso de contrato de venda de mercadorias executado através de prestações bilaterais, podem surgir pós-eficácias, principalmente o dever de uma das partes de abster-se de tudo aquilo que possa frustrar ou ameaçar o fim do contrato”[23].

Disso se conclui que os deveres que dão ensejo ao surgimento da responsabilidade pós-contratual distinguem-se das chamadas obrigações contratuais pós-eficaciais, ou seja, aquelas obrigações que, previstas expressamente na lei ou no contrato, destinam-se a ter eficácia somente após a extinção do vínculo contratual. Exemplos frequentes na prática são os deveres de sigilo, de não concorrência ou de pagamento de pensões ou indenizações, presentes em contratos de trabalho, de prestação de serviços e em alguns contratos societários.

Neste caso, está-se diante de típicas obrigações, cuja fonte é a  autonomia privada das partes, as quais, quando inadimplidas, configuram descumprimento contratual. A peculiaridade dessas obrigações é que elas nascem no momento da celebração do contrato, mas têm a sua eficácia programada para iniciar apenas depois de extinto o contrato e para vigorar pelo tempo determinado pelas partes.

Tem-se aqui o que António Menezes Cordeiro denomina “pós-eficácia virtual”, que se configura “quando uma situação jurídica complexa preveja, desde o início, deveres a observar no seu termo” ou “pós-eficácia aparente”, configurada quando a lei associa, de modo expresso, certos deveres à extinção das obrigações. Delas distingue-se – continua o mestre português – a “verdadeira pós-eficácia” ou “pós-eficácia em sentido estrito”, que se coloca em face da violação dos deveres laterais de conduta, por ele chamados deveres acessórios[24].

Os deveres de consideração pós-contratuais, ao contrário, não estão previstos no contrato ou na lei. Eles surgem efetivamente depois de extinto o vínculo contratual, de acordo com as peculiaridades do caso concreto e têm por fim impor não apenas sigilo e proibição de concorrência, mas vetar qualquer conduta que cause dano ao antigo contratante, ponha em risco a posição jurídica adquirida com o contrato ou esvazie seu fim.

Ao tratar do tema, Rogério Donnini afirma que os verdadeiros casos de responsabilidade pós-contratual são aqueles nos quais os deveres da boa-fé são transgredidos após a extinção do contrato. Se o dever de informação, proteção ou lealdade estiver previsto em lei ou no contrato de maneira específica, diz o autor, “não se configura hipótese de responsabilidade pós-contratual, mas exato cumprimento de determinação legal que estende os efeitos do contrato, ou disposição contratual que estabelece uma certa produção de efeitos.”. A mera produção de efeitos para o momento posterior à celebração do contrato não configura a responsabilidade pós-contratual, conclui o autor[25].

Nesse sentido também são os ensinamentos de Wolfgang Ernst, ao tratar do tema no Comentário de Munique ao BGB. Diz o autor:

“Como deveres de lealdade pós-eficaciais são designados os deveres que vinculam as partes de um contrato mesmo após o cumprimento recíproco, no estágio de liquidação (do contrato), por assim dizer. Trata-se aqui, individualmente, de fenômenos realmente distintos. Inicialmente, deve-se excluir a chamada continuidade da eficácia contratual. Entende-se com isso acordos das partes para o período após a execução dos deveres prestacionais de ambas as partes ou, em caso de relações obrigacionais de longa duração, para o período após o fim do contrato. Esses acordos ocorrem com frequência em contratos de prestação de serviços, de trabalhistas e societários. Aqui estão em questão principalmente acordos sobre deveres de sigilo, proibições de concorrência, pretensões indenizatórias e pensões. Um exemplo legal é o dever de certificação do empregador (§ 630). Esses deveres mencionados dizem respeito a normais deveres de prestações contratuais, para os quais não existem quais peculiaridades.

Os “verdadeiros” deveres de lealdade pós-eficaciais distinguem-se, em essência, da eficácia contratual acima abordada apenas pelo fato de que eles não são expressamente acordados, mas resultam do contrato através da interpretação conforme a boa-fé (§§ 157, 242; § 347 Código Comercial)…”[26].

Esse autor chama atenção para o fato do princípio da boa-fé objetiva incidir aqui em duas facetas: (i) como cânone interpretativo-integrativo do negócio jurídico, como deixam claro o § 157 BGB[27] e o art. 113 CC/2002, a guiar o julgador ou árbitro na interpretação das circunstâncias do caso concreto que justificarão a imposição de deveres pós-contratuais e (ii) como fonte geradora dos deveres ético-jurídicos de conduta, cuja infringência – após extinto o contrato – dá ensejo à responsabilidade pós-contratual.

Diante de qualquer conduta, imputável à título de culpa ao contratante, que frustre ou ponha em risco o resultado útil ou o fim do contrato ou ainda a posição jurídica obtida com a execução do negócio, surge o dever de indenizar, que é o efeito jurídico frequentemente atribuído pela ordem jurídica à inobservância de deveres.

No direito brasileiro, doutrina e a jurisprudência impõem o dever de indenizar os prejuízos sofridos pelo contratante como efeito jurídico imediato da responsabilidade pós-contratual. Porém, a jurisprudência alemã tem atribuído outras consequências aos comportamentos desleais praticados após o cumprimento e a extinção do contrato. Assim, há precedentes admitindo, em casos excepcionais, o direito do contratante lesado resolver o contrato e pedir uma indenização substitutiva da prestação (interesse positivo) quando a conduta desleal aniquilar totalmente o resultado da prestação[28].

Da mesma forma, admite-se, excepcionalmente, a caducidade (suppressio/Verwirkung) de pretensões previstas no contrato extinto, como no exemplo do empregado que violou a proibição de concorrência e viu suprimido o direito de receber do empregador a aposentadoria privada prevista originalmente no contrato. Da mesma forma,  o sócio que se desentende com o outro e deixa a sociedade após acordar o recebimento de uma indenização, fica obrigado pela boa-fé objetiva a abster-se de tudo o que possa prejudicar a antiga sociedade e, se ele posteriormente viola esse dever de lealdade pós-contratual, boicotando ou dificultando a continuidade das atividades da sociedade,  a cobrança da indenização acordada aquando da saída da empresa passa a se caracterizar como um exercício inadmissível de direito[29].

Por fim, em tema de responsabilidade post factum finitum, reina controvérsia acerca de sua natureza jurídica, problema aqui não abordado com profundidade por extrapolar os limites deste ensaio. A doutrina discute se essa responsabilidade poderia ser qualificada como responsabilidade extracontratual, uma vez que o contrato entre as partes já estaria extinto ou se seria uma hipótese de responsabilidade contratual. Mais acertada parece ser a corrente que submete a responsabilidade pós-contratual ao regime da responsabilidade contratual, embora ausente contrato entre as partes.

Ao contrário do que alguns autores sustentam, isso não se explica pelo fato dos deveres de consideração pós-contratuais decorrerem do contrato extinto, pois, como exposto no início, todos os deveres de consideração – surjam eles antes, durante ou depois do contrato – independem da vontade das partes, isto é, da autonomia privada.

A justificativa para a aplicação do regime contratual aos casos de violações de deveres de consideração se deve ao entendimento de que esses deveres formam uma categoria especial de deveres obrigacionais (deveres obrigacionais sui generis), os quais, à semelhança dos deveres prestacionais tipificados na avença, são deveres relativos existentes entre sujeitos determinados. Eles não são deveres jurídicos gerais e erga omnes, como o dever geral de não lesar, pressuposto elementar da responsabilidade aquiliana.

Além disso, eles se reconduzem necessariamente à relação obrigacional especial estabelecida entre as partes antes mesmo do contrato se formar e que sobrevive à própria extinção do contrato[30]. E por fim, em última instância, esses deveres são funcionalizados para proteger a esfera jurídica do antigo contratante e preservar o escopo contratual, alcançado com o cumprimento.

Cabe salientar que, no âmbito da jurisprudência brasileira, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o REsp. 1.367.955/SP, sob relatoria do e. Min. Paulo de Tarso Sanseverino[31], reconheceu – de forma pioneira e inovadora – a aplicação do regime da responsabilidade civil contratual aos deveres decorrentes da boa-fé objetiva, ainda quando surgidos na fase pré-contratual, de forma que se pode concluir que o mesmo entendimento vale para os deveres surgidos na fase pós-contratual. Desse modo, considerando esse importante precedente, o descumprimento de todos os deveres da boa-fé submete-se ao regime da responsabilidade contratual.

A discussão acerca da natureza jurídica da responsabilidade pós-contratual não é meramente teórica, mas tem grande relevância prática como, por exemplo, na definição do regime prescricional aplicável. Tendo em vista que a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça pacificou em 2019 o entendimento de que os casos de responsabilidade contratual submetem-se ao prazo prescricional decenal do art. 205 CC/2002, reservando-se o prazo trienal do art. 206, § 3º, inc. V CC/2002 exclusivamente aos casos de responsabilidade aquiliana[32], conclui-se que o lesado tem o prazo de dez anos do art. 205 CC/2002 para pleitear a indenização por danos decorrentes da violação dos deveres da boa-fé (danos da confiança), surjam eles antes, durante ou depois do contrato.

4. Exemplos de responsabilidade pós-contratual

a) Exemplos da jurisprudência alemã

Um caso de responsabilidade pós-contratual bem conhecido na Alemanha é o do vendedor de um imóvel, do qual se tinha uma bela vista para um monte, que garantiu à compradora durante das negociações que aquela vista não seria perdida, porque o plano de urbanização municipal proibia edificações no terreno em frente[33]. Porém, alguns meses depois da venda, o vendedor adquiriu o terreno e pleiteou na Prefeitura a autorização para erguer uma edificação no local, que, concedida, acabou prejudicando a vista da compradora.

A compradora ingressou com ação requerendo indenização pela vista panorâmica perdida, embora essa circunstância não estivesse expressa no instrumento contratual. A ação foi julgada improcedente em todas as instâncias, mas o Reichsgericht  reverteu o entendimento e deu razão à autora ao argumento de que o vendedor violara o dever de lealdade pós-contratual ao adquirir ele próprio o terreno, requerer a licença e construir no imóvel vizinho, depois de ter garantido à compradora que a área não seria edificada.

Em regra, os deveres da boa-fé surgem na fase pós-contratual principalmente no âmbito de situações negociais marcadas por elevado grau de confiança, de colaboração e de consideração pelos interesses da contraparte, como o são os contratos de trabalho, de prestação de serviço, de locação e societário. Tal fato, porém, não impede que deveres laterais de conduta pós-contratuais surjam em qualquer outra situação negocial, de qualquer natureza, sempre que violado bens e interesses da contraparte ou frustrado ou ameaçado o escopo contratual após a extinção das obrigações.

Um bom exemplo foi o reconhecimento em contratos de compra e venda do dever do vendedor de, durante determinado período, fornecer aos compradores (consumidores ou não) peças sobressalentes de seus produtos. Esse dever surgiu na jurisprudência alemã como um dever pós-contratual, decorrente do princípio da boa-fé objetiva, muito antes das normas consumeristas positivarem expressamente essa obrigação nas relações jurídicas de consumo[34]. O mesmo se diga em relação ao dever de prestar assistência técnica.

Os contratos de locação em geral, por exigirem elevado grau de cooperação e consideração pelos interesses da contraparte, fornecem rico substrato fático para o nascimento de diversos deveres laterais de conduta mesmo após a completa extinção da relação locatícia. Além do mencionado caso do dever de tolerância com a placa indicativa do novo endereço comercial, o locador pode responder por responsabilidade pós-contratual quando, v.g., retém indevidamente objetos impenhoráveis do locatário deixados no imóvel ou quando permite que o locatário, findo o contrato, deixe temporariamente objetos no imóvel e não adota medidas adequadas para proteger os pertences, que acabam sendo danificados ou destruídos. Nesse caso, a jurisprudência alemã entende que o locador, longe de fazer mero favor, tem – por força da boa-fé objetiva – um dever de proteção pós-contratual para com os pertences do antigo inquilino[35].

Os contratos trabalho, bem como muitos contratos de prestação de serviços, são marcados por intensa cooperação das partes, a exigir especial confiança, lealdade e consideração pelos interesses do outro. Por isso, o dever de lealdade pós-contratual, decorrente do princípio da boa-fé objetiva, impõe uma série de conduta obrigatórias a empregadores e empregados mesmo após o fim do contrato de trabalho. A jurisprudência alemã tem imposto, nesse sentido, ao empregador o dever pós-contratual de fornecer certificados ou declarações ao ex-funcionário e a fornecer a terceiros informações corretas e verídicas sobre o antigo empregado, sancionando o patrão que passa a terceiros informações inverídicas e desabonadoras da conduta do trabalhador[36], como, por exemplo, de que ele deixou o posto devendo ao colegas da empresa[37]

Embora a lealdade pós-contratual imponha deveres de consideração também ao empregado, aqui é preciso cuidado sobretudo nos limites da exigência de deveres de sigilo e de não concorrência em face do antigo empregador, a fim de não inviabilizar a carreira ou o progresso profissional do trabalhador. Por isso, no contexto da jurisprudência alemã, essas exigências pós-contratuais só têm sido admitidas em situações excepcionais e desde que bem fundamentadas, na medida que elas poderiam violar direitos inerentes à liberdade profissional, essenciais à pessoa do empregado e que estariam na esfera de direitos irrenunciáveis. Feitas essas ressalvas, alguns julgados consideram que o empregado age deslealmente, por exemplo, quando divulga indevidamente segredos comerciais ou industriais da empresa, dos quais tomou conhecimento durante a relação jurídica de trabalho[38].

Pelas mesmas razões, o advogado é obrigado, mesmo após o fim do mandato, a adotar medidas adequadas – ao encerrar ou se afastar do caso – para que o cliente não sofra nenhum dano, como o decorrente da prescrição de pretensões[39], risco acerca do qual o cliente precisa, no mínimo, ser alertado[40]. Da mesma forma, é obrigado a devolver os autos do processo, não podendo retê-los até que o cliente pague taxas ou emolumentos de qualquer espécie[41], a guardar adequadamente os documentos recebidos do cliente e a comunicar sem delongas o desinteresse em assumir novo mandato, relacionado com o já executado, a fim de que o cliente tenha tempo hábil para procurar outro causídico para agir no prazo que lhe resta[42].

O arquiteto, da mesma forma, pode ser obrigado por força do mandamento da eticidade a auxiliar o contratante (dono da obra) a eliminar eventuais vícios na obra, embora o contrato entre ambos já tenha se extinguido. Isso inclui, por exemplo, prestar esclarecimentos sobre as possíveis causas do problema ou auxiliá-lo na definição das medidas necessárias para corrigir o defeito[43].

Por fim, inúmeros são os casos de deveres de conduta pós-contratuais em contratos comerciais e societários, nos quais a boa-fé objetiva incide com plena eficácia, vez que essas relações são, em regra, marcadas pela longa duração, confiança, intenso contato entre as partes e colaboração. Não por acaso o dever de agir segundo a boa-fé objetiva, enquanto regra de conduta, surgiu na prática comercial alemã na Idade Média e só séculos depois foi incorporado ao direito civil geral quando o Reichsgericht, criado em 1879, recepcionou a jurisprudência dos tribunais comerciais[44].

Dessa forma, ainda quando alguns deveres de consideração, como o de informação e esclarecimento, surjam com menos frequência em relações interempresariais pautadas pelo mesmo grau informacional, é equivocado afirmar que a boa-fé objetiva teria eficácia mitigada nas relações comerciais, até porque, presente o desnível informativo, esses deveres surgirão da mesma forma que em uma relação civil.

Um dos deveres da boa-fé mais comuns na fase pós-contratual é justamente a proibição de concorrência, que veda o empresário de alienar sua empresa e in continenti abrir outra do mesmo ramo e nas proximidades da primeira. Mas qualquer conduta desleal do antigo parceiro comercial – ou antigo sócio – que cause obstáculos ao funcionamento da empresa, pode ser sancionada pelo mandamento da boa-fé objetiva. Assim, o BGH considerou desleal a conduta de ex-sócio que, após deixar a sociedade, passou informações sigilosas da empresa ao arrendador, levando-o a rescindir o contrato de arrendamento, inviabilizando o funcionando do empreendimento. Da mesma forma, a conduta daquele que divulga informações confidenciais ou passa informações inverídicas a importante fornecedor, induzindo-o a romper a relação comercial, causando danos patrimoniais à empresa.   

Em caso julgado em 1960, o BGH reconheceu o dever do ex-sócio de abster-se da prática de qualquer ato ou conduta que perturbasse a exploração do imóvel, utilizado para extração de cascalho. Na decisão, a Corte salientou que “o princípio da boa-fé objetiva, que domina o comércio jurídico como um todo, impõe nesses casos evitar danos ao parceiro contratual… Esses deveres de proteção perduram mesmo depois do fim de uma relação jurídica, como dever de lealdade pós-eficacial”[45].

b) Exemplos da jurisprudência brasileira

Encontram-se muitos julgados que fazem referência expressa à responsabilidade pós-contratual, principalmente quando se tratam de deveres legais ou contratuais programados para ter eficácia após a extinção do contrato. Mas, seguindo a linha majoritária na doutrina especializada, entende-se, em princípio, a responsabilidade pós-contratual como a violação de deveres laterais de conduta, oriundos da boa-fé objetiva, após o cumprimento adequado do contrato e sua consequente extinção e esses casos são mais raros na jurisprudência.

Um dos primeiros casos de responsabilidade pós-contratual noticiados no Brasil data do início do século passado e foi solucionado sem qualquer referência à figura, à época ainda desconhecida. Trata-se do caso da fusão da fábrica de Juta Sant´Ana, de propriedade do Conde Álvares Penteado, com as fábricas São João e Santa Luiza, dando origem à Companhia Nacional de Tecidos de Juta. Um ano após alienar sua empresa à nova companhia, o Conde abriu na mesma região outra fábrica de fiação e tecidos de juta (Companhia Paulista de Aniagens), voltando a exercer a mesma atividade comercial anterior, o que levou a compradora a mover ação indenizatória alegando prática de ato doloso de concorrência desleal e pleiteando a devolução de parte do valor pago pela “posição no mercado” da empresa e pela “fama do empresário”, o que a doutrina comercialista denomina de aviamento.

A ação foi julgada improcedente em primeira instância ao argumento de que não havia no contrato celebrado qualquer cláusula de cessão da clientela ou que impedisse o alienante de abrir nova indústria no mesmo ramo de atividade. O Supremo Tribunal Federal, à época competente para dirimir a questão, chegou a reformar a decisão em 30.04.1913, condenando a viúva e os herdeiros do Conde a indenizarem os danos causados à Companhia de Tecidos de Juta. Mas um recurso de Rui Barbosa fez a Corte rever a posição sob o argumento de que, sem cláusula expressa, não se poderia admitir a cessão da clientela e, dessa forma, nada impedia o alienante de exercer no mesmo local a mesma atividade industrial[46].

A decisão não surpreende, primeiro, porque inexistia no Código Bevilaqua norma semelhante ao art. 1.147 CC/2002[47] e, segundo, porque, apesar da boa-fé objetiva estar à época prevista no art. 131 do Código Comercial, o princípio não tinha qualquer aplicabilidade prática além de reforçar a necessidade de cumprimento do pactuado, aos moldes da concepção francesa de bonne foi, visto como imprescindível à segurança jurídica do comércio. Nessa linha, os contratos deveriam ser cumpridos independentemente de qualquer preocupação com a correção da conduta das partes, principalmente antes e depois do contrato, momentos em que inexiste vínculo contratual.

Na verdade, é preciso que se recorde, naquela época não havia preocupação, tampouco exigência jurídica de ética nos negócios, equilíbrio contratual e justiça material[48], de forma que a boa-fé objetiva da codificação comercial permaneceu verdadeira letra morta até a entrada em vigor da Lei do Consumidor. Mas é inegável que a conduta do Conde de, um ano depois de vender a fábrica, abrir outra na mesma região e no mesmo ramo de atividade[49], se deu em completo arrepio dos mandamentos de retidão e consideração pelos interesses da contraparte, núcleo duro do princípio da boa-fé objetiva, configurando conduta desleal materializada na violação do dever pós-contratual de não concorrência, cuja existência e eficácia – como, de resto, de todo dever lateral de conduta – independe de previsão expressa no contrato ou da vontade das partes.

Até onde se tem notícia, foi o e. Min. Ruy Rosado de Aguiar Júnior quem, ainda no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, primeiro aplicou a teoria da responsabilidade pós-contratual ao caso em que o vendedor, imediatamente após a venda do imóvel, tornou inviável a disposição do bem pela compradora ao ameaçá-la de morte e expulsá-la do local, a fim de vender a casa a terceiro[50]. No caso, o brilhante magistrado viu na conduta o descumprimento de dever secundário, oriundo do princípio da boa-fé objetiva, antes mesmo da entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor e da atual codificação civil.

Ao lado desses casos, digno de nota o importante julgado do Superior Tribunal de Justiça, que tem servido como precedente para a responsabilidade pós-contratual: REsp. 1.255.315/SP, julgado em 2011 sob a relatoria da e. Min. Nancy Andrighi, que envolveu a resilição de contrato de distribuição entre a Bayer S.A e a empresa Socipar S.A[51]. Ambas mantiveram por mais de quatorze anos contrato verbal de distribuição por meio do qual a Socipar adquiria produtos da Bayer e os revendia a terceiros.

A Socipar alegou na ação indenizatória movida contra a Bayer que fora surpreendida com a resilição unilateral do contrato, sem qualquer aviso prévio, o que lhe impedira de realizar suas atividades habituais após ter feito vultuosos investimentos no negócio durantes décadas e ter construído uma rede de clientes na América do Sul. A Bayer defendeu-se alegando, em suma, que o fim do contrato foi “decisão mercadológica” da matriz, situada na Alemanha, que resolveu transferir a linha de produção do Brasil para a Argentina.

Mas a Socipar demonstrou que, ao contrário do acordado, a Bayer passou a realizar a importação e distribuição dos produtos da Bayer Argentina, revendendo-os diretamente à sua rede de clientes, o que levou o Tribunal de Justiça de São Paulo a concluir que a Bayer teria se apoderado de “grande parte do fundo de comércio” da Socipar, “surrupiando-lhe a clientela”[52], em conduta desleal e ofensiva à boa-fé objetiva, que deve vigorar nas relações contratuais.

Uma análise mais detalhada da decisão revela que o problema central discutido na lide não foi tanto a resilição unilateral do contrato, que pode ocorrer, mas submete o contratante a indenizar as perdas e danos sofridas pela contraparte, mas sim a conduta desleal da Bayer do Brasil de, após encerrar o contrato de distribuição com a Socipar, passar a revender diretamente à rede de clientes construída por essa empresa ao longo de quase quinze anos, apropriando-se indevidamente de sua carteira de clientes, conduta que tanto o Tribunal paulista, quanto o Superior Tribunal de Justiça consideraram contrárias ao princípio da boa-fé objetiva, porque repudiam a noção de lealdade e retidão que devem presidir as relações comerciais.

Apesar disso, o instituto da culpa post factum finitum acabou ficando em segundo plano na fundamentação do acórdão, onde lê-se que “a rescisão imotivada do contrato, em especial quando efetivada por meio de conduta desleal e abusiva – violadora dos princípios da boa-fé objetiva, da função social do contrato e da responsabilidade pós-contratual – confere à parte prejudicada o direito à indenização por danos materiais e morais”. Por essa razão, esse acórdão vem sendo citado como leading case em uma série de casos de resilição unilateral de contratos de seguro e recusa imotivada de renovação, por ofensa aos princípios da boa-fé objetiva e função social dos contratos, embora tais casos não tratem especificamente da hipótese de responsabilidade pós-contratual[53].

A crítica que se faz à decisão é que, embora chegando a correto resultado, o Superior Tribunal de Justiça fundamentou a responsabilidade pós-contratual não apenas no princípio da boa-fé, mas também no princípio da função social dos contratos, em verdadeira retórica interpretativa, vez que a teoria da função social em nada contribuiu para o desenvolvimento do instituto da culpa post factum finitum, que encontra seu fundamento formal e material no mandamento da eticidade, que é a  fonte dos deveres de consideração pós-contratuais. 

Por fim, interessante notar que o caso foi solucionado com base no Código Civil de 1916 sendo um dos argumentos de defesa da Bayer o fato  de o Tribunal de Justiça de São Paulo  ter decidido a lide à luz dos princípios do Código Civil de 2002, em violação da regra de transição do art. 2.035, o que levou o Superior Tribunal de Justiça a salientar que o princípio da boa-fé objetiva, embora não positivado no CC/1916, fora “erigido a princípio” na Lei do Consumidor, sendo amplamente reconhecido como regra de interpretação dos contratos, sem qualquer referência ao art. 131 do Código Comercial, o que confirma a insignificância desse dispositivo no sistema legal brasileiro.

Cabe mencionar ainda as situações de responsabilidade pós-contratual no âmbito dos contratos de trabalho, os quais, como dito,  são marcados por elevado grau de confiança e cooperação entre as partes, circunstâncias que justificam o surgimento da intensa carga de deveres de consideração durante e depois do fim do vínculo contratual. E, como na jurisprudência alemã, um exemplo de dever lateral de conduta discutido com frequência no cotidiano forense, após o fim da relação trabalhista, é o dever de sigilo em relação a segredos da empresa.

O art. 482, alínea “g” da CLT, considera justa causa para a rescisão do contrato de trabalho pelo empregador a violação de segredo da empresa pelo empregado. Esse dever tem natureza jurídica de obrigação legal acessória surgida durante a relação jurídica de trabalho. E, embora a lei nada trate sobre a vigência desse dever após a extinção do contrato de trabalho, a doutrina tem justificado a imposição do dever de sigilo, para além do vinculo laboral,  a partir da cláusula geral da boa-fé objetiva do art. 422 CC/2002, vez que age com deslealdade o trabalhador que, findo o contrato de trabalho, divulga indevidamente segredos ou informações sigilosas da empresa, causando-lhe danos. Mas também aqui se faz necessária cautela na hora de exigir um dever de sigilo do empregado para não se inviabilizar tanto a recolocação, quanto o desenvolvimento do profissional no mercado de trabalho, porque, afinal, estão em jogo interesses essenciais à pessoa do trabalhador.

Outro exemplo de responsabilidade pós-contratual presente na prática jurisprudencial é o fornecimento de informações falsas e desabonadoras sobre ex-funcionário, comprometendo sua honra, idoneidade ou profissionalismo. Também a exemplo das cortes alemãs, o Tribunal de Justiça de  São Paulo julgou caso em que a empresa prestou informações desabonadoras sobre antigo funcionário, reconhecendo na conduta do empregador, não mero direito de informar, mas sim a violação de deveres laterais na fase pós-contratual, os quais decorrem “inequivocamente” do contrato entre as partes[54]. A decisão foi inegavelmente acertada e fundamentada,  embora mereça crítica a afirmação de que os deveres laterais de conduta decorrem do contrato.

Com efeito, é equivocado dizer que os deveres de consideração decorrem do contrato, enquanto ato de autonomia privada, porque eles surgem independentemente – e, não raras vezes – contra a vontade das partes e ainda quando nulo o contrato celebrado. Eles têm como fundamento a boa-fé objetiva, considerando as circunstâncias da situação fática concreta, de forma que o contrato, conquanto revele as peculiaridades do caso, não é fonte dos deveres de consideração, os quais surgem na fase de preparação do negócio, percorrem toda a avença negocial e subsistem à posterior a extinção do vínculo contratual.  

5. Conclusões

Diante do exposto, conclui-se que a boa-fé objetiva, enquanto limite imanente à autonomia privada e standard ético-jurídico de correção da conduta dos contratantes, impõe às partes deveres laterais de conduta (ditos hodiernamente: deveres de consideração) antes, durante e depois da existência do contrato. Mesmo após a perfeita execução do contrato, permanecem latentes deveres ético-jurídicos entre os antigos contratantes, que podem ser reivindicados e cuja função primária é – além de evitar danos à esfera jurídica dos contratantes, praticados em conexão com o contrato extinto – conservar o resultado útil da prestação realizada e o fim último da avença contratual. Em suma: tutelar a posição jurídica desejada e alcançada com o cumprimento do contrato.

Esses deveres não decorrem diretamente do contrato, já extinto pelo adimplemento, mas do princípio da boa-fé objetiva que incide sobre a relação obrigacional especial que, embora fluida e rarefeita, ainda vincula as partes. Logo, embora a responsabilidade pós-contratual não esteja expressamente disciplinada no Código Civil, ela tem base legal na cláusula geral da boa-fé objetiva (art. 422 CC/2002) e é um dos muitos institutos desenvolvidos a partir da teoria da confiança, construída pela doutrina alemã com amparo na boa-fé.  Ademais, a responsabilidade post factum finitum decorre da violação de deveres laterais de conduta após a extinção do contrato, frustrando ou pondo em risco a posição jurídica auferida com o cumprimento, o fim último do contrato ou a esfera jurídica da parte.

Pressuposto, portanto, para a configuração da responsabilidade pós-contratual é a violação de dever lateral de conduta que cause dano à contraparte, seja violando direitos ou interesses do contratante, seja frustrando ou comprometendo a posição jurídica adquirida com a adequada execução do contrato. Exceto em situações jurídicas de consumo, em regra é necessário que a conduta desleal seja imputável a título de culpa ao devedor.

Embora o efeito imediato da violação dos deveres pré-contratuais seja o surgimento do dever de indenizar, deve-se atentar ao fato de a doutrina estrangeira ter deduzido outras consequências jurídicas do descumprimento dos deveres de boa-fé, como o desfazimento do contrato executado ou a supressão de eventuais pretensões pós-eficaciais, oriundas do antigo contrato.

A responsabilidade pós-contratual ainda precisa ser aprofundada no direito brasileiro, pois existem várias questões controvertidas, principalmente a espinhosa discussão acerca das distinções entre a pós-eficácia stricto sensu, decorrente da violação dos deveres de consideração, e a pós-eficácia virtual e aparente, quando as partes ou a lei, respectivamente, estabelecem obrigações para ter eficácia somente após a extinção do contrato. Também ainda discutida é a natureza jurídica da responsabilidade post factum finitum, que, a considerar o importante precedente do Superior Tribunal de Justiça e a doutrina majoritária na Alemanha, pode e tende a ser considerada como natureza contratual.


[1] Doutora pela Humboldt Universität de Berlim (Alemanha). Prêmio Humboldt de melhor tese de doutorado na área de Direito Civil (2018). LL.M na Friedrich-Alexander Universität Erlangen-Nürnberg (Alemanha). Mestre em Direito Civil pela PUCSP. Secretária-Geral da Deutsch-Lusitanische Juristenvereinigung (Associação Luso-alemã de Juristas), sediada em Berlim. Foi pesquisadora-visitante no Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Alemão) e bolsista do Max-Planck Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Autora da coluna “German Report”, no Portal Migalhas. Professora, Consultora e Parecerista. E-mail: contato@karinanunesfritz.adv.br. 

[2] Doutora em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Civil pela Universidade de Camerino, Itália. Presidente da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP). Diretora da Comissão de Jurisprudência do Instituto Brasileiro de Direito Família (IBDFAM). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCIVIL). Membro da Associação Internacional de Juristas de Direito de Família (AIJUDEFA). Advogada sócia na Girardi Sociedade de Advogados, com sede em São Paulo.

[3] VON JHERING, Rudolf. Culpa in contrahendo ou indemnização em contratos nulos ou não chegados à perfeição. Tradução: Paulo Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2008, p. 32. Para uma análise acerca da originalidade da teoria de Jhering, permita-se remeter a: NUNES FRITZ, Karina. A culpa in contrahendo no direito alemão: um contributo para reflexões em torno da responsabilidade pré-contratual. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 15, 2018, p. 164-207.

[4] Acerca da nova terminologia dos deveres laterais de conduta, adotada na Alemanha após a reforma do BGB em 2002, confira-se: NUNES FRITZ, Karina. Boa-fé objetiva na fase pré-contratual – a responsabilidade pré-contratual por ruptura das negociações. Curitiba: Juruá, 2008, p. 200 s.

[5] Sobre a vida e as discriminações sofridas por Hermann Staub e outros grandes juristas de origem judia, como Georg Jellinek e Louis Goldschmidt, que se viram impedidos de seguir carreira acadêmica na Alemanha antissemita da época, confira-se: HENNE, Thomas. Diskriminierung gegen „jüdische Juristen“ und jüdische Abwehrreaktionen im Kaiserreich – von Samuel zu Hermann Staub. In: Festschrift für Hermann Staub zum 150. Geburtstag am 21. März 2006. Thomas Henne, Rainer Schröder e Jan Thiessen (coord.). Berlin: De Gruyter, 2006, p. 11. Informa Thomas Henne que o famoso constitucionalista Paul Laband, também de origem judia, teve que se abandonar o judaísmo para ter acesso à carreira acadêmica algumas décadas antes da geração de Staub.

[6] Um exemplo esclarecedor de violação positiva do contrato, em tempos de pandemia, é o descumprimento injustificado do dever de renegociar, imposto pela boa-fé objetiva como dever lateral de conduta no âmbito do contrato concreto, desequilibrado pelas medidas de contenção do coronavírus.

[7] No direito alemão, confira-se, dentre outros: LARENZ, Karl. Lehrbuch des Schuldrechts. v. 1, 14ª. ed. München: Beck, 1987, p. 141. No direito português, dentre muitos: MENEZES CORDEIRO, António. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2001, p. 630.

[8] Acerca do desenvolvimento histórico da boa-fé objetiva, principalmente no direito alemão, permita-se remeter a NUNES FRITZ, Karina. Boa-fé objetiva na fase pré-contratual…, p. 89 ss.

[9] No original: „Im Ergebnis verweist ´Treu und Glauben` nach dem Wortsinn zum einen auf den Vertrauensschutz, zum anderen auf die ´billige` Rücksichtnahme auf schutzwürdige Interessen anderer Beteiligter. Das gilt auch, wenn das Gesetz der Schutzwürdigkeit der Beteiligten nicht bzw. nicht hinreichend Rechnung trägt. Der inhaltliche Maßstab ergibt sich aus außer- und überrechtlichen sozialen Geboten und ethischen Prinzipien, die der gesamten Rechtsordnung zugrunde liegen, auch wenn sie im Recht nicht oder nur partiell positiviert sind. Letztlich verkörpert sich in diesen Begriffen ein Grundelement der westlich-abendländischen Rechtstradition, das Element einer organisierten Gesellschaft, die auf dem Prinzip wechselseitigen Vertrauens zwischen ihren Mitgliedern aufbaut.“ In: Münchener Kommentar zum BGB. Wolfgang Krüger (redator), vol. 2, 7a ed. München: Beck, 2016, § 242 Rn. 11, p. 77.

[10] COUTO E SILVA, Clóvis. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2006. Originalmente apresentado como tese de livre-docência na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 1964.

[11] Acerca do conceito amplo de relação obrigacional, distinto da concepção romana de obrigação, confira-se: NUNES FRITZ, Karina. Boa-fé objetiva na fase pré-contratual…, p. 47 ss.

[12] Op. cit., p. 7, 104 ss.

[13] Ansprüche wegen “positiver Vertragsverletzung” und „Schutzwirkung für Dritte“ bei nichtigen Verträgen – Zugleich ein Beitrag zur Vereinheitlichung der Regeln über die Schutzpflichtverletzungen. JZ 15, 1965, p. 477. Sobre a teoria de Canaris, confira-se: NUNES FRITZ, Karina. A culpa in contrahendo no direito alemão…, p. 186 ss.

[14] LARENZ, Karl. Op. cit., p. 117. Sobre a teoria de Larenz, confira-se NUNES FRITZ, Karina. A culpa in contrahendo no direito alemão…, p. 183.

[15] CANARIS, Claus-Wilhelm. Ansprüche wegen „positiver Vertragsverletzung“…, p. 477 ss. Sobre a teoria da transmudação e sua oposição à teoria da dualidade do vínculo obrigacional, confira-se: NUNES FRITZ, Karina. A culpa in contrahendo no direito alemão…, p. 187 ss.

[16] No original: „… bei Erfüllung der Hauptleistung bedeutet das aber zunächst nur das Erlöschen der Hauptleistungspflicht: Schutzpflichten. Können auch über den Zeitpunkt der Erfüllung der Hauptleistung fortdauern.“. In: Münchener Kommentar zum BGB. Helmut Heinrichs (redator), 2a. ed. München: Beck, 1985, § 242 Rn. 185, p. 128.

[17] Tradução livre: „Die aus ´Treu und Glauben` begründeten Verhaltenspflichten können auch darauf abzielen, daß dem anderen Teil keine Nachteile für die Zeit nach der Beendigung des Vertragsverhältnisses entstehen. Eigentlich ´nachvertragliche Pflichten` können sich insofern ergeben, als ´Treu und Glauben` unter Umständen verlangen, daß der eine Vertragsteil auch nach der Beendigung des Vertragsverhältnisses – genauer: nach der Erfüllung aller Hauptleistungspflichten – noch bestimmte Handlungen zum Vorteil des anderen vornimmt oder solche Handlungen unterläßt, durch die dem anderen die ihm durch den Vertrag gewährten Vorteile wieder entzogen oder wesentlich geschmälert werden würden.“. Op. cit., p. 141.

[18] Nesse sentido: WESTERMANN, Harm Peter; BYDLINSKI, Peter e WEBER, Ralph. BGB – Schuldrecht allgemeiner Teil. 6ª. ed. Heidelberg: Müller Verlag, 2007, p. 31.

[19] „Auch bei einem abgewickelten Vertrag können noch Sorgfaltspflichten zwischen den Parteien bestehen. Die Parteien eines abgewickelten Vertrags sind einander nach Treu und Glauben mit Rücksicht auf die Verkehrssitte verpflichtet, das durch den Vertrag Erhaltene nicht nachträglich zu gefährden.“. Schuldrecht. 10ª. ed. Berlin: De Gruyter, 2006, p. 63.

[20] ROTH, Günther. In: Münchener Kommentar zum BGB (1985), § 242 Rn. 185, p. 128.

[21] RGZ 161, 330.

[22] ERNST, Wolfgang. In: Münchener Kommentar zum BGB (2016), § 280 Rn. 119, p. 921.

[23] No original: „Der Bundesgerichtshof tritt der Rechtsprechung des Reichsgerichts bei, dass sich auch bei einem durch die beiderseitigen Leistungen erfüllten Warensumsatzgeschäft Nachwirkungen ergeben können, insbesondere die Verpflichtung einer Partei, alles zu unterlassen, was den Vertragszweck gefährden oder vereiteln könnte.“. BGH II ZR 253/51, julgado em 28.05.1952 e publicado em BGH NJW 1952, p. 867. Na mesma linha: BGH XI ZR 8/89, julgado em 24.10.1989, publicado em BGH NJW-RR 1990, p. 141.

[24] Da boa-fé no direito civil, p.627s. No mesmo sentido: DONNINI, Rogério. Responsabilidade civil pós-contratual. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 147.

[25] DONNINI, Rogério. Responsabilidade civil pós-contratual, p. 148. Ele dá como exemplo o art. 32 CDC, que impõe aos fabricantes e importadores ofertar peças de reposição e componentes mesmo posteriormente ao término da fabricação ou importação do produto. Trata-se aqui de efeitos do contrato de consumo, previstos na lei, que têm a aparência de pós-eficácia em sentido estrito. A mesma situação ocorre nos casos de garantia contratual ou legal dos contratos de consumo. Op. cit., p. 148.

[26] No original: „Als nachwirkende Treupflichten bezeichnet man Pflichten, die die Parteien eines Vertrages noch nach beiderseitiger Erfüllung, sozusagen im Abwicklungsstadium, treffen. Im Einzelnen handelt es sich dabei um recht unterschiedliche Erscheinungen, auszuklammern sind zunächst die sogenannten Vertragsfortwirkungen. Man versteht darunter Abreden der Parteien für die Zeit nach Erfüllung der beiderseitigen Leistungspflichten oder bei Dauerschuldverhältnissen für die Zeit nach Vertragsende, Häufig anzutreffen sind solche Abreden namentlich bei Dienst-, Arbeits- und Gesellschaftsverträgen. In Betracht kommen hier vor allem Abreden über Geheimhaltungspflichten, Wettbewerbsverbote, Abfindungsansprüche und Ruhegelder. Ein gesetzlich geregeltes Beispiel ist die Zeugnispflicht des Arbeitsgebers (§ 630). Bei den genannten Pflichten handelt es sich um normale vertragliche Leistungspflichten, für die keine Besonderheiten gelten. Die „echten“ nachwirkenden Treuepflichten unterscheiden sich von den soeben behandelten Vertragsfortwirkungen im Grunde allein dadurch, dass sie nicht ausdrücklich vereinbart sind, sondern aus dem Vertrag erst durch Auslegung nach Treu und Glauben ergeben (§§ 157, 242; § 347 HGB).“ In: Münchener Kommentar zum BGB (2016), § 280, p. 920.

[27] § 157. Interpretação dos contratos. Os contratos devem ser interpretados conforme o exige a boa-fé objetiva, em consideração aos usos do comércio. (§ 157. Auslegung von Verträgen. Verträge sind so auszulegen, wie Treu und Glauben mit Rücksicht auf die Verkehrssitte es erfordern.)

O caput do art. 113 CC/2002 é praticamente uma cópia do dispositivo alemão ao afirmar que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. Atente-se que a boa-fé objetiva é princípio cardinal da interpretação do negócio, como deixa claro o caput do art. 113 e reforça o § 1º, inc. 3 do mesmo dispositivo, introduzido pela Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019), principalmente quando se constata que, enquanto as partes podem afastar os usos do tráfego, i.e., os usos do comércio, não podem afastar a boa-fé objetiva, que é norma de ordem pública e princípio estrutural de todo o direito.

[28] RGZ 111, p. 298 – RG V 570/24, julgado em 26.09.1925. No mesmo sentido: ERNST, Wolfgang. In: Münchener Kommentar zum BGB (2016), § 280 Rn. 125, p. 923.

[29] BGH NJW 1960, 718, julgado em 11.02.1960, processo BGH II ZR 51/58.

[30] Sobre o tema, confira-se: NUNES FRITZ, Karina. Comentário ao EREsp. 1.280.825/RJ: prazo prescricional de dez anos para responsabilidade contratual? Revista IBERC, v. 2, 2019, p. 11 ss.

[31] STJ, REsp. 1.367.955/SP, T3, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 18.03.2014, DJe 24.03.2014.

[32] No EREsp. 1.281.594/SP, julgado pela Corte Especial do STJ em 15.05.2019, sob relatoria do Min. Felix Fischer, o Tribunal fixou que, salvo previsão legal específica, é de dez anos o prazo prescricional aplicável a casos de responsabilidade contratual, nos termos do art. 205 CC/2002. O prazo prescricional trienal previsto no art. 206, § 3º do CC/2002 restringe-se a danos decorrentes de ato ilícito extracontratual. Diz a ementa: “CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NO RECURSO ESPECIAL. DISSENSO CARACTERIZADO. PRAZO PRESCRICIONAL INCIDENTE SOBRE A PRETENSÃO DECORRENTE DA RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL. INAPLICABILIDADE DO ART. 206, § 3º, V, DO CÓDIGO CIVIL. SUBSUNÇÃO À REGRA GERAL DO ART. 205, DO CÓDIGO CIVIL, SALVO EXISTÊNCIA DE PREVISÃO EXPRESSA DE PRAZO DIFERENCIADO. CASO CONCRETO QUE SE SUJEITA AO DISPOSTO NO ART. 205 DO DIPLOMA CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA PROVIDOS. I – Segundo a jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça, os embargos de divergência tem como finalidade precípua a uniformização de teses jurídicas divergentes, o que, in casu, consiste em definir o prazo prescricional incidente sobre os casos de responsabilidade civil contratual. II – A prescrição, enquanto corolário da segurança jurídica, constitui, de certo modo, regra restritiva de direitos, não podendo assim comportar interpretação ampliativa das balizas fixadas pelo legislador. III – A unidade lógica do Código Civil permite extrair que a expressão “reparação civil” empregada pelo seu art. 206, § 3º, V, refere-se unicamente à responsabilidade civil aquiliana, de modo a não atingir o presente caso, fundado na responsabilidade civil contratual. IV – Corrobora com tal conclusão a bipartição existente entre a responsabilidade civil contratual e extracontratual, advinda da distinção ontológica, estrutural e funcional entre ambas, que obsta o tratamento isonômico. V – O caráter secundário assumido pelas perdas e danos advindas do inadimplemento contratual, impõe seguir a sorte do principal (obrigação anteriormente assumida). Dessa forma, enquanto não prescrita a pretensão central alusiva à execução da obrigação contratual, sujeita ao prazo de 10 anos (caso não exista previsão de prazo diferenciado), não pode estar fulminado pela prescrição o provimento acessório relativo à responsabilidade civil atrelada ao descumprimento do pactuado. VI – Versando o presente caso sobre responsabilidade civil decorrente de possível descumprimento de contrato de compra e venda e prestação de serviço entre empresas, está sujeito à prescrição decenal (art. 205, do Código Civil). Embargos de divergência providos.”.

[33] RGZ 161, 330. No mesmo sentido: LG Hannover NJW-RR 1986, 1278.

[34] ERNST, Wolfgang. In: Münchener Kommentar zum BGB (2016), § 280 Rn. 117, p. 921.

[35] BGH WarnR 1971, I Nr. 126. Apud: ERNST, Wolfgang. In: Münchener Kommentar zum BGB (2016), § 280 Rn. 119, p. 921.

[36] BGH NJW 1959, 2011.

[37] ROTH, Günther. In: Münchener Kommentar zum BGB (2016), § 242 Rn. 185, p. 128.

[38] ERNST, Wolfgang. In: Münchener Kommentar zum BGB (2016), § 280 Rn. 122, p. 922.

[39] BGH NJW 1997, 1302.

[40] BGH NJW 1984, 431.

[41] Exemplo de Wolfgang Ernst in: Münchener Kommentar zum BGB (2016), § 280 Rn. 120, p. 922.

[42] BGH NJW 1996, 842.

[43] Dentre outros, confira-se: BGHZ 71, 144 e BGH NJW 1985, 228.

[44] NUNES FRITZ, Karina. Boa-fé objetiva na fase pré-contratual…, p. 91.

[45] „Der den gesamten Rechtsverkehr beherrschende Grundsatz von Treu und Glauben gebietet es, in solchen Fällen Schäden von dem Vertragspartner abzuhalten… Diese Schutzpflichten bestehen auch nach Beendigung eines Rechtsverhältnisses als nachwirkende Treupflicht.“ BGH II ZR 51/58, j. 11.02.1960, p. 3 s.

[46] Confira o relato detalhado do caso em DONNINI, Rogério. Op. cit., p. 138 ss.

[47] Art. 1.147. Não havendo autorização expressa, o alienante do estabelecimento não pode fazer concorrência ao adquirente, nos cinco anos subsequentes à transferência.

[48] Confira-se: DONNINI, Rogério. Op. cit., p. 143.

[49] No mesmo sentido: DONNINI, Rogério. Op. cit., p. 142.

[50] TJRS, Apelação Cível 588.042.580, 5ª Câmara Cível, Rel. Des. Ruy Rosado de Aguiar Júnior, j. 16.08.1988. A extinção dos contratos por incumprimento do devedor. Rio de Janeiro: Aide, 1991, p. 243.

[51] “CIVIL E PROCESSO CIVIL. CONTRATOS. DISTRIBUIÇÃO. CELEBRAÇÃO VERBAL. POSSIBILIDADE. LIMITES. RESCISÃO IMOTIVADA. BOA-FÉ OBJETIVA, FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO E RESPONSABILIDADE PÓS-CONTRATUAL. VIOLAÇÃO. INDENIZAÇÃO. CABIMENTO. DANOS MORAIS E HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. REVISÃO. POSSIBILIDADE, DESDE QUE FIXADOS EM VALOR IRRISÓRIO OU EXORBITANTE. SUCUMBÊNCIA. DISTRIBUIÇÃO. CRITÉRIOS. (…) 4. A rescisão imotivada do contrato, em especial quando efetivada por meio de conduta desleal e abusiva – violadora dos princípios da boa-fé objetiva, da função social do contrato e da responsabilidade pós-contratual – confere à parte prejudicada o direito à indenização por danos materiais e morais. (…)”. STJ, REsp. 1.255.315/SP, T3, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 13.09.2011, Dje 27.09.2011.

[52] REsp. 1.255.315/SP, Voto Min. Nancy Andrighi, p. 7.

[53] Dentre outros: AgRg no AREsp. 175.663/RJ, T3, Rel. Min. Sidnei Beneti, j. 26.06.2012, DJe 29.06.2012; AgRg nos EDcl no Ag 1400796/RS, T3, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 16.08.2012, DJe 21.08.2012; AgRg no REsp. 1.230.665/SP, T3, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 05.03.2013, DJe 03.04.2013 e AgRg no REsp. 1.444.292/SP, T3, Rel. Min. Sidnei Beneti, j. 05.08.2014, DJe 04.09.2014.

[54] TJSP, 4ª. Câmara de Direito Privado, Apelação Cível 494.898.4/0-00, Rel. Des. Francisco Loureiro, j. 13.09.2007. Apud: DONNINI, Rogério. Op. cit., p. 191.

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